A escrita manual a desvendar mistérios
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- * LEDEM/ Universidade do Porto
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Referência Branco, M. J., Santos, S., (2019) A escrita manual a desvendar mistérios, Rev. Ciência Elem., V7(4):070
DOI http://doi.org/10.24927/rce2019.070
Palavras-chave grafia, escrita, falsificação
Resumo
A escrita manual é uma competência biológica, extremamente complexa, que é dotada de variação e é inerente a cada indivíduo. Por ser altamente personalizada, a escrita pode ser utilizada, à semelhança do DNA e das impressões digitais, como característica forense identificadora. O caso dos Diários de Hitler, descrito neste artigo, ilustra a importância do perito em assegurar que os requisitos dos exames periciais sejam cumpridos, de forma a estabelecer corretamente a identidade ou exclusão gráfica de um determinado indivíduo como autor de uma escrita.
Do ponto de vista biológico a escrita é uma competência neuro-motora muito complexa, que envolve vários mecanismos cerebrais e a intervenção de vários sistemas, como o nervoso e o muscular. A mão humana contém vinte e sete ossos que são controlados por 40 músculos, que se entrecruzam num sistema de tendões e nervos, dependentes das instruções emitidas pelo cérebro.
Além disso, a escrita é uma competência humana não inata, automática e personalizada, resultante de um complexo processo de aprendizagem, treino e incorporação de características pessoais. E são estas características pessoais que estão na base da identificação gráfica.
A identificação gráfica é um processo discriminatório forense que resulta da comparação dos hábitos gráficos a analisar e da avaliação do significado das semelhanças e diferenças resultantes dessa comparação. Este conceito é totalmente distinto da grafologia, que é uma área que atribui traços de personalidade através da escrita do indivíduo, mas não o identifica.
Da mesma forma que não existem duas impressões digitais iguais também não existem duas escritas iguais. Este facto permitiu que a escrita fosse extensivamente utilizada, designadamente pela aposição de assinaturas, em documentos com valor contratual e em documentos de identificação. Este valor discriminatório e vinculativo da escrita tornou-a alvo de tentativas de falsificação.
E é quando ocorrem as falsificações que são necessários os exames forenses de escrita manual, que à semelhança de muitas disciplinas forenses, se baseiam no método comparativo. Onde se comparam as características, de ordem geral e de pormenor, presentes na escrita contestada com essas mesmas características apostas na escrita genuína de comparação.
As características de ordem geral referem-se ao aspeto pictórico da escrita e incluem a avaliação da fluência e velocidade de escrita, grau de evolução, dimensão absoluta e relativa de escrita, grau de inclinação, entre outros. As características de pormenor referem-se à forma e génese das letras, conexões, algarismos e restantes elementos gráficos. A génese compreende o estudo da realização dos traços que constituem os elementos gráficos, seja pela avaliação da direção dos traços ou pelos levantamentos de pena que existem, enquanto que a forma se refere ao aspeto que as letras e algarismos apresentam.
São vários os princípios que sustentam os exames forenses de escrita manual, designadamente:
- Não há duas pessoas que escrevam da mesma forma.
- O mesmo indivíduo não consegue produzir escrita da mesma forma duas vezes.
- O facto de uma característica se apresentar como evidência de identidade ou não identidade, está relacionada com o facto de essa característica ser rara, da velocidade com que é executada e da semelhança ou diferença que esta apresenta relativamente à escrita de comparação.
- É impossível imitar todas as características de uma escrita mantendo a fluência e perícia do autor da escrita a imitar.
- A identificação da autoria de uma escrita imitada é de difícil resolução, uma vez que no processo de imitação o falsificador procura assumir os hábitos gráficos de outra pessoa, camuflando os seus próprios hábitos gráficos.
No entanto, para a identificação gráfica ser possível, existem vários requisitos nos exames periciais que, se não forem devidamente cumpridos, podem impedir essa identificação ou até mesmo conduzir a resultados erróneos. O caso prático que irá ser apresentado é um exemplo disso.
Os Diários de Hitler e o papel do perito em escrita manual
O caso remonta a 1983, ano em que a revista Stern noticia erradamente a descoberta de mais de 60 diários escritos por Adolf Hitler, entre 1932 e 1945, e publica excertos desses diários, conduzindo ao que foi considerado o maior fracasso da imprensa alemã no jornalismo do pós-guerra. Até então, em toda a literatura sobre a Alemanha nazi, não existia qualquer indício de que Hitler produzira tais anotações, até porque se especula que terá sofrido da doença de Parkinson, optando por ditar os seus textos em vez de os escrever denotando tremor.
A descoberta da fraude veio pouco tempo depois, tendo sido comunicada pela Agência Federal de Investigações (BKA) e pelo Instituto Federal de Pesquisa e Teste de Materiais, que revelaram existir várias incongruências, ao nível do suporte e do conteúdo dos diários. Baseado no exame de uma amostra de 7 volumes, o Laboratório de Documentos da Universidade de Mannheim revelou, por análise química, que o papel utilizado foi fabricado depois de 1950 e que os selos eram recentes, entre outras evidências.
Apesar das incoerências no suporte, que por si só, constituíam uma falsificação, prosseguiram para o exame comparativo de escrita das assinaturas e de excertos do texto. Desse exame, verificaram que, apesar da escrita em causa ser produzida de forma fluente e apresentar semelhanças na dimensão absoluta de escrita, era possível encontrar várias diferenças relativamente a outras características de ordem geral e a características de pormenor, diferenças essas que permitam concluir, com um elevado nível de certeza, que a escrita aposta nos diários tinha sido falsificada.
Então, o que terá acontecido para a fraude só ter sido descoberta após a publicação dos diários?
Previamente à publicação dos excertos, a pedido de um responsável pela revista Stern, a escrita foi analisada por três peritos em escrita manual, de nacionalidades americana, alemã e suíça, que, apesar da vasta experiência na área cometeram “erros de principiante”, resultantes sobretudo dos baixos padrões de exigência relativos à qualidade e quantidade do material contestado disponível e à proveniência do material genuíno de comparação.
Desses erros destacam-se, entre outros, o aceitar a pouca escrita enviada para análise (apenas uma página em vez de 7 volumes exigidos pelo Laboratório de Documentos da Universidade de Mannheim), analisar a escrita em causa em fotocópia, em vez do original (perito suíço), não considerar o estado de saúde de Hitler na altura da produção da escrita ou desconhecer o antigo sistema de escrita alemão (perito americano).
Para além disso, dois dos peritos incluíram escrita falsificada nos elementos genuínos de comparação, não detetando a incoerência existente entre essa escrita, justificando as diferenças encontradas com o facto da escrita derivar de diferentes períodos temporais.
O mistério dos Diários de Hitler desvendou-se assim como um importante alerta para os peritos em escrita manual e como “a mãe de todas as fake news” para a imprensa alemã.
Referências
- 1 BRANCO, M. J. Escrita Manual: Princípios Básicos do Exame Pericial, In M. F. Pereira (coord.), Ciências Forenses ao serviço da Justiça (pp. 343-369). Lisboa: Pactor. 2013.
- 2 MORRIS, R. Forensic Handwriting Identification - Fundamental concepts and Principles, London: Academic Press. 2000.
- 3 MICHEL, T. & BAIER, P. E. The Diaries of Adolf Hitler. Implication for Document Examination.Journal of the Forensic Science Society, 25: 167-178. 1985.
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