De facto, as caraterísticas das espécies, bem como as interações ecológicas que estabelecem entre si são o resultado de uma longa história evolutiva. Assim, compreender a evolução biológica simplifica a descrição e a compreensão da diversidade de seres vivos que nos rodeiam, permitindo inter-relacionar conceitos de diversas áreas da biologia e integrá-los num quadro mais vasto de conhecimentos (National Academy of Sciences, 1998; National Science Teachers Association, 2003). Como tão bem resumiu o biólogo evolutivo e geneticista Dobzhansky no seu célebre artigo de 1973: “nada em biologia faz sentido, exceto à luz da evolução” (Dobzhansky, 1973).


Sendo fundamental para compreender e prever o comportamento dos sistemas biológicos, a evolução tem também implicações e aplicações muito importantes no nosso dia a dia. Por exemplo, na agricultura, é essencial para compreender a necessidade de manter a diversidade de espécies de cultivo e para minorar a evolução de pragas resistentes (ver Burdon et al., 2014 sobre a aplicação de princípios evolutivos no combate às pragas em culturas de cereais). Em psicologia, é fundamental para compreender a forma como aprendemos, como nos relacionamos com os outros ou como percecionamos o meio que nos rodeia (ver, por exemplo Pinker 2010). Em ciência forense, a biologia evolutiva tem permitido fundamentar a culpa ou inocência de pessoas (ver Oliveira et al., 2006 sobre o caso da equipa de médicos e enfermeiros acusados de infetar crianças com HIV na Líbia). Na biotecnologia, mimetiza-se o processo de evolução por seleção natural para desenvolver artificialmente biomoléculas com caraterísticas particulares (revisto em Meyer et al., 2011). Na conservação da natureza, a compreensão da evolução biológica é também fundamental para desenhar planos de conservação e recuperação de espécies e ecossistemas que sejam eficazes a longo prazo. Na medicina humana e veterinária a biologia evolutiva contribui para compreender, por exemplo: i) a origem e padrões de distribuição da diversidade humana e suas implicações no desenvolvimento e escolha das melhores terapêuticas; ii) a origem de doenças causadas pelas mudanças do estilo de vida ao longo da nossa história evolutiva e consequentes alterações das pressões seletivas; iii) o desenvolvimento de doenças degenerativas, de que o cancro é um exemplo; ou iv) o surgimento de novas doenças e a evolução de organismos patogénicos, nomeadamente no que toca à sua virulência, à resistência a fármacos (como por exemplo antibióticos), ou à sua capacidade de “escapar” ao sistema imunitário (revisto em Stearns, 2014). O próprio desenvolvimento da vacina anual para o vírus da gripe baseia-se na aplicação do conhecimento sobre a evolução do vírus. A relevância das aplicações biomédicas da evolução levou mesmo ao aparecimento de um novo campo de estudo, designado de medicina evolutiva ou medicina Darwiniana, que utiliza os conhecimentos e métodos desenvolvidos pela biologia evolutiva para compreender, prever, prevenir e tratar doenças que afetam a nossa espécie (revisto em Stearns, 2014).


Mas a evolução não é uma propriedade exclusiva dos sistemas biológicos. Os princípios da biologia evolutiva podem aplicar-se a todos os sistemas cujos elementos se “reproduzam” e tenham a possibilidade de sofrer alterações que possam ser transmitidas ao longo das gerações (Howe & Windram 2011). Esta descrição abrange vários aspetos da cultura humana que evoluem por processos semelhantes aos que promovem a evolução biológica. Alguns exemplos são as línguas, as tradições, a produção de artefactos ou mesmo a evolução e diversificação de contos infantis (Gray et al. 2009; Howe e Windram, 2011; Tehrani, 2013).


Os princípios da evolução biológica estão ainda na origem dos chamados algoritmos evolutivos, que mimetizam os processos de reprodução, mutação e seleção natural para otimizar soluções num dado “ambiente”, no qual as “pressões seletivas” são definidas pelo utilizador. Estes algoritmos têm sido usados com sucesso em áreas tão diversas como a engenharia, a economia ou a produção artística (ver por exemplo o software PoeTryMe que produz poemas em português usando algoritmos evolutivos; Oliveira, 2012).


A evolução não só tem importantes aplicações em diversas áreas do conhecimento como é fundamental para fazermos escolhas informadas e exercer uma cidadania participativa. Porque devemos usar antibióticos apenas quando estritamente necessário? Porque devemos evitar fragmentar populações naturais, e quais os reais impactos sobre a biodiversidade resultantes da construção de infraestruturas como barragens ou autoestradas? De que forma podem as alterações climáticas alterar o equilíbrio ambiental e as sociedades humanas? Em que medida as atividades humanas têm contribuído para aumentar a taxa de extinção das espécies? Qual a importância de preservar a biodiversidade nos sistemas agropecuários e nas populações naturais? Responder a estas questões implica que se compreendam os princípios e impactos da evolução biológica.


Apesar das implicações que a evolução tem no nosso dia a dia e das suas aplicações em diferentes áreas do conhecimento, subsiste um grande desconhecimento sobre este assunto no nosso país. A título de exemplo, em 2005, no âmbito de um inquérito sobre conhecimento científico aplicado em diversos países, entre os quais Portugal, mais de 30% dos 1009 portugueses inquiridos responderam não concordar ou não estarem seguros de que “O ser humano desenvolveu-se a partir de espécies animais mais antigas” (revisto em Miller et al., 2006). Mas apesar de reveladores, estes números são provavelmente apenas a ponta do iceberg, uma vez que aceitar a evolução biológica não significa que as pessoas a compreendam. De facto as conceções erróneas sobre evolução são inúmeras (ver, por exemplo Campos et al., 2013), sendo partilhadas por pessoas com idades, crenças religiosas, nacionalidades e formação académica diversas (ver exemplos em Rutledge and Warden 2000; Nehm and Reilly 2007; Prinou et al. 2011; Spiegel et al. 2012). Uma vez adquiridas, estas conceções erróneas revelam-se persistentes e difíceis de ultrapassar, nomeadamente por parte de alunos e mesmo professores, dificultando a compreensão dos processos envolvidos (Nehm and Reilly 2007). Em muitos casos, estas conceções erróneas são reforçadas pelo sistema de ensino, currículos e manuais escolares (Prinou et al. 2011). Por exemplo, quando pedimos aos alunos que identifiquem e descrevam as adaptações dos seres vivos ao meio onde habitam sem abordarmos o mecanismo responsável por estas adaptações – a seleção natural – podemos facilmente induzir e/ou fortalecer conceções criacionistas ou lamarckistas. Por outras palavras, sem um enquadramento evolutivo, os alunos poderão assumir que as caraterísticas das espécies surgiram com um propósito, para desempenhar uma função específica. Com base nestas observações, vários investigadores e organizações científicas e educacionais propõem que a evolução seja explorada desde os primeiros anos de ensino obrigatório (National Research Council, 2007; Nadelson et al. 2009; Wagler 2010, 2012, Associação Portuguesa de Biologia Evolutiva [APBE], 2012; Campos e Sá-Pinto 2013). E de facto, os estudos realizados até à data com alunos do ensino pré-escolar e do primeiro ciclo revelam que estes conseguem explicar o mundo que os rodeia usando argumentos evolutivos e prever a evolução de populações em situações biologicamente realistas (Nadelson et al. 2009; Wagler 2012, Campos e Sá-Pinto, 2013, Figura 1).


A melhor forma de aprender biologia é exatamente à luz da evolução. Todos os conteúdos da biologia se encontram relacionados com a evolução, das caraterísticas dos seres vivos aos sistemas de classificação, da célula aos ecossistemas, dos impactos das alterações do meio à conservação, da diversidade intraespecífica à diversidade interespecífica, passando pela hereditariedade e a genética. O enquadramento evolutivo das questões biológicas, permite compreender e relacionar conteúdos, evitando que o estudo da vida seja uma coleção de factos com os conteúdos “arrumados em gavetas”. Assim, a evolução não deve ser lecionada de forma isolada e apenas nos últimos anos do ensino obrigatório, mas, pelo contrário, deve ser explorada desde os primeiros anos de ensino, de forma transversal e enquadrada nos diversos conteúdos das Ciências da Natureza, com complexidade crescente ao longo do percurso escolar dos alunos.


Figura 1. Exemplos de respostas de alunos do primeiro ciclo numa avaliação realizada após uma actividade de exploração do mecanismo de seleção natural. A maioria dos estudantes previu corretamente a ocorrência de alterações na frequência das caraterísticas de uma população insular de aves com diversidade no tamanho das asas (que afetava a capacidade de voo) após a introdução de gatos pelos humanos, as quais justificam invocando sobrevivência diferencial (como nos exemplos da figura) e reprodução diferencial (como no segundo exemplo) dos mais aptos. Estas respostas revelam que desde muito cedo as crianças compreendem e podem aplicar uma conceção evolutiva correta para explicar e prever o mundo que as rodeia, confirmando a visão de que a Biologia pode (e deve) ser lecionada à luz da evolução desde os primeiros anos do ensino obrigatório (adaptado de Campos e Sá-Pinto, 2013).
Figura 1. Exemplos de respostas de alunos do primeiro ciclo numa avaliação realizada após uma actividade de exploração do mecanismo de seleção natural. A maioria dos estudantes previu corretamente a ocorrência de alterações na frequência das caraterísticas de uma população insular de aves com diversidade no tamanho das asas (que afetava a capacidade de voo) após a introdução de gatos pelos humanos, as quais justificam invocando sobrevivência diferencial (como nos exemplos da figura) e reprodução diferencial (como no segundo exemplo) dos mais aptos. Estas respostas revelam que desde muito cedo as crianças compreendem e podem aplicar uma conceção evolutiva correta para explicar e prever o mundo que as rodeia, confirmando a visão de que a Biologia pode (e deve) ser lecionada à luz da evolução desde os primeiros anos do ensino obrigatório (adaptado de Campos e Sá-Pinto, 2013).

Graças às propostas apresentadas pelo Núcleo da Educação e Divulgação da Evolução da APBE (NEDE-APBE) para a alteração da redação das metas curriculares da disciplina de Ciências Naturais do 5º ao 9º ano (NEDE-APBE, 2013a e 2013b), existe agora uma recomendação clara para que diversos conteúdos programáticos sejam abordados numa perspetiva evolutiva. As novas metas aprovadas mencionam inequivocamente a relação da evolução com os processos de extinção, relacionando-os com alterações do meio ambiente e/ou de relações bióticas (pontos 5.6, 6.5 e 11.4 das metas do 8º ano e 1.5 das metas do 9º ano), o impacto da evolução na nossa saúde (pontos 1.5 e 4.7 das metas do 9º ano) e de que forma as nossas caraterísticas resultam da nossa história evolutiva (ponto 7.2 das metas do 9º ano). No entanto, no nosso entender, estas metas apenas poderão ser plenamente atingidas se os alunos compreenderem os processos que promovem a evolução, como a seleção natural e sexual e a deriva genética. Destacamos, nesse sentido, a disponibilidade de recursos didáticos desenvolvidos para promover a aprendizagem ativa sobre a evolução e os processos evolutivos, em diversos anos letivos e em diversos contextos biológicos (ver por exemplo Sá-Pinto e Campos, 2012 ou consultar o site Understanding Evolution; http://evolution.berkeley.edu).


Para que a evolução possa ser explorada em todos os níveis de ensino é também necessário apostar na formação de professores, sobretudo daqueles que não tiveram formação específica em biologia, a fim de promover a compreensão dos processos evolutivos, dos seus impactos no mundo natural e na sociedade, e de que forma podem ser explorados ao longo das diversas fases do percurso escolar dos alunos. Igualmente importante será dotar os professores de ferramentas que lhes permitam identificar e lidar com as várias conceções erróneas que frequentemente se manifestam neste domínio. Para isto, é fundamental encorajar o contacto direto entre professores, divulgadores de ciência e investigadores das áreas da didática e da biologia evolutiva. É para a construção destas PONTES* que o NEDE-APBE pretende contribuir.

Notas dos autores

*PONTES é também o nome de um projeto do NEDE-APBE que visa promover o contacto entre a comunidade científica, as escolas e o público. Para mais informações contacte o NEDE-APBE pelo email nede.apbe@gmail.com.


Xana Sá-Pinto
CIBIO InBio, Universidade do Porto
NEDE - APBE


Rita Ponce
Centro de Biologia Ambiental, FCUL
NEDE - APBE


Maria João Fonseca
CIBIO InBio, Universidade do Porto

Paulo de Oliveira
CIBIO InBio, Universidade do Porto
Dep. Biologia, Universidade de Évora


Rita Campos
CIBIO InBio, Universidade do Porto
NEDE - APBE