Deslocalização eletrónica
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- Universidade do Porto
Referência Corrêa, C., (2016) Deslocalização eletrónica, Rev. Ciência Elem., V4(1):009
DOI http://doi.org/10.24927/rce2016.009
Palavras-chave Eletrão; ressonância; mesomerismo; isomerismo;
Resumo
1.Ressonância ou mesomerismo.
Em certos casos
não é possível representar corretamente a estrutura de um composto por
uma única fórmula de estrutura de Lewis, tendo de se recorrer a várias
fórmulas que, no seu conjunto, segundo a teoria da ligação de
valênca, representam a verdadeira estrutura da molécula. É o
caso do ozono (Figura 1), formado por 3 átomos de oxigénio, com
geometria angular e comprimentos de ligação de 128 pm, intermédio entre
os comprimentos da ligação dupla O=O (121 pm) e da ligação simples O-O
(148 pm). Os dois oxigénio extremos apresentam igual carga negativa
(cerca de -0,1) e o átomo central uma carga positiva próxima de +0,2
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Se utilizássemos uma só fórmula de estrutura (A ou B) para representar o ozono, as duas ligações O–O teriam comprimentos diferentes, o que não se verifica experimentalmente. Analogamente, dadas as cargas formais representadas, a carga δ–> devia localizar-se no átomo de oxigénio terminal da ligação dupla e não distribuir-se igualmente pelos dois oxigénios terminais.
O ozono tem características de A e de B mas não é A nem B. A primeira ligação O–O não é dupla (como indica A) nem simples, como indica B. Tem caráter intermédio entre ligação dupla e ligação simples, digamos de ordem 1,5, como mostra a fórmula debaixo da chaveta na figura 1. As fórmulas de estrutura de Lewis, com eletrões localizados, não permitem representar adequadamente o composto. De acordo com a teoria da ligação de valência, a verdadeira estrutura tem, assim, de ser representada pelo conjunto de fórmulas de estrutura A e B.
Diz-se que estamos perante um híbrido de ressonância; as fórmulas A e B denominam-se estruturas contribuintes, e unem-se pelo sinal ↔, que não traduz equilíbrio mas sim mesomerismo ou ressonância.
O ácido nítrico, o dióxido de azoto e muitos outros, constituem casos semelhantes (Figura 2). No dióxido de azoto, NO2, as estruturas contribuintes mostram que as cargas se distribuem sobre os átomos de azoto e de oxigénio e o eletrão desemparelhado (o composto é um radical livre) se associa aos átomos de azoto e de oxigénio. Analogamente, o caráter “radical” estende-se pelos 3 átomos.
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Em todos estes exemplos há eletrões que se distribuem sobre vários átomos em vez de se localizarem num único átomo. Esses eletrões dizem-se deslocalizados e o fenómeno designa-se por deslocalização eletrónica. A deslocalização eletrónica é muito importante em Química, pois os sistemas em que ela ocorre apresentam maior estabilidade, o que tem consequências sobre a reatividade das partículas.
2. O Catião alilo.
O catião alilo,
CH2=CH–CH2+, é um híbrido de
ressonância com as seguintes estruturas contribuintes (Figura 3):
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O catião é algo semelhante ao que está representado sob a chaveta. Não há ligações simples e duplas entre os átomos de carbono mas antes ligações intermédias, isto é, a ordem das ligações é 1,5. De igual modo, a carga não se localiza num carbono terminal mas antes nos dois carbonos terminais, igualmente distribuída.
Note-se que as estruturas contribuintes representam diferentes distribuições eletrónicas sobre um mesmo esqueleto molecular que se mantém inalterado (os núcleos dos diferentes átomos mantêm a mesma posição).
3.Orbitais moleculares.
A deslocalização
eletrónica pode também ser tratado pela teoria das orbitais
moleculares. Recorde-se que as orbitais moleculares (OM) se
formam pela combinação linear de orbitais atómicas (AO); a partir de n
AO obtêm-se n OM.
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Recordemos que a partir de duas orbitais atómicas do hidrogénio (Figura 4) se obtêm duas orbitais moleculares da molécula H2, uma OM ligante e outra antiligante (σ e σ*). Os eletrões da ligação σ estão localizados, isto é, envolvem somente dois núcleos.
No catião alilo os eletrões deslocalizados são eletrões da ligação dupla, ou seja eletrões π. A ligação dupla C=C é constituída por uma ligação simples σ e por uma ligação π, obtida a partir de AO pz dos carbonos, como se mostra para o propeno (Figura 5).
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O catião alilo pode derivar-se do propeno por remoção de hidreto do grupo metilo. Neste caso, além das duas AO pz dos carbonos 1 e 2, temos no carbono 3 uma nova AO pz para entrar no jogo. Da combinação das três orbitais atómicas pz resultam três orbitais moleculares π, de energias diferentes (Figura 6). A de energia mais baixa é a OM ligante, OML, que está totalmente preenchida. A orbital de energia mais alta é uma OM antiligante, OMAL, e de energia intermédia é a OM não ligante, OMNL, ambas vazias.
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A orbital molecular ligante, de energia mínima, completamente preenchida, permite verificar que os dois eletrões π se deslocalizam sobre os três núcleos dos átomos de carbono. Além disso, a energia dos dois eletrões diminuiu, quer dizer, o sistema deslocalizado é mais estável que o não deslocalizado. É possível calcular as densidades eletrónicas nos diferentes átomos de carbono e verificar que a carga positiva se distribui igualmente sobre os dois carbonos extremos, como era descrito pelo tratamento por ressonância.
Neste carbocatião, a OM π2 está vazia; se contiver um eletrão, tem-se o radical alilo e se estiver completamente preenchida obtém-se o carbanião alilo.
4. Estabilização por deslocalização
eletrónica.
A estabilidade dos carbocatiões, dos carbaniões e dos
radicais livres aumenta apreciavelmente quando há deslocalização
eletrónica, o que vai ter importantes consequências na reatividade
destes intermediários.
A diminuição da energia de dissociação heterolítica (Figura 7, a vermelho) para formar carbocatiões quando se passa do propano para o propeno e do metilciclo-hexano para o tolueno resulta da maior estabilização dos carbocatiões formados. O mesmo se passa com a energia de dissociação para formar radicais (a azul) e acidez, de acordo com a maior estabilização dos radicais e dos carbaniões produzidos.
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A fraca acidez dos hidrocarbonetos (pKa da ordem de meia centena) é aumentada por muitas potências de 10 quando há possibilidade de deslocalização da carga negativa do anião resultante da protólise (Figura 8). Por isso o ciclopentadieno é muitíssimo mais acido que o ciclopentano e a acidez do tolueno vai aumentando à medida que se aumenta o número de anéis ligados ao carbono alifático.
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Os alcenos conjugados são mais estáveis do que os que têm as ligações duplas afastadas. Consideremos um hidrocarboneto com duas ligações duplas afastadas entre si, por exemplo o penta-1,5-dieno, CH2=CH–CH2–CH=CH2 (Figura 9). Se hidrogenarmos o composto, o calor de reação será duplo do calor de hidrogenação de um alceno terminal, cerca de 2 × 30 kJ/mol. No entanto, se as ligações duplas estiverem conjugadas, o calor de hidrogenação é inferior devido à estabilização ΔΔH resultante da deslocalização eletrónica. Em termos de ressonância, as estruturas contribuintes mostram uma deslocalização eletrónica que confere caráter duplo à ligação entre os carbonos 2 e 3 e não mostra uma distribuição assimétrica de carga, de acordo com as propriedades do composto.
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Em termos de orbitais moleculares, as quatro OA pz combinam-se e originam quatro OM Ψ1, Ψ2, Ψ3 e Ψ4 de diferentes energias (Figura 10). Os quatro letrões π ocupam as duas OM de energia mais baixa e estendem-se sobre os quatro átomos de carbono, o que se traduz numa extensa deslocalização eletrónica. As ligações C2–C3 passaram a ter um certo caráter duplo (2 eletrões π para três ligações CC), enquanto as ligações C1–C2 e C3-C4 perderam um pouco desse carater (2 eletrões π para duas ligações CC). Note-se que a energia do sistema π agora é menor, ou seja, a deslocalização eletrónica estabilizou o sistema.
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5.Benzeno. Aromaticidade.
A estabilização
decorrente da deslocalização eletrónica pode ser evidenciada de várias
formas, nomeadamente por comparação das energias de hidrogenação dos
compostos, como se viu já.
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A energia de hidrogenação do ciclo-hexadieno (com duas ligações duplas) deveria ser aproximadamente o dobro da correspondente energia do ciclo-hexeno (uma só ligação dupla) se não fosse a estabilização devido à conjugação (Figura 11). Na realidade, esta energia, aparte o sinal, vale 231 kcal/mol em vez de 2 × 120 kcal/mole, revelando uma estabilização de cerca de 9 kcal/mol. A energia de hidrogenação do benzeno, supostamente com três ligações duplas, dada a deslocalização eletrónica, deveria ser inferior a 3 × 120 kcal/mole, mas verifica-se que é muitíssimo inferior (208 kcal/mol) devido à excecional estabilização do enzeno. Esta extensa estabilização ocorre em sistemas ditos aromáticos, como o benzeno, que se caraterizam por conter 4n + 2 eletrões π (2, 6, 10, 14, etc.) deslocalizados num ou mais anéis. Como vimos, o anião ciclopentadienilo (Figura 12), base conjugada do ciclopentadieno, deve a sua elevada estabilidade à aromaticidade que exibe (6 eletrões p deslocalizados num anel).
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Além dos hidrocarbonetos aromáticos polinucleares comuns, como o naftaleno, o antraceno e o fenantreno, existem outros compostos e iões que apresentam aromaticidade (Figura 13).
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