Numa rede fluvial, os pequenos cursos de água são ubíquos, constituindo mais de 86% do seu comprimento total. Localizados a montante, e longitudinalmente solidários, estes ribeiros contribuem de forma marcante para a qualidade química, física e biológica da água utilizada pelos humanos, constituindo também uma “fonte de biodiversidade” para o continuum fluvial; possuem uma fauna particular e estabelecem com os ecossistemas terrestres adjacentes uma relação íntima e de interdependência. É aliás esta cumplicidade com as áreas ripícolas que os torna particularmente vulneráveis à ação humana.

Figura 1. Interação folhas-fungos--invertebrados no processo de decomposição nos ribeiros.

Em zonas temperadas, os ribeiros são frequentemente meios sombrios onde a copa das árvores limita a produção primária. Nestes sistemas, heterotróficos por excelência, dominam as cadeias alimentares “castanhas”, isto é, dependentes de detritos. Aqui, são sobretudo as folhas outonais, fornecidas pelo ecossistema terrestre adjacente, que alicerçam a estrutura e garantem o funcionamento do sistema. Esta matéria orgânica alóctone pode constituir até 99% da energia transformada pelos organismos aquáticos. Uma vez na água, grande parte da folhada é rapidamente retida e processada, ou seja, convertida em biomassa viva. De reduzido valor nutritivo, a matéria orgânica de origem terrestre é rapidamente colonizada por microrganismos decompositores - fungos e bactérias - que promovem um incremento do seu valor alimentar para os invertebrados “trituradores” que as consomem (Fig. 1). Este grupo funcional de detritívoros é abundante nestes sistemas, podendo constituir 20-45% da biomassa total de invertebrados e inclui, entre outros, anfípodes, isópodes, dípteros, plecópteros e tricópteros.

Figura 2. Lixiviado de três espécies de folhas recolhidas em zonas ripícolas: a) carvalho, b) castanheiro, c) amieiro.

A decomposição da folhada constitui um processo-chave para o funcionamento do ecossistema ribeirinho. Ocorre normalmente em três fases mais ou menos sequenciais: lixiviação, condicionamento microbiano e fragmentação física e/ou biológica. A lixiviação (Fig. 2) dura normalmente entre 2 a 7 dias após a entrada na água, e consiste numa fase abiótica de solubilização de alguns compostos (alguns deles tóxicos para os consumidores aquáticos); determina a uma rápida e substancial perda de massa foliar. A fase de condicionamento pode durar algumas semanas e reflete o período de colonização microbiana. Esta é essencialmente promovida por um grupo particular de fungos, denominados hifomicetes aquáticos (Fig. 3), e por bactérias que normalmente apresentam uma atividade mais marcante em fases tardias da degradação foliar. A ação microbiana traduz-se num enriquecimento nutritivo e no amolecimento foliar que estimula e facilita a sua ingestão pelos trituradores. A fragmentação do material foliar condicionado pode ocorrer por ação física da corrente e/ou por atividade biológica (consumo ou construção de casulo pelos invertebrados; Fig. 4).

Figura 3. Esporos de três espécies de hifomicetes aquáticos observados ao microscópio ótico usando a ampliação de 250x: a) Lemoniera aquatica, b) Heliscus lugdunensis, c) Clavariopsis aquatica.

Frequentemente, a decomposição foliar é mais rápida na presença dos trituradores. No entanto, é reconhecido que este grupo apresenta distintos graus de seletividade e capacidade de assimilação face a distintas espécies de folha, grau de condicionamento, espécies de fungos, combinações de folha/fungos... As repercussões destas escolhas refletem-se no ciclo e história de vida dos indivíduos (e.g. sobrevivência, crescimento e reprodução), transmitemse ao longo das cadeias alimentares, e influenciam a reciclagem de nutrientes no sistema. Exemplo notório de empobrecimento das comunidades de invertebrados promovida por alterações na qualidade da folhada pode ser observada nos ribeiros cuja bacia de drenagem foi reflorestada com monoculturas de exóticas (e.g. Eucalyptus globulus).

Figura 4. Invertebrado triturador (Sericostoma vittatum) a consumir folhas de carvalho condicionadas.

Nos últimos anos, os indicadores funcionais juntaram-se aos parâmetros estruturais (e.g. composição taxonómica de invertebrados) para avaliar o estado ecológico dos cursos de água. O processo de decomposição, tem por isso, adquirido relevância: é sensível às variações intrínsecas (e.g. características físico-químicas das folhas) e/ou ambientais que atuam antes e (principalmente) após a entrada das folhas nos ribeiros (e.g. temperatura), e a sua aplicação técnica é fácil e pouco dispendiosa.

Os ecossistemas lóticos (i.e. sistemas de água corrente) encontram-se entre os ecossistemas mais afetados do mundo. Esta condição tende a agudizar-se, em parte como resultado da intensificação de atividades agrícolas que tendem a responder ao crescimento humano, à reflorestação das bacias de drenagem por exóticas para responder a necessidades económicas, à produção de águas residuais, às alterações climáticas... Urge, por isso, conhecer os nossos ribeiros e rios, participar na sua proteção e, se necessário, ajudar na recuperação da sua integridade. A responsabilidade não deve ser só dos órgãos de gestão ou dos investigadores; deve ser alargada a toda a sociedade e ser uma atitude de cidadania ativa. Sugerimos, por isso, levar a “decomposição da folhada” às escolas. Comece por algo simples...coloque umas folhas (e.g. amieiro) em sacos de rede de malha larga, feche os sacos com fio de nylon e fixe-os no leito do ribeiro que corre junto à sua escola. Distribua os sacos por locais com corrente/turbulência distintas. Deixe passar duas semanas e recolha. Observe (à lupa e/ou ao microscópio) o que ribeiro lhe oferece!