Adão:

– A distinção mais óbvia que podemos fazer entre Ciência e Arte é que pela primeira buscamos o que é Verdade e, pela segunda, o que é Belo, ou tem valor estético.

Eva:

– Essa distinção é um pouco ingénua, não?

Para começar, não existe qualquer consenso sobre o que é a Arte. Ninguém duvida que o teto da Capela Sistina de Miguel Ângelo, ou o “Nascimento de Vénus” de Botticelli são obras de arte; e os 4’33’’ de John Cage, uma peça de música(?) de total silêncio com a duração de 4 minutos e 33 segundos, reunirá o mesmo consenso?

A:

– Pelo menos aprende-se depressa e executa-se só com um cronómetro!

E:

– Além disso, parece-me inegável que grandes obras de arte, como os Sonetos de Camões, as peças de Shakespeare, as obras de Dostoiévski, Tolstoi, as óperas de Mozart, ou mesmo uma sonata de Beethoven, nos ensinam algo de muito valioso, muito verdadeiro, sobre quem somos e o que nos move. Ignorar a verdade que nos chega da Arte ou da Filosofia e da Religião é perigoso para a saúde da família humana.

A:

– A superioridade da Ciência na procura da verdade é evidente. Ao contrário do que alguma crítica sugere, um cientista vê uma parte das questões levantadas pela sua disciplina como definitivamente resolvidas, o que não sucede noutros campos.

E:

– Essa afirmação surpreende-me. Não é verdade que Einstein destruiu os alicerces da magnífica construção de Newton e que a Mecânica Quântica abalou de tal modo a visão do mundo de Einstein que este nunca se conformou com ela? Por que é que achas que isso não vai continuar a acontecer?

A:

– Se assim fosse, por que razão começam todos os cursos de Física pela Mecânica Newtoniana? Os cursos de Engenharia Mecânica não estudam carros de bois! Será apenas por razões de método ou pedagógicas? Não, de todo! A verdade é que se a Relatividade Geral não se reduzisse, em certos limites, à mecânica e gravitação de Newton, não seria uma proposta viável, pois seria falsificada pelas inúmeras observações que nos conduziram, por acumulação de evidência, a dar o nosso assentimento à Mecânica Newtoniana. Ainda hoje muitos físicos partilham com Einstein o incómodo sobre a estranha visão de realidade que nos dá a Mecânica Quântica. Sonham substituí-la por algo mais compatível com os seus (pre?)conceitos epistemológicos. Ainda que isso venha a acontecer, tenho muitas dúvidas que nos possa trazer uma visão da realidade mais confortável para o nosso espírito; julgo que essa putativa teoria terá, de novo, de conter a Mecânica Quântica como limite. Porquê? Porque, citando Heisenberg e Bohra, “a Mecânica Quântica funciona!”

E:

– E “funciona” equivale a ser Verdade?

A:– Apetece-me responder-te como Pilatos: “o que é a Verdade?”. Mas não vou por aí. A segunda razão (a principal, na minha opinião) para o sucesso da Ciência na civilização contemporânea é essa: Funciona! Por outras palavras, proporcionou-nos um enorme poder para intervir na natureza, para o bem e para o mal note-se, e para modificar as nossas vidas. A tecnologia é o grande trunfo cultural da Ciência. Sem esse trunfo, quem subscreveria o parágrafo final do An Enquiry Concerning Human Understanding (Investigação sobre o Entendimento Humano) de David Hume?


"When we run over libraries, persuaded of these principles, what havoc must we make? If we take in our hand any volume; of divinity or school metaphysics, for instance; let us ask, Does it contain any abstract reasoning concerning quantity or number? No. Does it contain any experimental reasoning concerning matter of fact and existence? No. Commit it then to the flames:* For it can contain nothing but sophistry and illusion".b


E:

– Pergunto-me se a recomendação de Hume se aplica não apenas à metafísica, mas também à literatura ou à arte em geral, da qual se encontram quase sempre ausentes raciocínios abstratos quantitativos ou de natureza experimental. Devemos confinar os sonetos de Camões ou os “Irmãos Karamazov” de Dostoiévski às chamas também?

A:

– De modo nenhum! No parágrafo anterior Hume sugere excluir o Valor Estético do âmbito da Razão:


"Beauty, whether moral or natural is more properly felt than perceived".


Além disso Hume foi durante 5 anos o responsável por uma biblioteca, e não consta que tivesse causado qualquer dos estragos que advogava. Não desconverses: estamos a falar de Verdade e não de emoções ou sentimentos.

E:

– Seja como for, Hume apresenta um critério rigoroso para qualquer tipo de conhecimento que considere válido, e que, de certo modo, se encontra cristalizado na ciência contemporânea. Significa isso que não devemos esperar encontrar Verdade em mais lado nenhum? Que, fora desse âmbito, só são de esperar delírios e fantasias?

A:

– A eficácia de critério de Hume é inquestionável, mesmo para os seus críticos. Vê o exemplo dos negacionistas da pandemia. Quando, desafortunadamente, ficam gravemente doentes, não escolhem eles(as) o hospital, na esperança de tratamento, suspendendo a sua suspeição sobre a ciência, sobre as gigantes farmacêuticas, ou sobre outros interesses obscuros que julgavam conspirar contra eles? Por outro lado, a multitude de opiniões filosóficas e crenças religiosas, a impossibilidade de discernir consensos e resolução definitiva de questões que apontei a propósito da Ciência reforçam a posição de David Hume.

E:

– Falaste na perenidade das teorias científicas. Mas quem pode, em bom juízo, descartar Platão como obsoleto e completamente ultrapassado, apesar dos 24 séculos de pensamento humano posterior? A perenidade do nosso interesse em Platão não demonstra que as suas interrogações são ainda as nossas? Tal como ninguém é físico sem conhecer a Mecânica Newtoniana, ninguém é filósofo sem conhecer Platão. Onde está a diferença, afinal?

A:

– Sim, concordo que a tradição do nosso pensamento deve ser conhecida. Mas isso é apenas porque os fragmentos de verdade que possam existir no pensamento de Platão ou dos antigos ainda esperam a confirmação pelo progresso da neurobiologia, da ciência do cérebro e do comportamento humano. Ainda há hiatos no nosso conhecimento, mas eles serão preenchidos pela Ciência. Então leremos Platão pelo entretenimento ou pela História, não pelo conhecimento.

E:

– Estou bem familiarizada com esse “teoria dos hiatos”. Mas creio que ao restringir, do modo como Hume faz no Enquiry, os nossos instrumentos de acesso à Verdade ao raciocínio abstrato quantitativo e à experiência dos sentidos, estamos a limitar as possibilidades de representação mental da Realidade. Pensar que essa representação é fiel ao original, surge-me como uma pressuposição metafísica que não é suscetível de ser validada pelos critérios de Hume. Não quereria que um seu seguidor, menos lúcido, desse à obra de Hume, o destino que este refere no fecho do Enquiry. Por isso mantenho o que disse: o que nos chega da Arte, da Filosofia e da Religião merece a nossa maior atenção.

A:

Estou disposto a aceitar, em metáfora judicial, que “o Júri ainda não deliberou sobre algumas destas questões mais fundamentais”. Mas estou confiante que será pela Ciência que o fará!

E:

Espero para ver! Despeço-me com uma citação de um artista. Não terás dificuldade em encontrar verdade neste pensamento e a sua relevância para o nosso diálogo.


Podem ter a certeza de que não foi quando descobriu a América, mas sim quando estava a descobri- la, que Colombo se sentiu feliz.


Fiódor Dostoiévski


a Na peça “Copenhaga” de Michael Frayn.

b “Quando percorremos as nossas bibliotecas, persuadidos destes princípios, que estragos devemos fazer? Se pegarmos em qualquer volume; sobre metafísica escolar ou da divindade, por exemplo; perguntemos, contém algum raciocínio abstrato relativo a quantidade ou número? Não. Contém algum raciocínio relativo a matéria de facto ou existência? Não. Entreguemo-lo então às chamas, pois nada contém senão sofisma e ilusão”.