Território que vive numa organização caótica, Luanda está assente em terrenos neogénicos e quaternários, carbonatados e arenosos, desde o primeiro dos seus andares, o Miocénico, ao Holocénico2. Não desmerecendo a importância destes depósitos, é nos efeitos de evolução paleogeográfica mais recente que se destacam na paisagem os aspetos geológicos mais relevantes de Luanda: os cordões de areia costeiros, intensamente antropizados, da Ilha de Luanda e da Restinga do Mussulo3. Construções sedimentares que fazem adivinhar que o modelo de deriva litoral dominante nesta parte do globo se faz tendencialmente de sul para norte. Sem a possibilidade de um sobrevoo, as melhores imagens, ainda por cima com a particularidade do zoom “à medida”, poderão ser obtidas a partir do Google Earth. Mas, num ápice, e sem necessidade de recorrer a qualquer voo “astral”, chegamos a um lugar do “outro mundo”: o conhecido Miradouro da Lua. Uma paisagem particularmente colorida e contrastante, bem de frente para o Atlântico Sul, mas onde a máxima “com os pés bem assentes na terra” não se apresenta muito fiável, dadas as fragilidades das rochas aí presentes. A beleza do local deve-se à ação combinada dos fenómenos de erosão atmosférica sobre litologias que se diferenciam por critérios de composição mineralógica e granulométrica (FIGURA 1). Estamos perante algumas das mesmas unidades neogénicas que ocorrem de forma menos expressiva e atrativa em Luanda. Segundo os especialistas, toda a sucessão sedimentar aqui observada reflete uma acumulação que se terá processado nos últimos 6 milhões de anos, registando importantes variações climáticas e do nível do mar. Grande parte do registo sedimentar é interpretado como uma fase de evolução deltaica que deu origem ao atual rio Cuanza e que a tectónica fez erguer para a posição morfológica atual4. Um pouco mais a sul, atravessamos o mais famoso canal fluvial de Angola e entramos na Província do Bengo, onde fica o Parque Nacional da Quiçama. Mas o nosso “safari” é essencialmente geológico. Para além de dar o nome ao rio e a duas províncias angolanas, o termo Cuanza é igualmente repartido pela grande bacia que enquadra todo o enchimento sedimentar desta vasta região e que se prolonga para offshore: a Bacia do Cuanza, mundialmente conhecida pelos seus importantes recursos em hidrocarbonetos5,6.


FIGURA 1. Uma das imagens clássicas do Miradouro da Lua, mostrando o contraste entre duas grandes unidades siliciclásticas de cor branca e avermelhada (ferruginosa), bem como os efeitos da erosão. Um efeito de zoom mostrará muito mais, em especial o estilo de empilhamento das unidades esbranquiçadas dominadas por estruturas cruzadas. Uma sucessão que conta a evolução neogénica e quaternária do paleo-delta do Cuanza3.

Percorridos pouco mais de uma centena de quilómetros, chegamos então à província do Cuanza Sul, o nosso principal foco. Uma região amplamente conhecida pelas plantações de café, que tem a cidade de Sumbe como capital. A antiga Novo Redondo do tempo colonial. Não sendo propriamente um território com mármores, tal como a original vila do Redondo no Alentejo, o carbonato domina igualmente as rochas da região, mas sob a sua variante sedimentar mais típica, o calcário. Esta rocha compõe a base das sucessões sedimentares que se observam na zona costeira do Cuanza Sul, porção onshore da Bacia do Cuanza, sob diversas tipologias litológicas. Unidades formadas em ambiente marinho e, já lá iremos, datadas de vários andares do Cretácico, o único período do Mesozoico aqui registado. De acordo com todos os modelos paleogeográficos, de um tempo consentâneo com a abertura do Atlântico Sul, que terá ocorrido “algum tempo” depois da génese da sua porção setentrional. As idades dos basaltos dos fundos oceânicos, bem como a dos sedimentos – mais antigos no hemisfério norte – que se lhes sobrepõem, assim o comprovam. Entre outras variantes litológicas, que envolvem unidades siliciclásticas e evaporíticas, este é o enquadramento geral da geologia que se estende até Benguela. Neste contexto, teremos de começar pela Província do Bengo, bem a norte, e pelo lugar musicado por Paulo Flores, o Cabo Ledo. Um dos lugares clássicos da estratigrafia da Bacia do Cuanza, de onde provém o nome da Formação de Cabo Ledo que é datada, com base no seu conteúdo paleontológico, do Cenomaniano5,6, o primeiro andar do Cretácico Superior. A imagem não é propriamente espetacular, mas o objeto é de excelência (FIGURA 2). O rol de afloramentos carbonatados adensa-se a partir de Porto Amboim com sucessões verdadeiramente espetaculares, essencialmente datadas do Albiano, o último andar do Cretácico Inferior que representa cerca de 12,5 milhões de anos. Um dos andares com maior duração de todo o Mesozoico7, e claramente o melhor representado no onshore de toda a bacia angolana, através das carismáticas formações de Catumbela e de Quissonde5,6. Por razões estéticas e, implicitamente pelas características geológicas, são propostas observações em dois locais. O primeiro deles, a uma extensa arriba localizada a sul de Porto Amboim, imediatamente a norte da foz do rio Queve, onde é possível observar uma das sucessões da Formação de Quissonde mais impressionantes de toda a bacia (FIGURA 3A), onde não faltam fósseis de invertebrados marinhos (FIGURA 3B).


FIGURA 2. A Formação do Cabo Ledo (Cenomaniano) presente na Estrada Nacional 100, junto a Cabo Ledo. Este é um dos principais pontos de observação desta unidade em toda a Bacia do Cuanza, correspondendo a alternâncias marga-calcário depositadas em ambiente marinho.


FIGURA 3. A) Alternâncias marga-calcário da Formação de Quissonde (Albiano) a sul de Porto Amboim. De uma magnitude arrasadora para os olhos de qualquer geólogo; B) Um dos muitos amonoides possíveis de observar na Formação de Quissonde (Albiano).

O segundo deles corresponde à paradisíaca Praia do Tapado, junto à divisa com a província de Benguela, sendo possível discernir as diferenças litológicas entre as referidas formações de Catumbela e de Quissonde (FIGURAS 4 e 5). Porém, entre toda a envolvência carbonatada das cercanias do Sumbe, destacam-se outros geossítios, mas por razões geomorfológicas. São eles, a garganta do Quicombo (FIGURA 6A) e as grutas da Sassa (FIGURA 6B)8,9. No primeiro caso, resultado da ação fluvial do rio Quicombo (ou Cubal), já muito perto da sua foz. As grutas da Sassa estão inseridas numa paisagem cársica muito particular e ainda pouco conhecida e valorizada, que inclui a circulação subterrânea parcial do Cambongo, rio que desagua junto à capital da Província10.


FIGURA 4. Praia do Tapado, zona costeira junto ao limite entre as províncias do Cuanza Sul e de Benguela. De realçar, o contraste litológico bem patente na imagem entre as duas formações albianas de Catumbela (na base) e de Quissonde (unidade mais margosa).

São de facto muitos os lugares de interesse geológico do Cuanza Sul, e não nos desviámos assim tanto da sua zona costeira. Entretanto, antes de concluir esta pequeníssima crónica sobre tão grande e sugestivo território, teremos de percorrer um outro rio, o Queve (ou Keve), também conhecido como Cuvo, já acima mencionado. A intenção é ir em direção a oriente, ou seja, para montante do rio, algo que não nos deixará de surpreender (FIGURA 7).


FIGURA 5. Aspeto dos calcários da Formação de Catumbela, cuja natureza litológica mais resistente, relativamente às unidades enquadrantes, imprime na paisagem uma morfologia muito peculiar. De notar, os efeitos da carsificação e a vegetação espinhosa que constituem bons marcadores cartográficos desta unidade.


FIGURA 6. A) Garganta do rio Quicombo, um pouco antes deste se espraiar na sua foz. As margens do rio são aqui representadas por unidades do Albiano ao possível Turoniano7; B) Curso do rio Cambongo, que emerge à superfície junto às grutas da Sassa (lado esquerdo da imagem). O encaixe do rio é feito em unidades do Albiano, desenvolvendo-se para norte, antes de infletir em direção ao mar.


FIGURA 7. Um dos grandes meandros do rio Queve, ladeando a lagoa de Pemba. Ao fundo, o rio é envolvido por pequenas colinas carbonatadas com rochas datadas do Aptiano. Estamos muito perto do bordo oriental da Bacia do Cuanza, ou seja, das suas unidades mais antigas.

Este percurso, realizado inevitavelmente por estrada, tem por objetivo a observação das unidades basais que preenchem a Bacia do Cuanza, como são os casos das formações do Binga e do Cuvo5,6. Esta última, a mais antiga de todas (de possível idade ante barremiana), muito bem reconhecida nas múltiplas sondagens de prospeção petrolífera, realizadas em toda a bacia, mas de muito difícil observação em afloramento. Apesar da natural emoção, não sendo um objeto geológico particularmente fotogénico, guardamos as imagens para o que vem a seguir. Concretamente, o lugar onde o percurso do rio abandona as rochas sedimentares e, num plano morfológico mais alto, mas ainda muito distante da sua nascente – imagine-se, lá para o Huambo! –, corta unidades do bem antigo Maciço ígneo-metamórfico11. Uma marca distinta deixada na paisagem, através das Cachoeiras do Binga, geradas pela diferença litológica entre as rochas sedimentares mais brandas da Bacia do Cuanza e as mais competentes, datadas do Pré-Câmbrico (FIGURA 8)9. O impacto desta pequena maravilha da natureza é tal, que o motivo é retratado numa das edições da nota angolana de 100 kwanzas. De frente para o plano superior da cachoeira principal, um reflexo da antiga colonização portuguesa, com o que resta de uma antiga ponte sobre o Cuvo (FIGURA 9). Retomando a ponte nova, está na hora de voltar ao Sumbe e esperar pela incursão geológica na Província de Benguela.


FIGURA 8. O limite oriental da Bacia do Cuanza, aqui materializado pelas impactantes Cachoeiras do Binga com águas do rio Keve. As cascatas resultam do contraste morfológico entre as rochas do Maciço ígneo-metamórfico do Pré-Câmbrico e os sedimentos cretácicos mais basais.


FIGURA 9. Resquícios da ponte portuguesa sobre o rio Keve/Cuvo onde é possível observar a parte superior das Cachoeiras do Binga.

NOTA:

O autor agradece aos companheiros de viagem e de observações geológicas, Januário Segundo, Alberto Gonçalves, João Cavita e Luís Meneses.