De regresso à geologia de Angola: I. A zona costeira de Luanda ao Cuanza Sul
📧
- MARE — Departamento de Ciências da Terra, Faculdade de Ciências e Tecnologia, Universidade de Coimbra
Referência Duarte, L.V., (2019) De regresso à geologia de Angola: I. A zona costeira de Luanda ao Cuanza Sul, Rev. Ciência Elem., V7(4):078
DOI http://doi.org/10.24927/rce2019.078
Palavras-chave Geologia, Miradouro da Lua, Angola, geomorfologia, estratigrafia
Resumo
Estamos de volta a Angola. Ao país da Welwitschia, do Imbondeiro, da raríssima Palanca Negra, e de tantos outros símbolos e maravilhas naturais. Se juntarmos o riquíssimo património geológico reconhecido em todo o país, desde as Pedras Negras de Pungo Andongo à Bacia do Okavango, muito dificilmente se esgotará o tema. Até porque teríamos de passar toda uma vida neste deslumbrante país que é Angola! Depois do Planalto da Humpata e da Serra da Leba - um desses lugares de eleição -, e dos seus registos de vida proterozoica1, o objetivo desta nova visita é a vasta zona costeira de Angola com o seu magnífico registo sedimentar meso-cenozoico, que se perde de vista nas arribas que se prolongam entre as províncias do Cuanza (ou Kwanza) Sul e de Benguela. Lugares e geologia que, pela sua dimensão temática e interesse geológico, obrigam a duas crónicas distintas. A primeira delas reporta-se à primeira das províncias. A ideia é seguir depois para a vizinha Benguela, num percurso sempre contrário ao sentido da corrente superficial oceânica com o mesmo nome. O itinerário tem começo em Luanda.
Território que vive numa organização caótica, Luanda está assente em terrenos neogénicos e quaternários, carbonatados e arenosos, desde o primeiro dos seus andares, o Miocénico, ao Holocénico2. Não desmerecendo a importância destes depósitos, é nos efeitos de evolução paleogeográfica mais recente que se destacam na paisagem os aspetos geológicos mais relevantes de Luanda: os cordões de areia costeiros, intensamente antropizados, da Ilha de Luanda e da Restinga do Mussulo3. Construções sedimentares que fazem adivinhar que o modelo de deriva litoral dominante nesta parte do globo se faz tendencialmente de sul para norte. Sem a possibilidade de um sobrevoo, as melhores imagens, ainda por cima com a particularidade do zoom “à medida”, poderão ser obtidas a partir do Google Earth. Mas, num ápice, e sem necessidade de recorrer a qualquer voo “astral”, chegamos a um lugar do “outro mundo”: o conhecido Miradouro da Lua. Uma paisagem particularmente colorida e contrastante, bem de frente para o Atlântico Sul, mas onde a máxima “com os pés bem assentes na terra” não se apresenta muito fiável, dadas as fragilidades das rochas aí presentes. A beleza do local deve-se à ação combinada dos fenómenos de erosão atmosférica sobre litologias que se diferenciam por critérios de composição mineralógica e granulométrica (FIGURA 1). Estamos perante algumas das mesmas unidades neogénicas que ocorrem de forma menos expressiva e atrativa em Luanda. Segundo os especialistas, toda a sucessão sedimentar aqui observada reflete uma acumulação que se terá processado nos últimos 6 milhões de anos, registando importantes variações climáticas e do nível do mar. Grande parte do registo sedimentar é interpretado como uma fase de evolução deltaica que deu origem ao atual rio Cuanza e que a tectónica fez erguer para a posição morfológica atual4. Um pouco mais a sul, atravessamos o mais famoso canal fluvial de Angola e entramos na Província do Bengo, onde fica o Parque Nacional da Quiçama. Mas o nosso “safari” é essencialmente geológico. Para além de dar o nome ao rio e a duas províncias angolanas, o termo Cuanza é igualmente repartido pela grande bacia que enquadra todo o enchimento sedimentar desta vasta região e que se prolonga para offshore: a Bacia do Cuanza, mundialmente conhecida pelos seus importantes recursos em hidrocarbonetos5,6.
Percorridos pouco mais de uma centena de quilómetros, chegamos então à província do Cuanza Sul, o nosso principal foco. Uma região amplamente conhecida pelas plantações de café, que tem a cidade de Sumbe como capital. A antiga Novo Redondo do tempo colonial. Não sendo propriamente um território com mármores, tal como a original vila do Redondo no Alentejo, o carbonato domina igualmente as rochas da região, mas sob a sua variante sedimentar mais típica, o calcário. Esta rocha compõe a base das sucessões sedimentares que se observam na zona costeira do Cuanza Sul, porção onshore da Bacia do Cuanza, sob diversas tipologias litológicas. Unidades formadas em ambiente marinho e, já lá iremos, datadas de vários andares do Cretácico, o único período do Mesozoico aqui registado. De acordo com todos os modelos paleogeográficos, de um tempo consentâneo com a abertura do Atlântico Sul, que terá ocorrido “algum tempo” depois da génese da sua porção setentrional. As idades dos basaltos dos fundos oceânicos, bem como a dos sedimentos – mais antigos no hemisfério norte – que se lhes sobrepõem, assim o comprovam. Entre outras variantes litológicas, que envolvem unidades siliciclásticas e evaporíticas, este é o enquadramento geral da geologia que se estende até Benguela. Neste contexto, teremos de começar pela Província do Bengo, bem a norte, e pelo lugar musicado por Paulo Flores, o Cabo Ledo. Um dos lugares clássicos da estratigrafia da Bacia do Cuanza, de onde provém o nome da Formação de Cabo Ledo que é datada, com base no seu conteúdo paleontológico, do Cenomaniano5,6, o primeiro andar do Cretácico Superior. A imagem não é propriamente espetacular, mas o objeto é de excelência (FIGURA 2). O rol de afloramentos carbonatados adensa-se a partir de Porto Amboim com sucessões verdadeiramente espetaculares, essencialmente datadas do Albiano, o último andar do Cretácico Inferior que representa cerca de 12,5 milhões de anos. Um dos andares com maior duração de todo o Mesozoico7, e claramente o melhor representado no onshore de toda a bacia angolana, através das carismáticas formações de Catumbela e de Quissonde5,6. Por razões estéticas e, implicitamente pelas características geológicas, são propostas observações em dois locais. O primeiro deles, a uma extensa arriba localizada a sul de Porto Amboim, imediatamente a norte da foz do rio Queve, onde é possível observar uma das sucessões da Formação de Quissonde mais impressionantes de toda a bacia (FIGURA 3A), onde não faltam fósseis de invertebrados marinhos (FIGURA 3B).
O segundo deles corresponde à paradisíaca Praia do Tapado, junto à divisa com a província de Benguela, sendo possível discernir as diferenças litológicas entre as referidas formações de Catumbela e de Quissonde (FIGURAS 4 e 5). Porém, entre toda a envolvência carbonatada das cercanias do Sumbe, destacam-se outros geossítios, mas por razões geomorfológicas. São eles, a garganta do Quicombo (FIGURA 6A) e as grutas da Sassa (FIGURA 6B)8,9. No primeiro caso, resultado da ação fluvial do rio Quicombo (ou Cubal), já muito perto da sua foz. As grutas da Sassa estão inseridas numa paisagem cársica muito particular e ainda pouco conhecida e valorizada, que inclui a circulação subterrânea parcial do Cambongo, rio que desagua junto à capital da Província10.
São de facto muitos os lugares de interesse geológico do Cuanza Sul, e não nos desviámos assim tanto da sua zona costeira. Entretanto, antes de concluir esta pequeníssima crónica sobre tão grande e sugestivo território, teremos de percorrer um outro rio, o Queve (ou Keve), também conhecido como Cuvo, já acima mencionado. A intenção é ir em direção a oriente, ou seja, para montante do rio, algo que não nos deixará de surpreender (FIGURA 7).
Este percurso, realizado inevitavelmente por estrada, tem por objetivo a observação das unidades basais que preenchem a Bacia do Cuanza, como são os casos das formações do Binga e do Cuvo5,6. Esta última, a mais antiga de todas (de possível idade ante barremiana), muito bem reconhecida nas múltiplas sondagens de prospeção petrolífera, realizadas em toda a bacia, mas de muito difícil observação em afloramento. Apesar da natural emoção, não sendo um objeto geológico particularmente fotogénico, guardamos as imagens para o que vem a seguir. Concretamente, o lugar onde o percurso do rio abandona as rochas sedimentares e, num plano morfológico mais alto, mas ainda muito distante da sua nascente – imagine-se, lá para o Huambo! –, corta unidades do bem antigo Maciço ígneo-metamórfico11. Uma marca distinta deixada na paisagem, através das Cachoeiras do Binga, geradas pela diferença litológica entre as rochas sedimentares mais brandas da Bacia do Cuanza e as mais competentes, datadas do Pré-Câmbrico (FIGURA 8)9. O impacto desta pequena maravilha da natureza é tal, que o motivo é retratado numa das edições da nota angolana de 100 kwanzas. De frente para o plano superior da cachoeira principal, um reflexo da antiga colonização portuguesa, com o que resta de uma antiga ponte sobre o Cuvo (FIGURA 9). Retomando a ponte nova, está na hora de voltar ao Sumbe e esperar pela incursão geológica na Província de Benguela.
NOTA:
O autor agradece aos companheiros de viagem e de observações geológicas, Januário Segundo, Alberto Gonçalves, João Cavita e Luís Meneses.
Referências
- 1 DUARTE, L. V. Do Planalto da Humpata (Angola) aos micróbios do fundo do mar, Rev. Ciência Elem., V5(1):012. 2017.
- 2 ANTUNES, M. T. O Neocretácico e o Cenozóico do litoral de Angola, Junta de Investigações do Ultramar, Lisboa, 212p.. 1964.
- 3 AMARAL, I. Luanda e os seus dois arcos complexos de vulnerabilidade e risco, Territorium, 9, 89-115. 2002.
- 4 CAUXEIRO, C. et al. Stratigraphic architecture and forcing processes of the late Neogene Miradouro da Lua sedimentary prism, Cuanza Basin, Cuanza Basin, Angola. Journal of African Earth Sciences. 95, 77–92.
- 5 BROGNON, G. P. & VERRIER, G. R. Oil and geology in Cuanza basin of Angola, 50 (1), 108–158. 1996.
- 6 BROWNFIELD, M. E. Geology and total petroleum systems of the West-Central Coastal Province (7203), West Africa., 2207-B, 52 p.. 2006.
- 7 http://www.stratigraphy.org/index.php/ics-chart-timescale
- 8 LAPÃO, L. G. P. & SIMÕES, M. V. C. Notícia Explicativa da folha 184 – Novo Redondo, da Carta Geológica de Angola, escala 1:100 000, Direcção Provincial dos Serviços de Geologia e Minas, Luanda. 1972.
- 9 DUARTE, L. V. et al. Do Proterozoico da Serra da Leba (Planalto da Humpata) ao Cretácico da Bacia de Benguela (Angola). A geologia de lugares com elevado valor paisagístico, Comunicações Geológicas, 101, III, 1255-1259. 2014.
- 10 AMARAL, I. O Rio Cambongo-Negunza e os seus afluentes: um exemplo da complexidade de padrões de drenagem em Angola, Finisterra, XLI, 82, 15-48. 2006.
- 11 PERES, A. M. et al. Notícia Explicativa da folha 185 – Vila Nova do Seles, da Carta Geológica de Angola, escala 1:100 000, Direcção Provincial dos Serviços de Geologia e Minas, Luanda. 1970.
Este artigo já foi visualizado 14287 vezes.