Deambulando pela Austrália Ocidental I
Curiosidades do Quaternário da região de Perth
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- MARE — Departamento de Ciências da Terra, Faculdade de Ciências e Tecnologia, Universidade de Coimbra
Referência Duarte, L.V., (2019) Deambulando pela Austrália Ocidental I, Rev. Ciência Elem., V7(3):053
DOI http://doi.org/10.24927/rce2019.053
Palavras-chave Geologia; Estromatólitos; Austrália; Pinnacles; Pangea; Laurasia; Gondwana
Resumo
A Austrália é um sonho para todos os amantes da natureza. Seja qual for o reino de eleição. O menor dos continentes ou a maior das ilhas da Terra – é uma porção de terra que está inserida na placa indo-australiana, bordejada tanto por zonas de criação como de destruição de placa litosférica.
É o território dos cangurus - e dos seus primos wallabies -, dos dingos e dos coalas, de uma vegetação com os conhecidos predicados e de uma geologia com imensos expoentes em termos globais. Desde logo, a Grande Barreira Recifal, a maior de todas observada nos mares tropicais atuais. Quase no centro da ilha, no coração do povo aborígene, o legítimo proprietário deste chão ocre, que se perde no horizonte, o inigualável Ayers Rock. Mais conhecido nestas paragens por Uluru, monólito que parece emergir das profundezas. No lado oeste da grande ilha, orlada pelo Oceano Índico, a incomensurável região da Austrália Ocidental. Cuja zona costeira é o objeto desta primeira abordagem sobre a geologia da Austrália. O que era um sonho converteu-se em realidade. E a realidade é muito maior, incontestavelmente mais interessante e reconfortante, do que o somatório de todas as imagens que possamos acumular no mundo digital. O circuito tem início na grande e moderna capital do Estado, a cidade de Perth, localizada na extremidade sudoeste da Austrália. A ideia é subir na latitude e chegar à lendária Shark Bay. Que, no nosso imaginário, esteve sempre como um lugar longínquo. Uma zona costeira, aparentemente menos publicitada mas, em termos geológicos, ao nível da importância da Grande Barreira Recifal, sendo um dos principais motivos desta viagem. Para lá iremos, embora seja necessário percorrer, por terra, quase um milhar de quilómetros. Por uma Austrália pouco habitada, em termos humanos, a roçar o Outback do Uluru, e aparentemente pouco atraente. Mas puro engano, já que seremos presenteados por uma geologia de exceção e única, considerando a sua singularidade à escala global. Na presente incursão nem sairemos do Quaternário.
Banhada pelo Rio Swan, onde não faltam os cisnes que lhe dão o nome, uns sempre amigáveis golfinhos e uma curiosa população de medusas (em ambiente estuarino!), Perth destaca-se pelo contraste entre arranha-céus de bom gosto estético e o verde que domina em várias zonas da cidade. Sendo uma urbe moderna, e ainda mais num “novo mundo”, particularmente evoluído, o ordenamento do território é levado muito a sério. Nesta arquitetura, configurada em planta, a régua e esquadro, desponta uma outra, ligeiramente mais antiga, pois, por estas bandas, a dita civilização está na flor da idade. E aqui captamos o motivo para a primeira lição de geologia. Basta centrar-nos em vários dos ícones arquitetónicos da cidade, como são os casos de Perth (Royal) Mint, do Winthrop Hall ou da Catedral da Imaculada Conceição (Figuras 1a-c) para alcançarmos a importância das rochas da região na construção destes edifícios históricos.
No primeiro caso, uma espécie de Casa da Moeda, onde se faz uma verdadeira apologia (museológica) do ouro (Figura 1A), em virtude da vasta tradição mineira da região, onde não faltam várias explorações do top dos metais. O segundo edifício, uma espécie de Sala dos Capelos da Universidade de Coimbra, da distinta University of Western Australia (Figura 1B). Apesar das diferenças de idade entre as duas instituições, as tradições por aqui também são muito vividas pela comunidade universitária. Tal como a construção destes edifícios nobres e antigos, da cidade de Perth, que se fez essencialmente a partir dos calcarenitos da Formação de Tamala, uma unidade datada do Plistocénico, e que domina em toda a região 1,2. Formadas à custa da ação eólica, vulgarmente conhecidas como eolianitos, estas rochas exibem (quase em todos os blocos) magníficas estruturas entrecruzadas oblíquas (figura 2). Apesar da elevada porosidade, ainda mais sendo uma rocha de origem muito recente, o processo de cimentação carbonatada terá sido intenso, o que configura uma rocha com grande importância ornamental. Estas rochas são facilmente discerníveis nas arribas que emergem nas margens mais escarpadas do Rio Swan, a caminho da vizinha Fremantle (figura 3). Esta última, é uma cidade costeira e portuária com imensos atrativos e alguma história. A começar na sua célebre prisão, Património da Humanidade, edificada igualmente nos mesmos calcarenitos plistocénicos (figura 1d).
Entretanto, deixamos Perth, com objetivos geológicos muito bem definidos. Sempre na esperança de podermos dar “de caras” com uns cangurus ou com outros exemplares distintivos da fauna e flora australiana. A segunda motivação geológica são os mui singulares Pinnacles, no Parque Nacional Nambung, situado a pouco mais de duas centenas de quilómetros da capital do Estado. Um conjunto de cúpulas afiladas (os designados pináculos), de natureza calcária, que se dispõem de forma totalmente irregular e sobressaem num manto de areia de um amarelo bem torrado (figura 4).
Com as devidas diferenças, até porque não tem qualquer relação, a fazer lembrar algo de construção megalítica, como o famoso registo pré-histórico de Carnac, na Bretanha. Mas estes pináculos não foram erguidos pelos humanos, sendo um fenómeno puramente geológico. Estamos perante um prodígio dos efeitos da carsificação, mera consequência da erosão química de rochas carbonatadas. Que aqui terá sido particularmente intensa, quase não deixando rocha à vista. Um fenómeno de tal modo violento, que este processo é extraordinariamente recente. Tão recente (apenas alguns milhares de anos), pois a rocha original é a mesma, ou pelo menos da mesma idade (Plistocénico), das que compõem o Perth Mint e a antiga prisão de Fremantle. Uma particularidade faciológica da mesma Formação de Tamala, de origem eólica, possivelmente menos cimentada e que terá sido sujeita a processos de carsificação particularmente intensos e onde a vegetação teve um papel catalisador 3,4. Outro aspeto relevante na paisagem são as próprias formações eólicas ativas (as dunas), atuais, de cor esbranquiçada, que se sobrepõem aos calcarenitos plistocénicos (Figura 5). Uma característica de que a ação do vento tem sido preponderante na história geológica mais recente do sudoeste da Austrália Ocidental.
Concluídas as observações nos Pinnacles, em poucos minutos chegamos a um pequeno povoado costeiro, com designação hispânica, Cervantes. Mas só de nome, já que a pretensa embarcação que aqui terá naufragado no século XIX, e que terá originado a denominação da povoação posteriormente aqui fundada, nada tinha a ver com nuestros hermanos, que, segundo a história, não terão navegado por estas águas. Ao contrário das lagostas, que são muito apreciadas nesta porção do Índico, constituindo o principal ex-libris da cidade homónima do romancista criador de D. Quixote de La Mancha. Para quem cultiva os bons paladares, o repasto é garantido e certificado (!). Mas, para os geólogos, o verdadeiro “manjar” está no Lago Thetis, uma designação coincidente com o grande Mar, que na história da Terra dividiu a Pangea nos supercontinentes Laurasia e Gondwana – este último, a englobar o que é hoje o território australiano. Trata-se de uma pequeníssima lagoa hipersalina e alcalina, onde é possível observar a formação, atual, de estromatólitos (Figuras 6a e b).
As típicas estruturas biosedimentares, de origem microbiana, que ajudam a precipitar carbonato de cálcio e que aqui se desenvolvem em espetaculares estruturas em domo (Figura 7)5, 6. A este respeito, o melhor estará ainda para vir, em Shark Bay. Mas as imagens perfeitas, que se observam neste ambiente lacustre, completam o olhar de qualquer sedimentólogo, que está habituado a ver e a estudar estruturas desta natureza no registo sedimentar antigo, como as do Proterozoico da Serra da Leba7. O exercício do Princípio do Uniformitarismo (ou do Atualismo) a funcionar, mas agora, no sentido inverso, ou seja, do recente para o antigo. Embora as cúpulas estromatolíticas de Angola sejam claramente de origem marinha, o que carece de um outro possível análogo explicativo, diferente do ambiente lacustre do Thetis de Cervantes. Que, e não será pelo acaso, já esteve mais longe de descortinar.
Preenchidos por estas fantásticas e reais imagens geológicas, finalizamos esta primeira incursão pela Austrália Ocidental na Hutt Lagoon, já bem a norte da terceira cidade do Estado, Geraldton, junto à vila piscatória de Port Gregory. Deparamo-nos com mais um bom exemplo dos efeitos da forte salinidade desta porção do Oceano Índico que, em mar alto, chega a exibir uma concentração superior a 36‰. Efeitos sentidos no Lago Thetis (bastante acima destes valores) e nos solos das múltiplas clareiras, entre a vegetação rasa, que se observam ao longo da Indian Ocean Drive. Mas a laguna do Rio Hutt, mesmo juntinho ao Oceano, não é assim tão comum fora do universo australiano ocidental. Exibe uma cor rosa, mais ou menos intensa, dependendo da estação do ano e dos efeitos da luz solar (Figura 8). Como resultado da forte evaporação desenvolvem-se microalgas, a Dunaliella salina, com elevadas concentrações de betacaroteno, pigmento antioxidante e que é uma importante fonte de vitamina A para os seres humanos. Na verdade, para além da particularidade da cor do manto de água, esta laguna corresponde a uma das maiores produções mundiais destas microalgas8. Facto que não será assim tão pouco relevante! O mesmo nível de relevância que tem o sunset que brilha sobre as falésias que se desenvolvem a
norte da laguna, já perto de Kalbarri. Será uma incursão por terrenos bem mais antigos, paleozoicos, mas que terá de ficar para próximo capítulo.
Referências
- 1 Mayer, W. Early geological investigations of the Pleistocene Tamala Limestone, Western Australia. In Grapes, R. H. et al. (eds), History of Geomorphology and Quaternary Geology. Geological Society, London, Special Publications,301, 279–293. 2008.
- 2 Smith, A. J. et al. Geohydrology of the Tamala Limestone Formation in the Perth region: Origin and role of secondary porosity. CSIRO: Water for a Healthy Country National Research Flagship, 63 p.. 2011.
- 3 Lipar, M., Webb, J. A. Programas do 1º Ciclo. Direção Geral da Educação, 140, 182–202. 2015
- 4 Lipar, M. et al. Aeolianite, calcrete/microbialite and karst in southwestern Australia as indicators of Middle to Late Quaternary palaeoclimates. Palaeogeography, Palaeoclimatology, Palaeoecology, 470, 11-29. 2017
- 5 Grey, K., Planavsky, N.J.. Microbialites of Lake Thetis, Cervantes, Western Australia — a field guide. Geological Survey of Western Australia, Record, 2009/11, 21p.. 2009
- 6 Wacey, D. et al. Mineralisation of filamentous cyanobacteria in Lake Thetis stromatolites, Geobiology ,16, 203–215. 2018
- 7 Duarte, L.V. Humpata. Rev. Ciência Elem., V5(1):012. 2017. DOI: 10.24927/rce2017.012
- 8 Department of Environment and Conservation Resource Condition Report for a Significant Western Australian Wetland: Hutt Lagoon. Perth, Western Australia, 35 p.. 2009
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