Para quem chega do Norte, a presente e primeira das viagens reporta-se ao primeiro dos Atlas e seus arredores, com início em Fez (FIGURA 1). Uma das quatro cidades imperiais marroquinas, conhecida pela sua singular medina e pelas não menos icónicas tinturarias. As imagens publicitárias da cidade e também de uma famosa telenovela da rede brasileira Globo que passou pelos canais portugueses no início do presente milénio, o Clone. Neste seriado, para além da temática do script, digamos que bem revolucionária como o próprio título sugere, são recorrentes cenários, muito sugestivos, de paisagens marroquinas e da cidade de Fez. Num deles, na maior das ficções, Jade – a principal protagonista – saía frequentemente da pretensa medina de Fez e entrava diretamente no deserto de areia… De facto, da medina de Fez ao deserto de areia, que o mesmo é dizer, ao Saara, não é assim tão rápido e leva o seu tempo. Um lugar que vai preencher o tema do terceiro capítulo desta viagem pelo país do Maghreb Ocidental, depois de transpormos o Médio e o Alto Atlas.

A cidade milenar de Fez fica exatamente na fronteira meridional da cadeia alpina do Rife, com rochas de várias tipologias, particularmente deformadas, a abrangerem grande parte da coluna cronostratigráfica2. A sul, desenha-se a planície agrícola do Saïss, implantada sobre terrenos cenozoicos, formados em ambiente essencialmente continental, e datados do Neogénico (Miocénico ao Quaternário)3.


FIGURA 1. As principais unidades morfostruturais do norte de Marrocos, bem como a localização dos pontos propostos de observação geológica em torno do Médio Atlas.

É neste contexto, que abarca a cidade de Fez, que é possível encontrar o aspeto geológico possivelmente mais marcante na paisagem: a grande massa de travertinos plio-quaternários, que dá relevo à cidade (FIGURA 2), sugerindo que as águas que por aí circulavam ao tempo da sua génese eram quentes e ricas em bicarbonato e em cálcio. Entretanto, estamos perto de Meknès, cidade vizinha, também imperial e capital do Reino de Marrocos sob o reinado do fundador da dinastia Alaouite, o sultão Moulay Ismaïl (1672-1727), e com a sua irrepetível Bab Mansour. Daqui a escolha é dar um outro pulo até à cidade santa, não menos secular, de Moulay Idriss para nos deslumbrarmos com as ruínas romanas de Volubilis, as mais importantes de Marrocos. Um património construído de natureza calcária, com “portas” abertas para a extensa planície cenozoica do Saïss (FIGURA 3).

Não havendo outra geologia merecedora de registo, ao contrário do vasto património cultural que se observa em cada esquina de Fez e de Meknès, deixamos estas urbes e dirigimo-nos em direção ao primeiro dos Atlas, o Médio Atlas, que emerge no horizonte a poucos quilómetros. Trata-se de uma cadeia montanhosa com uma “ossatura” visível essencialmente carbonatada, datada do Jurássico Inferior. Que se sobrepõe a rochas triásicas, algumas de natureza vulcânica e por vezes aflorantes, contactando estas com o Paleozoico através de discordância angular. Com grandes elevações, sempre associadas a relevantes estruturas tectónicas, compressivas, que podem transpor os 3000 metros, é nestas serranias marroquinas que se distingue a cidade de Ifrane que, devido à altitude, vegetação e arquitetura de grande parte dos seus imóveis mais recentes, é considerada a Suíça de Marrocos. Entre todas as diferenças, existem ainda duas particularidades que as diferenciam: a população de símios aqui residentes e as constantes bancadas ou quiosques improvisados de venda de minerais e de fósseis, que se repetem nas estradas marroquinas, a partir desta latitude e até à entrada do Saara. Uma evidência, inequívoca, de que estamos em Marrocos e também no seu melhor.


FIGURA 2. A labiríntica cidade de Fez. No topo da colina observam-se afloramentos de travertinos e tufos calcários do Plio-Quaternário. Como pontos de referência no topo da referida colina, os túmulos de Merinides (lado direito) e a Fortaleza do Norte (lado esquerdo).


FIGURA 3. Arco de Caracalla nas ruínas romanas de Volubilis, onde o calcário é rei. Porta “escancarada” de acesso à vasta e fértil Planície de Saïss (Cenozoico).

Todavia, as semelhanças geológicas com o centro da Europa não ficam por aqui, já que a morfologia do Rife e do Médio e Alto Atlas estão intimamente relacionadas com a compressão alpina4. No “sobe e desce” do Médio Atlas vislumbra-se uma geologia repleta de rochas carbonatadas, mas também siliciclásticas, maioritariamente datadas do Jurássico e Cretácico (também do Cenozoico). Estas unidades imprimem na paisagem os contornos da sua estratificação5, resultado de toda uma cronologia de eventos sedimentares, e também tectónicos (FIGURA 4), nem sempre fáceis de explicar - é aqui que entra o geólogo estruturalista para tentar desembrulhar o que a estratigrafia não alcança. Mas, neste caso, nem é preciso. Neste empilhamento sedimentar complexo ressaltam, por vezes, sucessões margo- calcárias que, devido à sua natureza mais branda, preenchem normalmente depressões, resultado dos efeitos erosivos a que foram sujeitas. Consequência de uma origem marinha, relativamente profunda, ocorrem nestas unidades onde dominam o carbonato, os minerais argilosos e o quartzo, fósseis de organismos nectónicos como as amonites e belemnites (FIGURA 5). A ocorrência dos primeiros, constituindo-se importantes fósseis-índice, torna possível uma datação bastante precisa, mas relativa, das unidades, do Pliensbaquiano - Toarciano, dois andares do Jurássico Inferior6. Este facto é importantíssimo, já que potencia o exercício de correlação com outros locais mais distantes, como é o exemplo de Peniche, em Portugal. Aquela que é a referência mundial para o limite entre os referidos andares7. Esta comparação permite discutir as variações paleoambientais ocorridas em várias partes do globo, as conexões paleobiológicas entre as diversas bacias sedimentares e configurar o contorno entre os continentes e os ambientes marinhos (paleogeografia) ao tempo da deposição.


FIGURA 4. A cidade de Boulemane, em pleno Médio Atlas, discernindo-se ao fundo da povoação uma pequena garganta que corta a crista fortemente inclinada de rochas carbonatadas do Jurássico Médio. Na última colina, realça-se uma sucessão de estratos sub-horizontais de idade cretácica.


FIGURA 5. Sucessão margo-calcária do Jurássico Inferior da região de Imouzzer Marmoucha (Médio Atlas), objeto de estudo científico. A ocorrência de fósseis de amonites permite datar a sucessão estratigráfica do Pliensbaquiano superior (exemplo da imagem; escala em milímetros) ao Toarciano inferior. Ou seja, rochas com cerca de 185 a 182 milhões de anos (perfil de Aït Moussa).

A poucos quilómetros de Aït Moussa, junto à localidade de Imouzzer Marmoucha, damos um salto gigantesco no tempo. Envolvida por corpos tabulares de natureza carbonatada (a que caracteriza grande parte do Médio Atlas), mais recentes, este local mostra uma bonita cascata (FIGURA 6). Aliás, o significado de Imouzzer em árabe. Mas a geologia não fica por aqui. Na frente da icónica queda de água aflora uma enorme parede de travertino, o mesmo tipo de rocha que se observa em Fez. Mais carbonato! Ou seja, uma precipitação permanente de carbonato de cálcio, que exemplifica na atualidade (o Holocénico) o que ficou registado na cidade imperial.


FIGURA 6. A cascata de Imouzzer Marmoucha, sendo visível uma impressionante acumulação de travertino e outras tipologias litológicas afins.

Como será fácil de conjeturar, poder-se-iam relatar aqui muitas outras evidências da geologia desta cordilheira, que tem uma curiosa subdivisão cartográfica entre os designados Moyen Atlas tabulaire e o Moyen Atlas plissé8. Percebe-se que no Médio Atlas teremos uma área de estrutura tabular e outra de estrutura deformada (dobrada). Porém, existe um outro motivo que seria o maior dos pecados ficar no esquecimento, dado o seu carácter singular neste domínio da África Ocidental: a ocorrência de vários cones, crateras e de outras feições vulcânicas, que conferem uma cor escura à paisagem (ocorrência de basaltos), a contrastar com os tons mais claros das rochas sedimentares encaixantes (FIGURA 7). Tendo os minerais e os elementos químicos apropriados para uma datação radiométrica francamente fiável, estes basaltos mostram uma idade quaternária9, 10, acontecimentos extraordinariamente recentes da história geológica de Marrocos, parcialmente contemporâneos das célebres evidências extrusivas, reconhecidas na região francesa de Auvergne11.

Abandonamos então o primeiro dos Atlas e penetramos no extenso planalto de Haute Moulouya, que faz a transição para o Alto Atlas (FIGURA 8). Entre a geodiversidade desta zona, desde as diferentes litologias e idades, destacam-se uns granitos variscos, pouco fotogénicos, mesmo junto à povoação de Zeïda, conhecida como a capital marroquina das maçãs! No contacto entre as rochas intrusivas e os sedimentos triásicos, de natureza arcósica (já que têm feldspato), que se lhes sobrepõem, ocorrem umas mineralizações de chumbo em forma de sulfureto, a galena (PbS), e de carbonato, a cerussite (PbCO3). Para os entendidos, estas ocorrências têm uma origem mineralógica que parece estar associada a processos de alteração pedogénica, num verdadeiro desígnio da natureza12.


FIGURA 7. Troço do Oued Guigou, junto a Foum Kheneg (crista no fundo da imagem com calcários do Jurássico Inferior), que corta uma planície composta por rocha basáltica do Plio-Quaternário.


FIGURA 8. O Planalto de Moulouya ilustrando o Jbel El Ayachi na frente norte do Alto Atlas (vista a partir da fronteira sul do Médio Atlas).

Contudo, em matéria de mineralizações não ficamos por aqui. A poucos quilómetros, temos o povoado de Mibladen, localidade mundialmente conhecida devido a uma das variantes mais sugestivas de outro mineral de chumbo, a vanadinite. Um clorovanadato (Pb5(VO4)3Cl), bastante atrativo, dados os seus cristais hexagonais avermelhados (FIGURA 9A)). Belas pedras! E isto não é tudo, já que estamos nas imediações de Midelt, a povoação que mais se destaca na região, sob a sombra do grande Jbel Ayachi, e com fortes tradições associadas à geologia.


FIGURA 9. A) Cristais de vanadinite sobre uma “base” de barite (sulfato de bário). Exemplar da região de Midelt com cerca de 7 cm de comprimento. B) Um dos muitos magasins de comércio de minerais e de fósseis de Midelt. Na imagem, geodes de quartzo para todos os gostos e placas de gesso logo na primeira fila. A contrastar, uma escultura de uma amonite pois, por estas bandas, a imaginação é muito fértil.

Além de nos depararmos entre os dois Atlas, como tal, objeto de paragem obrigatória, este local é um dos entrepostos comerciais de venda de minerais e de fósseis, e mais conhecidos de Marrocos. Um museu de geologia permanente e ao ar livre (FIGURA 9B)). Aqui, consideramo-nos em casa, sentindo apenas um desejo secreto de entrar novamente, e rapidamente, no Alto Atlas.