Perguntem aos líquenes
📧 , 📧
- * cE3c/ Universidade de Lisboa
- ɫ cE3c/ Universidade de Lisboa
Referência Munzi, S., Gouveia, C., (2018) Perguntem aos líquenes, Rev. Ciência Elem., V6(1):008
DOI http://doi.org/10.24927/rce2018.008
Palavras-chave associações simbióticas, simbiose, alga, fungo, cianobactéria, biomonitores de qualidade ambiental, ecologia, poluição atmosférica, alterações climáticas
Resumo
Os líquenes são associações simbióticas entre um fungo e uma alga ou cianobactéria. Nas associações simbióticas, dois ou mais parceiros juntam-se e desempenham papéis distintos e complementares, contribuindo para a sobrevivência das simbioses. Nos líquenes, o delicado equilíbrio existente entre os parceiros e as suas características morfológicas e fisiológicas fazem destes organismos um dos melhores biomonitores da qualidade ambiental, extremamente sensíveis à poluição atmosférica e às mudanças climáticas. Além de serem objetos de estudos ambientais e de investigação científicas, os líquenes são também protagonistas em atividades de divulgação de ciência e de ciência cidadã, onde os cidadãos podem participar com observações da natureza e partilhar o conhecimento com a comunidade científica.
Quando pensamos em avaliar a qualidade do ar, pensamos em medir a quantidade de poluentes atmosféricos nas emissões de gases e material particulado, e corretamente pensamos que são precisas análises sofisticadas, onde são utilizados analisadores químicos. Este tipo de análises é necessário para quantificar a concentração na atmosfera de elementos que são perigosos para a saúde humana e o ecossistema, e para verificar que os limites máximos legais de concentração destes elementos não sejam ultrapassados. Contudo, existe outra forma de monitorizar a qualidade do ar que é observar os efeitos da poluição e outros stresses ambientais nos componentes dos ecossistemas, e isto é a biomonitorização.
Na biomonitorização, medimos qualitativamente e quantitativamente características biológicas do ecossistema que dependem das condições ambientais e respondem às suas variações. A quantidade e a diversidade de líquenes são duas destas características biológicas.
O que faz com que os líquenes sejam bons biomonitores?
Um líquen não é só um organismo, mas uma associação simbiótica de vários organismos em que os principais parceiros são um micobionte, ou seja, um fungo, e um fotobionte, que pode ser uma alga verde ou uma cianobactéria (FIGURA 1). O fungo representa acerca de 90% da biomassa do líquen, confere proteção à alga da dissecação, radiação ultravioleta, poluentes, etc., e fornece água e nutrição mineral. A alga, sendo a parte fotossintética do líquen, produz açúcares e energia para ela e o fungo.
Os líquenes vivem em quase todos os ecossistemas terrestres, até em condições ambientais mais extremas onde as plantas mal conseguem viver, como os desertos e a tundra. Algumas espécies liquénicas até conseguiram sobreviver à temperatura, pressão e radiação do espaço1 numa experiência da European Space Agency. Crescem em vários substratos, da casca das árvores às folhas, do solo às rochas, do vidro à borracha, pois ao contrário dos outros fungos, não precisam de “comer” o substrato.
A morfologia do líquen é definida pela interação entre os parceiros que se combinam, a nível microscópico, em camadas mais ou menos definidas, em que as células de algas estão envolvidas nas células do fungo.
Macroscopicamente, os líquenes têm diversas formas de crescimento e podem ser agrupados em 3 grupos principais: líquenes crostosos (aderentes ao substrato, como crostas), foliosos (em forma de folhas) e fruticulosos (em formas de pequenos arbustos). A reprodução pode ser sexual, com produção de esporos por parte do fungo, ou vegetativa, onde há fragmentação e dispersão de pequenas partes do líquen.
Os líquenes são organismos de crescimento lento, crescendo apenas alguns milímetros ou centímetros por ano e com elevada longevidade. Os líquenes não possuem estruturas de excreção e absorção, retirando a água e os nutrientes que necessitam para o seu crescimento diretamente da atmosfera através da superfície dos seus talos. Também não têm estruturas de proteção, não sendo possível discriminar entre nutrientes e poluentes tóxicos. Isto faz com que eles acumulem tudo o que absorvem nos seus tecidos e que respondam globalmente às condições ambientais em que se encontram, sem poder evitar a exposição quando as condições são desfavoráveis. Além disso, o delicado equilíbrio entre os parceiros pode ser facilmente afetado em caso de stress ambiental, levando à morte e ao desaparecimento dos líquenes. São estas características que conferem aos líquenes um papel importante como biomonitor.
O uso de líquenes epífitos (que crescem nas árvores) como biomonitores começou no século XIX, quando se observou a ausência de líquenes em locais poluídos. Desde então, várias técnicas foram propostas para avaliar a qualidade do ar através do uso de líquenes.
Os líquenes são utilizados principalmente de duas formas: como bioacumuladores e como bioindicadores.
Na bioacumulação, os líquenes são expostos ao ar por um determinado tempo, sendo depois retirados e analisados para medir a concentração de poluentes nos seus tecidos2. A comparação entre técnicas de biomonitorização através de líquenes e a utilização de equipamentos, como sensores e monitores da qualidade do ar, mostrou que os líquenes podem acumular grandes quantidades de elementos presentes no ar e que o conteúdo desses elementos no líquen é significativamente correlacionado com a concentração na atmosfera3.
As vantagens dos líquenes em comparação com os equipamentos geralmente usados na monitorização da qualidade do ar são o menor custo e a facilidade de aplicação, o que permite ter um número muito maior de amostras e uma maior flexibilidade na escolha da área de estudo.
A bioindicação é baseada no princípio de que as comunidades de líquenes, como as das plantas e dos animais, estão adaptadas às condições ambientais específicas do ecossistema onde vivem. Quando as condições ambientais mudam, seja devido a uma fonte de poluição (por exemplo indústria, agricultura, urbanização), seja devido a mudanças climáticas (variação da temperatura, de humidade, etc.), as comunidades alteram-se, adaptando-se às novas condições. Atualmente, existe uma metodologia standard, comum a toda a Europa, para medir a diversidade liquénica4. A realização de um protocolo comum, o mais objetivo possível, nasceu da necessidade de comparar dados de diversidade liquénica recolhidos em vários países, em tempos diferentes e por diferentes operadores; só usando a mesma técnica é possível comparar estes dados sem ter diferenças geradas pelo uso de diferentes metodologias. Esta metodologia consiste no cálculo da frequência de espécies liquénicas em árvores selecionadas na área de estudo, usando precisos critérios de seleção e uma grelha de amostragem de dimensões definidas5. Quando este método começou a ser utilizado, a premissa era que um maior número de espécies liquénicas significa uma melhor qualidade ambiental. Atualmente, os cientistas sabem que cada espécie tem preferências ecológicas distintas, ou seja, cada líquen pertence a um “grupo funcional” que deve ser considerado quando interpretamos os dados de diversidade liquénica. Por exemplo, se uma zona tem poucas espécies de líquenes, mas as espécies presentes são sensíveis à poluição, é uma indicação de boa qualidade do ar (FIGURA 2). Por outro lado, encontrar muitas espécies de líquenes, mas estas serem tolerantes à poluição, poderá significar que a qualidade do ar não é necessariamente boa. Um dos melhores exemplos é o da espécie Xanthoria parietina, um líquen que tolera bem a poluição e por isso é fácil observá-la nos troncos de árvore nas cidades e nas áreas agrícolas.
Esta abordagem funcional é muitas vezes utilizada na aplicação de métodos simplificados de avaliação da diversidade liquénica, uma vez que a determinação das espécies requer conhecimento e experiência. Assim, é possível aprender a reconhecer só algumas espécies “chave”, de fácil identificação6, para fazer um estudo ambiental de ciência cidadã perto da nossa casa ou da nossa escola, até cobrir o país inteiro7.
FIGURA 2. A- Evernia punastri, espécie liquénica fruticosa, epífita, sensível à poluição atmosférica (foto: Silvana Munzi); B- Xanthoria parietina, espécie liquénica foliosa, epífita, resistente à poluição atmosférica (foto: Mauro Hílario).
Referências
- 1 VERA, J.P., Lichens as survivors in space and on Mars. Fungal Ecol., 5, 472-479, 2012.
- 2 PAOLI, L. et al., Lichens as suitable indicators of the biological effects of atmospheric pollutants around a municipal solid waste incinerator (S Italy). Ecol. Indicat., 52, 362–370, 2015.
- 3 CERCASOV, V. et al., Comparative study of the suitability of three lichen species to trace-element air monitoring. Environ. Pollut., 119, 129-139, 2002.
- 4 EN 16413, Ambient air—biomonitoring with lichens—assessing epiphytic lichen diversity. Comité Européen de Normalisation, 33 pp, 2014.
- 5 GIORDANI, P. e BRUNIALTI, G., Sampling and interpreting lichen diversity data for biomonitoring purposes. em Recent Advances in Lichenology, Upreti, D.K. et al. eds., Springer India, cap. 2, 2015.
- 6 http://echanges.fc.ul.pt/docs/2015/guia_campo_PT.pdf, acesso em Janeiro 2018.
- 7 https://www.opalexplorenature.org/airsurvey, acesso em Janeiro 2018.
Este artigo já foi visualizado 7792 vezes.