De facto, desde esta experiência seminal, com a compreensão da estrutura do ADN e do código genético, podemos traçar a história da evolução até à vida unicelular. No entanto, isto levanta um problema uma vez que o ADN é uma forma bastante eficiente de armazenar informação, mas para funcionar as células dependem de outras moléculas, proteínas, para se replicarem, crescerem e sobreviverem. As proteínas, por um lado, são máquinas moleculares muito eficientes para manter as células vivas e saudáveis, mas são incapazes de armazenar informação ou de fazer cópias de si próprias, uma vez que requerem o ADN para tal. Assim, o ADN precisa de proteínas para funcionar e as proteínas precisam de ADN para existir. Então, o que veio primeiro? Qual a molécula que tornou a vida possível? Cientistas propuseram vários cenários sobre o conjunto primordial de biomoléculas. De facto, existe um terceiro tipo de molécula que pode conter a resposta: a ARN.

Um argumento a favor do ARN como molécula primordial é poder transportar informação genética e também servir como catalisador químico proteico, acelerando certas reações. Muitos cientistas pensam que o ARN pode ter sido a molécula primordial, pois para além de poder transportar informação genética, pode também servir como catalisador químico proteico, acelerando certas reações. De facto, as propriedades enzimáticas do ARN sugerem fortemente que estas podem ter desempenhado um papel fundamental na cadeia de eventos que conduziram às características mais básicas da vida. Acredita-se que este “mundo ARN” seja uma hipótese bastante plausível2, ainda que nunca tenha sido completamente verificada. No entanto, resultados recentes devidos a John Sutherland e colaboradores3 demonstraram que a verificação da hipótese do ARN pode estar ao nosso alcance. Isto é apoiado pela complementaridade das bases nucleotídicas (que promove uma replicação exata, pois uma sequência serve como modelo para a outra) e também pela descoberta das ribozimas, moléculas de ARN que têm a capacidade de catalisar reações bioquímicas. Por esta razão, as ribozimas, viroides e virusóides são considerados como “fósseis moleculares” do Mundo ARN.

Por outro lado, também é verdade que moléculas orgânicas e aminoácidos podem ser constituídos em nuvens interestelares, como demonstrado por análise espectroscópica4, 5, mas as estimativas mostram que as suas concentrações são muito modestas e, portanto, não parecem fornecer condições adequadas para um maior desenvolvimento. Além disso, a vida na Terra depende fundamentalmente da presença de água, que, embora presente no espaço, não parece ser particularmente abundante. De facto, no Sistema Solar, por exemplo, para além da Terra, apenas Europa e Enceladus apresentam provas da existência de oceanos sob as suas superfícies geladas. Titã, por exemplo, embora rico em compostos orgânicos, gasosos e líquidos, não mostra quaisquer vestígios de água. Claro que a descoberta de mais de 4000 exoplanetas (acredita-se que existem cerca de 6 x 109 exoplanetas na nossa Galáxia) torna a procura de uma combinação adequada de moléculas e nichos de vida muito mais excitante, mas atualmente não se conhece nenhum meio fiável para aceder diretamente à informação relevante sobre estas questões.

Com certeza, a vastidão do Universo e a multiplicidade de condições que ele pode acolher poderiam, em princípio, conduzir a melhores condições para nutrir o surgimento da vida do que as que existiam na Terra primitiva. De facto, princípios físicos bastante gerais de invariância como a invariância de Lorentz, invariância de posição local, o Princípio de Equivalência (e consequente universalidade da gravitação) sugerem fortemente, teórica e experimentalmente, a universalidade das leis da física6. Segue então a universalidade das leis da química e, portanto, a plausível suposição de que se a vida apareceu na Terra, ela pode aparecer noutras partes no Universo7, 8, 9. Naturalmente, o inverso também é verdade e, portanto, a hipótese do aparecimento da vida na Terra ou noutro lugar, a hipótese da Panspermia, não deve ser considerada como contraditória, mas de facto como complementar à hipótese de Oparin-Haldane.

A hipótese da Panspermia postula que a vida se formou em pelo menos outro local para além da Terra, sendo depois espalhada a planetas como o nosso, assumindo que este processo de entrega é mais rápido do que a geração biótica local. De mais, como discutido recentemente por Wickramasinghe10, uma importante reivindicação da Panspermia é a descoberta de material biótico extraterrestre em meteoritos. Contudo, este material carece de fracionamento, ou seja, apresenta todo o tipo de moléculas, enquanto que é natural esperar da química biótica sinais claros de seleção11. Isto constitui um argumento forte contra a Panspermia. Outro marcador frequentemente mencionado, a existência de quiralidade no material biótico meteórico, tomado por alguns como prova de seleção biótica, pode ser explicada por processos abióticos alternativos12. Quanto aos chamados “micro-fósseis”, supostamente presentes, por exemplo, no meteorito de Murchison, a sua validade como indicadores de vida é bastante controversa. De facto, estes micro-fósseis foram observados três décadas após à queda do referido meteorito, uma escala temporal que poderá ter permitido todo o tipo de contaminações13. E mais, mesmo que a resiliência observada das formas primitivas de vida observadas na Terra sugira que o transporte e receção não sejam um problema, como proposto pela Panspermia, o desafio de alcançar as características básicas da vida a partir das condições abióticas permanece sem resposta. (Notar que estas formas primitivas de vida, os organismos do domínio da Archaea, são unicelulares, omnipresentes na Terra, e incluem extremófilos que podem sobreviver em ambientes como o mar profundo, fontes termais, permafrost, lagos salgados e regiões áridas; alguns têm demonstrado resistir a condições espaciais simuladas14).

Portanto, na nossa opinião, o enigma de explicar a origem da vida não é de todo resolvido pela hipótese da Panspermia. Na verdade, em muitos aspetos, esta hipótese levanta mais questões do que as que aparentemente resolve.

Consequentemente, algumas questões surgem imediatamente15:

  • A água líquida tem muitas peculiaridades que lhe conferem propriedades bastante especiais: a capacidade de formar ligações de hidrogénio, polaridade e a constante dielétrica elevadas. Na presença de água líquida, grandes moléculas orgânicas dividem-se em grupos de natureza hidrofóbica ou hidrofílica. Esta dualidade pode dar origem situações interessantes, tais como agregados estereosseletivos de pequenas sequências peptídicas de resíduos hidrofóbicos ou hidrofílicos, em alternativa a folhas termoestáveis \(\beta\) pontilhadas com aditividade química. A água líquida é também um poderoso agente hidrolítico. Como tal, permite características que não têm correspondência em nenhum solvente orgânico16. Assim, a interrelação entre a água e a origem das primeiras formas de vida na Terra é fisicamente natural. Sabe-se também que não há provas da presença de grandes quantidades de água no espaço, exceto nos ambientes acima mencionados. Assim, num ambiente onde a água não parece ser particularmente abundante, como poderá ter sido possível criar condições bióticas a partir de condições pré-bióticas?
  • Constatamos que na argumentação contra a biogénese local, inúmeros detalhes relevantes são omissos10. Por exemplo, apresentam-se muitos pressupostos inexplicados, tais como a definição da montagem espontânea de uma ribozima, uma molécula com cerca de 300 bases azotadas, como primeiro passo. Outro ponto questionável é o fator de amplificação apresentado para a transferência interestelar de vida, que carece de uma derivação e de uma prova de suficiência. Só depois de modelar rigorosamente os processos locais que conduzem das moléculas abióticas às bióticas, quer nos planetas quer no espaço, e a amplificação proporcionada pela transferência interestelar, é que se poderia determinar adequadamente se a formação das primeiras moléculas de vida no nosso planeta é mais provável ou não do que a sua formação no espaço. Mais especificamente, embora o número de disseminadores iniciais esteja relacionado com os primeiros fatores da equação de Drake, os processos dinâmicos que dão origem às moléculas bióticas são complexos e assemelham- se mais a modelos de propagação em rede17. (A equação de Drake foi proposta em 1965 pelo astrofísico norte-americano Frank Drake para estimar o número de civilizações das quais poderíamos putativamente receber mensagens. Os primeiros termos desta equação representam a taxa de formação de estrelas no tempo de vida da galáxia, a fração de estrelas que admitem um sistema planetário e o número médio de planetas, em torno de uma estrela, que abrigam vida). Portanto, parece lógico indagar como se pode comparar a probabilidade da Panspermia relativamente à de biogénese local?

Para concluir podemos afirmar que, com base na observada plasticidade da vida na Terra, é natural inferir que a multiplicidade de formas que a vida pode assumir no Universo desafia a imaginação. A recente deteção de fosfina (PH3) na atmosfera de Vénus feita através do James Clerk Maxwell Telescope, situado no Hawai, e do radiotelescópio Atacama Large Millimeter/submillimeter Array (ALMA), localizado no Chile, por uma equipe internacional (EUA, Japão, Reino Unido)18 pode ser uma evidência deste facto. Na Terra, a fosfina é produzida através de processos industriais ou por organismos vivos anaeróbios. Apesar da fosfina existir na atmosfera de Júpiter e Saturno devido às suas elevadas temperatura e pressão do hidrogénio, em planetas telúricos como a Terra (e Vénus), tanto quanto sabemos, a sua presença por meio de processos naturais só pode ser explicada pela via biológica. Se a fosfina observada em Vénus tiver uma origem biológica, será de facto surpreendente dadas as condições extremas de temperatura e acidez existentes na atmosfera daquele planeta.