Lugares Geológicos da Nova Escócia
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- * MARE — Departamento de Ciências da Terra, Faculdade de Ciências e Tecnologia, Universidade de Coimbra
- ɫ Trinity College Dublin/ DG/ ECN/ ICRAG
Referência Duarte, L.V., Silva, R. L., (2021) Lugares Geológicos da Nova Escócia, Rev. Ciência Elem., V9(1):005
DOI http://doi.org/10.24927/rce2021.005
Palavras-chave Nova Escócia, Jurássico, meso-cenozoico, Scotian Basin, Peggy’s Cove, granito monzonítico
Resumo
A pesca do bacalhau aproximou os portugueses do segundo maior país do mundo, em termos de território, o Canadá. Concretamente, da sua porção mais nordestina: a Terra Nova, banhada pela corrente fria de Labrador. Mas as relações entre os dois territórios, hoje delimitados pelo Oceano Atlântico, remontam há mais de 200 milhões de anos, quando ambos faziam parte da mega Pangeia, no tempo em que a costa leste americana colava com a correspondente do lado oeste europeu. Quando os dinossauros, acabados de aparecer - fazendo confiança nos seus primeiros fósseis, no Triásico -, circulavam livremente por aquilo que são hoje dois continentes perfeitamente individualizados. Mais tarde, durante o Jurássico, quando ainda colada aos terrenos canadianos, a Península Ibérica - em alguns instantes geológicos mais quentes -, se tornou mesmo na Jangada de Pedra de Saramago. Remontam a esse tempo os registos fossilíferos (amonites e belemnites), de origem marinha, que abundam pela zona costeira e, em grande parte, no centro-oeste de Portugal. Rochas sedimentares que a lógica da tectónica de placas – mais tarde responsável pela génese do Atlântico, e pelos efeitos da tectónica regional -, não deixou que grande parte dos terrenos jurássicos, então formados, sejam agora observados do outro lado do oceano. Desta vez, a nossa visita geológica situa-se um pouco mais a sul da Terra Nova, na contígua, mas igualmente pouco habitada, Nova Escócia (FIGURA 1).
Pelas razões (geológicas) acima apontadas, grande parte dos terrenos meso-cenozoicos, distintamente bem registados e aflorantes na África e Europa Ocidental, estão soterrados no offshore da costa leste do Canadá - na chamada Scotian Basin1 – e, por isso escondidos, pelo que os motivos a partilhar nesta crónica serão outros. Foram selecionados três locais, dois deles envolventes da Baía de Fundy, que corresponde a uma das regiões do mundo onde se observam as maiores amplitudes de maré.
Algo que, por si só, merece tempo disponível para monitorizar as suas consequências sobre a zona costeira. Sempre por ordem estratigráfica, do mais antigo para o mais recente, e não pela ordem geográfica, passamos por Peggy’s Cove, Joggins e Five Islands Provincial Park (FIGURA 1). Sítios que representam, de modo exemplar, outros tantos intervalos da história da Terra. E que, como veremos, ostentam um elevado valor geoturístico2.
Peggy’s Cove, situado a cerca de meia centena de quilómetros de Halifax, capital da província, é um lugar que suscitou tanta curiosidade como ansiedade, logo na primeira vez em que nos apercebemos da existência deste local, em viagem pelo canal televisivo Travel. Estamos na zona costeira atlântica, que mostra uma linha de costa intensamente recortada, fruto da invasão marinha que sucedeu à última fase glaciar - ocorrida há cerca de 16 mil anos -, e que inundou antigos canais fluviais. Em termos puramente cartográficos, são várias as semelhanças com as rias galegas, que desenham a costa do outro lado do Atlântico, quase à mesma latitude. Mas, aparentemente, não é a geologia o principal ponto de atração de Peggy’s Cove, mas sim, o seu farol, cuja imagem extravasa fronteiras, assim como toda a ambiência rústica e agreste do lugar, associada integralmente ao mar e ao mundo das pescas (FIGURA 2).
É tido como um dos faróis mais fotografados do Canadá, já que o seu porte estético lhe confere uma imagem de elegância e encanto intemporal. Mas, sejamos francos, a beleza do local é também marcada pela massa rochosa ígnea, plutónica, que sustenta o farol. Trata-se de uma das muitas espécies de granito, que o diagrama de Streckeisen diferencia como monzonítico3. Uma atribuição que resulta de uma simples contabilização modal ao microscópio dos seus componentes mineralógicos principais: quartzo, feldspato alcalino e plagioclase. Este tipo de granito, conhecido na região como monzogranito de Peggy’s Cove, mostra uma cor relativamente escura, devido à presença apreciável de um mineral dito secundário, a biotite, um filossilicato, também designado de mica preta. Nesta rocha definem-se ainda alguns corpos estranhos - encraves -, provenientes da rocha encaixante que o magma, anteriormente à sua solidificação, absorveu, mas cuja temperatura não conseguiu fundir (FIGURA 3)4.
Este granito, inserido num corpo muito mais vasto – no batólito de South Mountain -, está datado de cerca de 380 a 370 milhões de anos4, o que o encaixa no Período Devónico, em pleno Paleozoico. Estamos a 44˚ de latitude norte. Não tanto acima do posicionamento mais setentrional de Portugal e das rias galegas, já referenciadas. Mas, na Nova Escócia, os efeitos do frio são especialmente visíveis e sentidos, devido à influência da corrente gélida de Labrador, já que a corrente do Golfo, que irá aquecer o noroeste da Europa ocidental, circula muito para oriente. E são, precisamente, os efeitos do gelo no granito de Peggy’s Cove, processos que têm sido dominantes nesta porção do globo na história quaternária, mais recente da Terra, que moldaram a rocha de tal maneira, como uma espécie de lixa ou rebarbadora, que conferem a beleza final ao farol tão carismático.
Evidências adicionais da ação recente do gelo nas rochas são encontradas também através dos múltiplos exemplos de blocos erráticos, que se observam na paisagem (FIGURA 4)5. Parece estar encontrado um dos segredos do fascínio por Peggy’s Cove. Que começa, desde logo, no próprio nome. Combinações mais que perfeitas.
Atravessamos uma parte significativa da Nova Escócia para examinarmos um sítio geológico declarado como Património Mundial da UNESCO e localizado na Bacia de Cumberland: as arribas de Joggins, localizadas nas margens da Baía de Chignecto, um pequeno braço da grande Baía de Fundy (FIGURAS 1 e 5)6, 7, 8. Um local que regista um dos exemplos mais espetaculares, à escala mundial, do Carbónico superior, formalmente definido na tabela cronostratigráfica como Pensilvaniano. Esta distinção deve-se à magnífica sucessão estratigráfica de sedimentos dominantemente siliciclásticos e carbonosos, que ostentam uma fossilização de excelência e que inclui fósseis de invertebrados, vertebrados (com registos dos primeiros répteis conhecidos) e árvores de grande porte9, 10. Estas últimas, muitas vezes em posição de vida, o que é realmente extraordinário (FIGURA 6).
Ao longo das arribas, com quase 15 km de extensão de afloramento contínuo, definem- se sete unidades (formações), das quais, as duas mais antigas remontam à parte inferior do Carbónico, o Mississipiano, destacando-se a cor cinzenta e negra de grande parte da sucessão. Convém lembrar que o Carbónico - que no seu todo terá durado cerca de 60 milhões de anos - constitui o quinto Período do Paleozoico, sucedendo ao Devónico do granito de Peggy’s Cove, e que abrange a maior concentração de carvão acumulada em toda a história geológica do planeta. Este acontecimento deveu-se à forte acumulação e soterramento de vegetais, as gimnospérmicas, que tiveram neste período a sua maior expansão e taxa de evolução. Com o carbono a acumular-se de modo excessivo na litosfera, terá sido igualmente o intervalo da história da Terra em que a atmosfera terá sido menos “preenchida” por dióxido de carbono. Na verdade, e embora isso possa parecer contraditório, com concentrações muito semelhantes às atuais. Estas reflexões sobre este tema tão atual, como é o das alterações climáticas, podem ser constatadas no espaço museológico, criado para dar apoio ao importantíssimo registo documentado em afloramento (FIGURA 7). E até saber um pouco mais sobre este lugar tão original do planeta Terra.
Subindo no tempo geológico, damos mais uma volta pela Baía de Fundy, com a intenção de analisar mais um motivo geológico de extremo interesse, agora, da base do Mesozoico. Tal como na margem conjugada oriental do Atlântico, em Marrocos, a Nova Escócia mostra ótimas evidências da forte atividade vulcânica ocorrida há cerca de 200 milhões de anos (passagem Triásico – Jurássico) do que é apelidado de Província Magmática do Atlântico Central (CAMP)11. Ao tempo, gerada a uma latitude mais baixa, que a dinâmica da placa norte-americana fez deslocar mais para norte. Um desses locais está patente no Parque Provincial Cinco Ilhas, onde o corpo basáltico - incluído na Formação de North Mountain e datado essencialmente da extremidade inferior do Jurássico (Hetangiano) - se encontra “encaixado” entre duas unidades siliciclásticas de cor avermelhada12, 13. Inferiormente, contacta com a Formação de Blomidon, datada do Triásico Superior (FIGURA 8). Superiormente, com a Formação de McCoy Brook (FIGURA 9), associada a ambientes fluvial a lacustre, e onde se podem observar, por exemplo, registos de vertebrados terrestres do grupo dos tetrápodes13. Para além do importante significado global do episódio vulcânico, as altivas imagens que aqui se observam falam por si quanto ao impacto de toda a paisagem. Ambiências sedimentares não muito diferentes às registadas no Triásico do bordo ocidental da Península Ibérica, do lado de cá do Atlântico. Igualmente com afloramentos de referência, em lugares como Coimbra e Penela, no limite mais oriental da Bacia Lusitânica, ou em Silves e Vila do Bispo, na Bacia do Algarve. Nesta última, onde são conhecidas algumas evidências de natureza vulcânica14, embora com menos exuberância relativamente às ocorrências canadianas.
Depois dos locais “escolhidos a dedo”, concluímos esta visita pelo Canadá na pequena cidade de Lunenburg, sem aparente ligação com a geologia. Situada na fachada atlântica da Nova Escócia, não muito longe de Peggy’s Cove, mas claramente mais protegida do alto mar (FIGURA 1). Um exemplo de povoado com forte tradição marítima, mas no caso, exibindo uma arquitetura particular, bem colorida, marca da influência colonial inglesa.
A preservação é de tal ordem que se trata, para não destoar muito das nossas anteriores escolhas, de mais um sítio declarado Património Mundial pela UNESCO. Um autêntico museu a céu aberto, o que não impede a visita ao Fisheries Museum of the Atlantic. Uma preciosa relíquia em termos de informação histórica, também oceanográfica e geológica, e onde podemos apreender um pouco mais sobre o “nosso” tão apreciado bacalhau (FIGURA 10). Que, na Nova Escócia, tem um concorrente de peso: a lagosta americana, que é mais um ícone por estas águas particularmente frias.
Referências
- 1 WELSINK, H.J. et al., Tectono-Stratigraphy of Passive Margin off Nova Scotia, In: Tankard, A.J., Balkwill, J.R (eds), Extensional Tectonics and Stratigraphy of the North Atlantic Margins. American Association of Petroleum Geologists, Memoir, 31, 215-231. 1990.
- 2 CALDER, J. H. & DEMONT, G. J., Mineral Resources Branch, Report of Activities 2009. Nova Scotia Department of Natural Resources, Report ME, 1, 1-10. 2010.
- 3 BENN, K. et al. Geophysical and structural signatures of syntectonic batholith construction: the South Mountain Batholith, Meguma Terrane, Nova Scotia, Geophysical Journal International, 136, 144-158. 1999.
- 4 IMTIAZ, H., Petrogenesis of enclaves within the Peggy’s Cove monzogranite, Southern Nova Scotia, Canada, 20th Annual Keck Symposium, 255-261. 2007
- 5 MACDONALD, F. H., Glacial Geology and Geochronology of Peggy’s Cove Region, B.S.C Thesis, não publicada, Dalhousie University, 77 p. + 37 anexos. 2003.
- 6 DAVIES, S.J. & GIBLING, M.R., Architecture of coastal and alluvial deposits in an extensional basin: the Carbon-iferous Joggins Formation of eastern Canada, Sedimentology, 50, 415-439. 2003.
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- 9 FALCON-LANG, H.J. et al., The Pennsylvanian tropical biome reconstructed from the Joggins Formation of Nova Scotia, Canada, Journal of the Geological Society, 163, 561–576. 2006.
- 10 GREY, M. & FINKEL, Z.V., The Joggins Fossil Cliffs UNESCO World Heritage site: a review of recent research, Atlantic Geology, 47, 185-200. 2011.
- 11 MARZOLI, A. et al. Timing and duration of the Central Atlantic magmatic province in the Newark and Culpeper basins, eastern U.S.A, Lithos, 122, 175-188. 2011.
- 12 CIRILLI, S. et al., Latest Triassic onset of the Central Atlantic Magmatic Province (CAMP) volcanism in the Fundy Basin (Nova Scotia), Earth and Planetary Science Letters, 286, 514–525. 2009.
- 13 SUES, H.-D. & OLSEN, P. E., Stratigraphic and temporal context and faunal diversity of Permian-Jurassic continental tetrapod assemblages from the Fundy rift basin, eastern Canada, Atlantic Geology, 51, 139–205. 2015.
- 14 MARTINS, L.T. et al., Rift-related magmatism of the Central Atlantic magmatic province in Algarve, Southern Portugal, Lithos, 101(1- 2), 102-124. 2008.
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