Pelas razões (geológicas) acima apontadas, grande parte dos terrenos meso-cenozoicos, distintamente bem registados e aflorantes na África e Europa Ocidental, estão soterrados no offshore da costa leste do Canadá - na chamada Scotian Basin1 – e, por isso escondidos, pelo que os motivos a partilhar nesta crónica serão outros. Foram selecionados três locais, dois deles envolventes da Baía de Fundy, que corresponde a uma das regiões do mundo onde se observam as maiores amplitudes de maré.

Algo que, por si só, merece tempo disponível para monitorizar as suas consequências sobre a zona costeira. Sempre por ordem estratigráfica, do mais antigo para o mais recente, e não pela ordem geográfica, passamos por Peggy’s Cove, Joggins e Five Islands Provincial Park (FIGURA 1). Sítios que representam, de modo exemplar, outros tantos intervalos da história da Terra. E que, como veremos, ostentam um elevado valor geoturístico2.


FIGURA 1. Localização dos pontos propostos de observação geológica na Nova Escócia (Canadá).

Peggy’s Cove, situado a cerca de meia centena de quilómetros de Halifax, capital da província, é um lugar que suscitou tanta curiosidade como ansiedade, logo na primeira vez em que nos apercebemos da existência deste local, em viagem pelo canal televisivo Travel. Estamos na zona costeira atlântica, que mostra uma linha de costa intensamente recortada, fruto da invasão marinha que sucedeu à última fase glaciar - ocorrida há cerca de 16 mil anos -, e que inundou antigos canais fluviais. Em termos puramente cartográficos, são várias as semelhanças com as rias galegas, que desenham a costa do outro lado do Atlântico, quase à mesma latitude. Mas, aparentemente, não é a geologia o principal ponto de atração de Peggy’s Cove, mas sim, o seu farol, cuja imagem extravasa fronteiras, assim como toda a ambiência rústica e agreste do lugar, associada integralmente ao mar e ao mundo das pescas (FIGURA 2).


FIGURA 2. O principal retrato de Peggy’s Cove: o farol, imagem de marca do local, que se sobrepõe a corpo granítico de idade devónica.

É tido como um dos faróis mais fotografados do Canadá, já que o seu porte estético lhe confere uma imagem de elegância e encanto intemporal. Mas, sejamos francos, a beleza do local é também marcada pela massa rochosa ígnea, plutónica, que sustenta o farol. Trata-se de uma das muitas espécies de granito, que o diagrama de Streckeisen diferencia como monzonítico3. Uma atribuição que resulta de uma simples contabilização modal ao microscópio dos seus componentes mineralógicos principais: quartzo, feldspato alcalino e plagioclase. Este tipo de granito, conhecido na região como monzogranito de Peggy’s Cove, mostra uma cor relativamente escura, devido à presença apreciável de um mineral dito secundário, a biotite, um filossilicato, também designado de mica preta. Nesta rocha definem-se ainda alguns corpos estranhos - encraves -, provenientes da rocha encaixante que o magma, anteriormente à sua solidificação, absorveu, mas cuja temperatura não conseguiu fundir (FIGURA 3)4.

Este granito, inserido num corpo muito mais vasto – no batólito de South Mountain -, está datado de cerca de 380 a 370 milhões de anos4, o que o encaixa no Período Devónico, em pleno Paleozoico. Estamos a 44˚ de latitude norte. Não tanto acima do posicionamento mais setentrional de Portugal e das rias galegas, já referenciadas. Mas, na Nova Escócia, os efeitos do frio são especialmente visíveis e sentidos, devido à influência da corrente gélida de Labrador, já que a corrente do Golfo, que irá aquecer o noroeste da Europa ocidental, circula muito para oriente. E são, precisamente, os efeitos do gelo no granito de Peggy’s Cove, processos que têm sido dominantes nesta porção do globo na história quaternária, mais recente da Terra, que moldaram a rocha de tal maneira, como uma espécie de lixa ou rebarbadora, que conferem a beleza final ao farol tão carismático.


FIGURA 3. A) O pequeno porto existente no local, ladeado pela mesma rocha granítica. B) Detalhe do granito monzonítico, biotítico e granatífero de Peggy’s Cove, exibindo encrave microgranular máfico.

Evidências adicionais da ação recente do gelo nas rochas são encontradas também através dos múltiplos exemplos de blocos erráticos, que se observam na paisagem (FIGURA 4)5. Parece estar encontrado um dos segredos do fascínio por Peggy’s Cove. Que começa, desde logo, no próprio nome. Combinações mais que perfeitas.


FIGURA 4. Ação do gelo sobre o granito de Peggy’s Cove, notando-se o efeito de abrasão e a ocorrência de bloco errático no centro da imagem (zona costeira de Peggy’s Cove).

Atravessamos uma parte significativa da Nova Escócia para examinarmos um sítio geológico declarado como Património Mundial da UNESCO e localizado na Bacia de Cumberland: as arribas de Joggins, localizadas nas margens da Baía de Chignecto, um pequeno braço da grande Baía de Fundy (FIGURAS 1 e 5)6, 7, 8. Um local que regista um dos exemplos mais espetaculares, à escala mundial, do Carbónico superior, formalmente definido na tabela cronostratigráfica como Pensilvaniano. Esta distinção deve-se à magnífica sucessão estratigráfica de sedimentos dominantemente siliciclásticos e carbonosos, que ostentam uma fossilização de excelência e que inclui fósseis de invertebrados, vertebrados (com registos dos primeiros répteis conhecidos) e árvores de grande porte9, 10. Estas últimas, muitas vezes em posição de vida, o que é realmente extraordinário (FIGURA 6).


FIGURA 5. Arribas fossilíferas de Joggins junto à Baía de Chignecto. De realçar a cor escura da sucessão estratigráfica do Carbónico superior (Pensilvaniano) devido à grande abundância em matéria orgânica.

Ao longo das arribas, com quase 15 km de extensão de afloramento contínuo, definem- se sete unidades (formações), das quais, as duas mais antigas remontam à parte inferior do Carbónico, o Mississipiano, destacando-se a cor cinzenta e negra de grande parte da sucessão. Convém lembrar que o Carbónico - que no seu todo terá durado cerca de 60 milhões de anos - constitui o quinto Período do Paleozoico, sucedendo ao Devónico do granito de Peggy’s Cove, e que abrange a maior concentração de carvão acumulada em toda a história geológica do planeta. Este acontecimento deveu-se à forte acumulação e soterramento de vegetais, as gimnospérmicas, que tiveram neste período a sua maior expansão e taxa de evolução. Com o carbono a acumular-se de modo excessivo na litosfera, terá sido igualmente o intervalo da história da Terra em que a atmosfera terá sido menos “preenchida” por dióxido de carbono. Na verdade, e embora isso possa parecer contraditório, com concentrações muito semelhantes às atuais. Estas reflexões sobre este tema tão atual, como é o das alterações climáticas, podem ser constatadas no espaço museológico, criado para dar apoio ao importantíssimo registo documentado em afloramento (FIGURA 7). E até saber um pouco mais sobre este lugar tão original do planeta Terra.


FIGURA 6. Detalhe da fossilização de vegetais de grande porte no Pensilvaniano de Joggins. A) Fóssil de pequeno tronco em posição de vida. B) Fragmento de tronco fossilizado paralelo à estratificação.


FIGURA 7. Centro de interpretação das arribas fossilíferas de Joggins. A) Entrada principal. B) Aspeto geral da componente museológica.

Subindo no tempo geológico, damos mais uma volta pela Baía de Fundy, com a intenção de analisar mais um motivo geológico de extremo interesse, agora, da base do Mesozoico. Tal como na margem conjugada oriental do Atlântico, em Marrocos, a Nova Escócia mostra ótimas evidências da forte atividade vulcânica ocorrida há cerca de 200 milhões de anos (passagem Triásico – Jurássico) do que é apelidado de Província Magmática do Atlântico Central (CAMP)11. Ao tempo, gerada a uma latitude mais baixa, que a dinâmica da placa norte-americana fez deslocar mais para norte. Um desses locais está patente no Parque Provincial Cinco Ilhas, onde o corpo basáltico - incluído na Formação de North Mountain e datado essencialmente da extremidade inferior do Jurássico (Hetangiano) - se encontra “encaixado” entre duas unidades siliciclásticas de cor avermelhada12, 13. Inferiormente, contacta com a Formação de Blomidon, datada do Triásico Superior (FIGURA 8). Superiormente, com a Formação de McCoy Brook (FIGURA 9), associada a ambientes fluvial a lacustre, e onde se podem observar, por exemplo, registos de vertebrados terrestres do grupo dos tetrápodes13. Para além do importante significado global do episódio vulcânico, as altivas imagens que aqui se observam falam por si quanto ao impacto de toda a paisagem. Ambiências sedimentares não muito diferentes às registadas no Triásico do bordo ocidental da Península Ibérica, do lado de cá do Atlântico. Igualmente com afloramentos de referência, em lugares como Coimbra e Penela, no limite mais oriental da Bacia Lusitânica, ou em Silves e Vila do Bispo, na Bacia do Algarve. Nesta última, onde são conhecidas algumas evidências de natureza vulcânica14, embora com menos exuberância relativamente às ocorrências canadianas.


FIGURA 8. Magnífica imagem do contacto estratiforme entre a unidade siliciclástica de cor avermelhada da Formação de Blomidon, datada do Triásico Superior, com o corpo basáltico da Formação de North Mountain, datado da extremidade inferior do Jurássico (Parque Provincial Cinco Ilhas).

Depois dos locais “escolhidos a dedo”, concluímos esta visita pelo Canadá na pequena cidade de Lunenburg, sem aparente ligação com a geologia. Situada na fachada atlântica da Nova Escócia, não muito longe de Peggy’s Cove, mas claramente mais protegida do alto mar (FIGURA 1). Um exemplo de povoado com forte tradição marítima, mas no caso, exibindo uma arquitetura particular, bem colorida, marca da influência colonial inglesa.


FIGURA 9. Contacto por falha entre a sucessão arenosa da Formação de McCoy Brook (Hetangiano) e o basalto da Formação de North Mountain (lado direito) (Parque Provincial Cinco Ilhas).


FIGURA 10. O Fisheries Museum of the Atlantic em Lunenburg, com uma das múltiplas referências ao bacalhau, uma imagem de marca por estas paragens.

A preservação é de tal ordem que se trata, para não destoar muito das nossas anteriores escolhas, de mais um sítio declarado Património Mundial pela UNESCO. Um autêntico museu a céu aberto, o que não impede a visita ao Fisheries Museum of the Atlantic. Uma preciosa relíquia em termos de informação histórica, também oceanográfica e geológica, e onde podemos apreender um pouco mais sobre o “nosso” tão apreciado bacalhau (FIGURA 10). Que, na Nova Escócia, tem um concorrente de peso: a lagosta americana, que é mais um ícone por estas águas particularmente frias.