Geologia de Marrocos (II)
Da morfologia do Alto Atlas ao Jurássico do Mar de Tétis
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- * Universidade de Coimbra/ MARE/ DCT
- ɫ Université Moulay Ismail/ Meknès/ Marrocos
Referência Duarte, L. V., Sadki, D., (2021) Geologia de Marrocos (II), Rev. Ciência Elem., V9(2):039
DOI http://doi.org/10.24927/rce2021.039
Palavras-chave Marrocos, Alto Atlas, Jurássico, Mar de Tétis, Planalto de Moulouya
Resumo
Finda a jornada pelo Médio Atlas, a proposta é inspecionarmos o seu “irmão”, o Alto Atlas que, pelo nome, parece ser muito mais grandioso e imponente. Como veremos, é a pura verdade. São várias as hipóteses de entrar nesta extensa cordilheira, embora poucas as que permitem atravessá-la de modo contínuo, rápido e confortável. O que não é um problema. Estando no Planalto de Moulouya, nada como percorrer a mítica estrada que corta transversalmente toda esta estrutura geológica de origem alpina, e que liga as cidades de Midelt a Errachidia, esta última, já na fronteira com o cratão do Saara (FIGURA 1). Uma experiência inesquecível em termos geomorfológicos, e ainda mais para quem dedica o seu estudo principal à sedimentologia dos carbonatos, à paleontologia e ao Jurássico, com afloramentos a perder de vista. Na escala de tempo geológico, este é o período melhor representado por mais de 130 quilómetros de asfalto1, 2, que corta diferentes estruturas e dá azo aos melhores exercícios de cortes geológicos3, 4. E há que não esquecer a paleogeografia, pois o registo sedimentar jurássico aqui patente reproduz a deposição ocorrida no Mar de Tétis, na sua porção mais ocidental. Tudo em grande e em bom!
Numa pequena escala, e basta olhar para uma imagem do Google Earth, o Alto Atlas exibe uma orientação aproximada E-W, apresentando um conjunto de morfologias paralelas, alinhadas segundo a mesma direção da cordilheira. São as famosas cristas, ou “rides” - dos ex-colonos franceses -, e que é impossível passarem despercebidas na paisagem (FIGURA 2).
Tais estruturas não são mais do que alinhamentos tectónicos que fizeram sobre-elevar rochas carbonatadas do Jurássico basal, particularmente competentes e resistentes à meteorização. A geologia destas estruturas constrasta com os sedimentos margo-calcários, particularmente espessos - com centenas de metros de espessura -, que se lhes sobrepõem do ponto de vista estratigráfico – o sempre Princípio da Sobreposição -, e que preenchem as contíguas depressões através de largas estruturas em sinclinal (FIGURA 3)3.
Estas rides são o resultado da reativação de falhas normais, pré-deposicionais, associadas à estruturação da bacia sedimentar - conhecida igualmente como do “Alto Atlas”, e que foi o recetáculo de todos estes sedimentos. E que, posteriormente, com os efeitos da mesma orogenia que originou os Alpes, jogaram - é mesmo o termo aplicado às falhas -, no sentido inverso, resultado da forte compressão que teve lugar durante o Cenozoico4. Fenómenos tectónicos semelhantes explicam as várias cristas, igualmente de rocha carbonatada (calcários e dolomias), que se observam no Médio Atlas5. Bem como a natureza paleoambiental da maioria dos sedimentos jurássicos, que se depositaram em ambiente marinho. Neste aspeto, e porque se tratam de locais muito sugestivos com vista a vários flashs fotográficos, é possível ir mais longe nesta visita ao Alto Atlas, e centrar-mo-nos em três sítios de particular interesse geológico. O exercício que se propõe é o da aplicação dos Princípios da Geologia, muito com base no conteúdo fossilífero das rochas carbonatadas. A perspetiva é olhar mais em detalhe para o registo sedimentar e fazer uso do conceito de fóssil de fácies e daí chegar ao (paleo)ambiente deposicional.
O primeiro dos geossítios é a crista de Foum Tillicht (FIGURA 2), onde podemos passar um bom par de horas e analisar outros aspetos interessantes da geologia sedimentar aqui aflorantes6. Mas, entre as centenas de estratos de calcário que aqui se observam, podemos concentrar- nos numas morfologias, tipo domo, que contrastam com a estratificação reinante (FIGURA 4A)), e onde ocorrem fósseis de esponjas siliciosas (bioconstruções) (FIGURA 4B)).
Embora estes fósseis não sejam facilmente discerníveis a vista menos preparada, as análises ao microscópio petrográfico confirmam isso mesmo, através do registo da rede espicular que caracteriza estes organismos. Sendo a evidência clara de que estes sedimentos, datados do Sinemuriano (cerca dos 190 milhões de anos) e à custa de fósseis de amonites, se terão gerado em ambiente marinho7. Um ambiente que se tornou bastante mais profundo, cerca de 10 milhões de anos depois e de mais umas centenas de camadas acumuladas. Isso é demonstrado seguindo o Princípio da Sobreposição, no sopé da vertente norte da crista de Foum Tillicht. Numa sucessão muito mais margosa e por isso mais apta à meteorização. Além de se poder constatar uma das mais importantes variações sedimentológicas do Jurássico Inferior do Alto Atlas, resultante de uma subida relativa do nível do mar (FIGURA 5A)), os fósseis de amonites, que ocorrem em grande abundância (FIGURA 5B)), permitem correlacionar estes estratos com os observados em Aït Moussa, no Médio Atlas5. Estamos na presença da transição Pliensbaquiano - Toarciano2, 6. Não esquecendo, sendo a mesma transição cronostratigráfica que tem Peniche, em Portugal, como referência à escala global8.
Ultrapassada a referida crista em direção a sul, onde é possível detetar os reais efeitos da tectónica, atravessa-se o imenso vale onde fica Rich. Um ícone populacional do Alto Atlas, localizado num dos seus pontos mais centrais, e rodeado de cristas por todos os lados (FIGURA 6).
Estamos no núcleo de uma grande estrutura em sinclinal, preenchida por uma espessa sucessão margo-calcária datada da parte inferior do Jurássico Médio. Onde também não faltam fósseis de amonites, que permitiram identificar nesta região o corte de referência marroquino para o limite Aaleniano - Bajociano9. É sobre esta sucessão de grande importância estratigráfica que a este de Rich, no Jbel Assameur N’Ait Fergane, se observa uma construção recifal coralífera, com vários quilómetros de extensão. Este registo aglutina um conjunto de bioconstruções lenticulares (pináculos), que se repetem lateralmente e são bem visíveis a grande distância (FIGURA 7). Dada a raridade, uma imagem que deixa qualquer sedimentólogo de “boca aberta”! Se há momentos em que faltam as palavras, a contemplação deste afloramento será um deles. Segundo o Princípio do Atualismo, estas rochas bioconstruídas, datadas do Bajociano superior, terão resultado de um ambiente de plataforma marinha de muito baixa profundidade e com águas particularmente quentes10. De repente, uma espécie de “mergulho” no mar das Caraíbas ou em qualquer outro ambiente marinho de água tropical, como algumas ilhas do Índico ou do Pacífico11, embora ainda algo distante da longínqua e muito Grande Barreira Recifal da Austrália.
Todavia, não ficamos por aqui, nesta narrativa tão sustentada do ponto de vista sedimentológico e paleontológico. Aproximamo-nos do bordo mais meridional do Alto Atlas, com a geologia a tornar-se cada vez mais variada e complexa, e tudo por culpa, está claro, da tectónica. A estrada serpenteia paralelamente ao cada vez mais encaixado Oued Ziz, que já nos acompanha desde Rich, com rochas carbonatadas cada vez menos margosas, rodeada de cristas, falhas, estratos horizontais e inclinados, dobras, estruturas sedimentares diversas e depósitos conglomeráticos de vertente com blocos métricos, etc… Um verdadeiro compêndio ou atlas macroscópico de geologia. Mas não abandonamos os terrenos jurássicos. Junto a Aït Athmane, bem perto das conhecidas Gorges do Ziz (FIGURA 8) - outro local a exigir visita obrigatória -, ocorrem uns fósseis de bivalves muito particulares e curiosos, de grandes dimensões, os Lithiotis (FIGURA 9A)). Um privilégio poder observar in situ estas autênticas relíquias paleontológicas que proliferaram especificamente no Pliensbaquiano superior desta porção mais meridional do Alto Atlas, bem como noutras plataformas marinhas do Mar de Tétis12, 13. O modo de vida colonial destes bivalves, à semelhança dos rudistas, seus parentes, também coloniais e do Cretácico, é facilmente entendido, já que estão profusamente associados, nos mesmos estratos, a fósseis de corais (FIGURA 9B)). Pelo posicionamento estratigráfico, semelhante ao observado em Foum Tillicht, pode concluir-se que o ambiente marinho entre estes dois locais terá sido bem diferente. Com as condições sedimentares do Pliensbaquino terminal de Aït Athmane mais próximas das ocorridas no Bajociano coralífero da vizinha Rich. Ótimo exercício de comparação.
Com a aproximação a Errachidia, descendo gradualmente na altitude, saímos do Alto Atlas e da sua complexidade tectónica, bem como dos terrenos jurássicos que sustentam toda a cordilheira. Com isto, subimos na série estratigráfica, para sedimentos do Cretácico e Cenozoico, muito mais tabulares, devido à sua estrutura sub-horizontal, as hamadas14. No vasto horizonte temos então o infindável Saara que se espraia para sul e contacta a ocidente com os terrenos mais antigos do Anti-Atlas. Em simultâneo, descobre-se uma África “mais negra”, com algumas variantes visíveis na própria cultura marroquina. Isto, sem perder de vista o Ziz, que continua a “sobreviver” neste lugar cada vez mais árido, até dissipar-se no deserto de areia. A paisagem, essa, continua soberba, através do oásis contínuo e bem verdejante, criado pelo fio de água que foi escavando os terrenos de idade cretácica (FIGURA 10).
Resta chegar a Erfoud, a conhecida e verdadeira “porta do deserto” e esperar pelo próximo capítulo marroquino, o mais diverso do ponto de vista geológico, cronostratigráfico e paisagístico.
Referências
- 1 WARME, J.E., Jurassic carbonate facies of the central and eastern High Atlas rift, Morocco, The Atlas system of Morocco. Lectures Notes Earth Sciences 15, 169–199. 1988.
- 2 MILHI, A. et al., Les formations lithostratigraphiques jurassiques du Haut-Atlas central (Maroc): corrélations et reconstitutions paléogéographiques, Révue de Paléobiologie, 21, 1, 241-256. 2002.
- 3 ARBOLEYA, M.L. et al., A structural transect through the High and Middle Atlas of Morocco, Journal of African Earth Sciences, 39, 319–327. 2004.
- 4 TEIXELL, A. et al., Tectonic shortening and topography of the central High Atlas (Morocco), Tectonics, 22, 1051. 2003.
- 5 DUARTE, L. V. & SADKI, S., Geologia de Marrocos: I. Retratos do Sul do Rife ao Médio Atlas, Rev. Ciência Elem., V9(2):035. (2021). DOI: 10.24927/rce2021.035.
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- 9 SADKI, D., Proposition de la région de Rich (Haut-Atlas central marocain) comme stratotype auxiliaire subméditerranéen pour la limite Aalénien-Bajocien, Géobios Lyon M.S., 17, 431-440. 1994.
- 10 AIT ADDI, A. & CHAFIKI, D., Sedimentary evolution and palaeogeography of mid-Jurassic deposits of the Central High Atlas, Morocco, Journal of African Earth Sciences, 84, 54–69. 2013.
- 11 DUARTE, L. V., Mergulhando no Oceano Índico – O paraíso das Maldivas, Rev. Ciência Elem., V4(4):025. (2016). DOI: 10.24927/rce2016.025.
- 12 FRASER, N. M. et al., Dissecting ‘‘Lithiotis’’ Bivalves: Implications for the Early Jurassic Reef Eclipse, Palaios, 19, 51–67. 2004.
- 13 BRAME, H.-M. R. et al. Stratigraphic distribution and paleoecological significance of Early Jurassic (Pliensbachian- -Toarcian) lithiotid-coral reefal deposits from the Central High Atlas of Morocco, Palaeogeography, Palaeoclimatology, Palaeoecology, 514, 813-837. 2019.
- 14 ZOUHRI, S. et al., The Cretaceous-Tertiary Plateaus, Evolution: The Geology of Morocco, Lectures Notes in Earth Sciences, 116, 331-358. 2008.
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