FIGURA 1. A fusão do espaço acelerado e retardado a partir do Ponto de Vista.

Resulta daqui que a ilusão é de tal forma bem conseguida, que pessoas situadas no canto direito do compartimento são percebidas como tendo o dobro da altura de outras, de estatura semelhante, situadas no canto esquerdo (FIGURA 1).

Nem este facto absurdo (explicável devido à diferença de distância entre o Observador e essas pessoas) nos impede de deixar de apreender o espaço como regular aceitando assim, por momentos e sem qualquer drama, um mundo povoado de anões e de gigantes1.

A estrutura espacial, composta por um espaço em perspetiva acelerada e um espaço em perspetiva retardada (ou contraperspetiva), foi concebida para integrar a Cidade da Criança do Funchal, inaugurada em 2006.

Analisando a planta desta estrutura (FIGURA 2) notamos o seguinte:


FIGURA 2. Planta do espaço acelerado e retardado.

  • A vermelho está representado o espaço virtual;
  • As linhas a azul, convergentes no Ponto de Vista, correspondem aos raios visuais;
  • Esses raios contêm as arestas verticais da parede de fundo, quer do espaço real, quer do espaço virtual, permitindo que a realidade dê lugar à ilusão, ou seja, que um compartimento distorcido seja visto como um espaço paralelepipédico regular.


Espaço acelerado vs espaço retardado (ou contraperspético) — Definição e enquadramento

A perspetiva acelerada e a perspetiva retardada (ou constraperspetiva) são perspetivas tridimensionais (também ditas perspetivas-relevo), em que as superfícies que limitam o espaço que, em si mesmo, já se encontra perspetivado, se perfilam conforme as faces de uma pirâmide. São espaços para ser observados segundo o eixo da pirâmide referida (perpendicularmente à base, portanto), classificando-se como acelerados se essas superfícies convergem no mesmo sentido da observação e como contraperspéticos se, pelo contrário, são divergentes. Esta configuração particular, se visionada dentro das condições referidas, permite criar a ilusão de que o espaço que se nos depara corresponde a uma caixa espacial paralelepipédica perfeitamente regular, com maior profundidade do que o espaço real, no caso da aceleração, e menor, no caso do retardamento. No primeiro caso o espaço dilata-se; no segundo contrai-se.

Estes mesmos pressupostos, de forma e de observação, tendo em vista a simulação de um espaço muito concreto, levam-nos a considerar a perspetiva acelerada e a contraperspetiva como uma variação sobre o tema da perspetiva central (a um ponto de fuga) ou, mais precisamente, como um simulacro deste modo de perspetiva que dominou todo o Renascimento com as respetivas implicações ao nível da concepção do espaço. É precisamente nesta referência às circunstâncias históricas do seu aparecimento que a emergência deste fenómeno derivado da perspetiva central se torna particularmente relevante, já que é com o Maneirismo que a investigação e a prática da perspetiva acelerada e da contraperspetiva se afirmam decisivamente (apesar de ter já despontado no Alto-Renascimento) porque a atuação direta sobre a ordem estabelecida, visando a sua distorção e corrupção de tal modo que este procedimento subversivo não ultrapasse os limites previamente definidos, ainda que, não totalmente consciencializados ou potencializados, é um dos aspetos que melhor caracteriza a intervenção maneirista. Acrescem ainda outros factores, como sejam: a necessidade de expressar a dúvida, visível neste jogo do ser face ao não ser ou do parecer que é sem o ser, despertando a ambiguidade e a multivalência, dando azo à sobreposição de conteúdos e à multiplicação de possibilidades de leitura; a vontade de cristalizar situações de tensão e conflito sem possibilidade de resolução imediata; a nível espacial uma dinâmica só detetável a partir do momento em que, em consonância com o apelo surdo mas irresistível que vem do próprio espaço, se torna inevitável ir ao seu encontro, determinando que a apropriação do espaço seja feita através do movimento, sendo este vaivém, também ele, o indício de um renovado posicionamento do homem no mundo, decerto mais contingente mas, talvez por isso, também mais humano.


FIGURA 3. Campidoglio, Roma. Miguel Ângelo, 1536-46. O desenho desta praça, e dos edifícios que a conformam, é um exemplo paradigmático de uma contraperspetiva.


Forma espacial real

A forma dos espaços acelerados e contraperspéticos é piramidal, correspondendo normalmente a um tronco de pirâmide, sendo o espaço qualificado em função do modo como essa pirâmide se orienta para o Observador (FIGURA 4).


FIGURA 4. O espaço acelerado e contraperspético como espaço piramidal.

Colocado o Observador no eixo da pirâmide truncada, ficarão as suas bases de frente para o Observador. Se a base maior for a mais próxima do Observador, o espaço é acelerado (neste caso as faces da superfície piramidal convergem no mesmo sentido da observação), se for a mais afastada, o espaço é contraperspético (aqui, as faces da superfície piramidal divergem no mesmo sentido da observação).

Daqui se depreende de imediato que um mesmo espaço se é acelerado tem de ser necessariamente contraperspético e vice-versa, sendo a classificação adotada em função da possibilidade da observação acontecer com mais probabilidade a partir de um dos lados do espaço piramidal (FIGURA 5).


FIGURA 5. Espaço piramidal em perspetiva acelerada ou em contraperspetiva.

Ponto de Vista vs Ponto de Observação

Apesar da sua realidade tridimensional, a perspetiva acelerada e a contraperspetiva implicam, como qualquer outra perspetiva, a existência de um Ponto de Vista preciso, sendo o seu efeito ilusório obtido na totalidade quando o Observador se coloca nesse ponto.

Além desta condição prévia, deve cumprir-se uma outra restrição inerente à perspectiva artificialis, que é a sua condição de monocularidade, uma vez que a visão binocular destruiria de imediato a ilusão invalidando qualquer tentativa de escamotear a profundidade real.

Sendo o Ponto de Vista reduzido, de facto, a um ponto — autêntico centro de projeção de raios visuais — é possível gozar de uma propriedade da projeção central, que nos diz que a perspetiva de qualquer ponto do mesmo raio visual é sempre a mesma e corresponde, naturalmente, ao traço desse raio visual no Plano do Quadro. Esta propriedade torna-se extensível a qualquer plano definido por dois raios visuais (retas cujo ponto de concorrência é o Observador) já que qualquer reta de um plano que contenha o Observador tem a mesma perspetiva, que é exatamente o traço do referido plano no Plano do Quadro (FIGURA 6).


FIGURA 6. Diferentes pontos e retas do espaço com perspetivas coincidentes.

Como consequência desta situação, e se o objetivo a alcançar for o de clarificar e não o de iludir, torna-se necessário recorrer a outros expedientes, como sejam, perspetivar conjuntamente com cada ponto a sua projeção horizontal no Plano de Terra, ou então, utilizar a luz e a sombra fazendo a determinação das sombras em perspetiva.


Forma do espaço virtual

Cumpridas as exigências de forma e de posicionamento do Ponto de Vista, o resultado da observação traduz-se na transformação da forma piramidal do espaço real numa forma paralelepipédica ou, para sermos mais rigorosos, o Observador perceciona um espaço com a forma regular de um paralelepípedo, não dando minimamente conta de que a sua configuração não é, de facto, essa.

Este processo de simplificação é mediado pela perceção e, como tal, é influenciado pelas nossas expectativas. A forma espacial mais comum e mais lógica é a de um paralelepípedo e, sendo assim, a possibilidade de se tratar de uma pirâmide nem sequer se coloca. Face à subsistência de qualquer ambiguidade, haveria ainda que contar com a preferência natural, pelas formas mais simples e mais regulares sobre quaisquer outras. Com efeito, e em concordância com os resultados das experiências de Kopfermann2, na eventualidade de ter de escolher entre duas imagens, optamos sempre pela melhor forma possível, entendendo- se por forma melhor precisamente aquela que é mais simples e mais regular.


FIGURA 7. Conformação paralelepipédica do espaço virtual.

A oscilação da profundidade

O efeito que estes espaços têm sobre a perceção da profundidade deve-se precisamente à sua configuração piramidal a qual tem a capacidade de simular a forma regular de um paralelepípedo.

Este fenómeno, facilmente explicável sob o ponto de vista geométrico, pode também entender-se com toda a naturalidade se atendermos ao modo como percepcionamos um espaço regular com a forma de um paralelepípedo, dado que um espaço com esta conformação é já por si visto segundo a forma de um tronco de pirâmide, correspondendo a sua representação perspética à figuração de vários trapézios cujos lados menores permitem a definição do plano do fundo. Assim sendo, um espaço que em si mesmo já tem a forma de uma pirâmide torna-se capaz de iludir o espectador, parecendo ser um espaço paralelepipédico de maior (aceleração) ou menor (retardamento) profundidade, consoante a observação seja da base para o vértice ou do vértice para a base da pirâmide espacial, respetivamente.

Torna-se assim evidente que a representação perspética de um espaço acelerado ou de um espaço contraperspético que se identifica rigorosamente com a sua imagem visual (desde que respeitados os pressupostos referidos anteriormente) é rigorosamente equivalente à representação perspética ou à imagem visual de um espaço paralelepipédico, cujos contornos se sobrepõem às arestas resultantes da interseção das superfícies-limite do espaço piramidal (FIGURA 8).


FIGURA 8. Espaço acelerado, espaço virtual (a vermelho), espaço contraperspético com a mesma perspetiva (a negrito).

Caracterização e propriedades

Como os espaços acelerados e contraperspéticos visam ser o simulacro de um espaço regular concretizado numa caixa espacial paralelepipédica e dado que a direção de observação deve ser perpendicular aos planos primeiro e do fundo (segundo o eixo do espaço piramidal), isso implica que as perspetivas aceleradas e as contraperspetivas se comportem como perspetivas centrais (a um ponto de fuga), isto é, perspetivas em que apenas uma das direções espaciais concretizadas num sistema de eixos cartesianos se posiciona perpendicularmente ao Plano do Quadro, convergindo as retas que lhe são paralelas (retas de topo) para um ponto de fuga que é o Ponto Principal (ponto de fuga das retas de topo).

Só que o espaço real não tem esta conformação. Nele todos os planos divergem ou convergem em relação ao Observador e os seus contornos, traduzidos nas arestas resultantes das interseções entre eles, são, de facto, retas oblíquas em relação ao Plano do Quadro.

Cada uma delas individualiza uma direção espacial e, por conseguinte, corresponde-lhes um ponto de fuga específico (FIGURA 9).


FIGURA 9. Pontos de fuga das arestas de um espaço piramidal acelerado.

Esses pontos de fuga têm, no entanto, um posicionamento tal que permite que as referidas arestas, enquanto retas do espaço, passem pelo Ponto Principal, o qual se assume, deste modo, como ponto de fuga virtual do espaço ilusório.

Não poderia ser de outro modo, aliás, porque as arestas em causa são as arestas da pirâmide- espaço que, uma vez prolongadas, se encontram no vértice. Como a perspetiva do vértice, esteja ele situado adiante ou atrás do Observador, é coincidente com o Ponto Principal, compreende- se que, apesar do ponto de fuga das arestas da pirâmide não ser o Ponto Principal, elas têm necessariamente de o conter.

Os verdadeiros pontos de fuga dispõem-se segundo um quadrilátero situado em torno do ponto de fuga central e os pontos de fuga das demais geratrizes definidoras dos planos-faces da pirâmide espacial, que convergem aparentemente para o Ponto de Fuga Central, definem os seus lados, os quais coincidem, ademais, com as linhas de fuga dos planos respetivos.

Reciprocamente, para que uma reta pertencente a uma das faces da pirâmide espacial se transforme virtualmente numa reta horizontal basta que seja uma geratriz da superfície piramidal.

Se intentarmos a construção de uma quadrícula numa das faces da pirâmide, sabemos já como proceder para obter as horizontais virtuais. Para as verticais, que não deixam de o ser por se manterem paralelas ao Quadro, temos de garantir que a diminuição do seu espaçamento em profundidade corresponda à diminuição obtida na visão em perspetiva do espaço virtual. Tal pode conseguir-se recorrendo à diagonal do trapézio-face da pirâmide que é virtualmente a diagonal de um quadrilátero regular. E, da mesma forma que as pseudo- retas de topo têm como ponto de fuga virtual o Ponto Principal, também as diagonais têm como ponto de fuga, pontos de distância virtuais.


FIGURA 10. A costruzione legittima e a construção com o PD aplicada à perspetiva acelerada.

Em caso de dificuldade pode sempre recorrer-se à costruzione legittima que é o método mais direto de estabelecer a relação entre o espaço virtual e o espaço real através de uma dupla projeção ortogonal em que os raios visuais, para que a perspetiva acelerada ou a contraperspetiva se consuma, deverão entrelaçar ambos os espaços (FIGURA 10).


A dinâmica do espaço acelerado

Embora um espaço acelerado ou contraperspético seja concebido, em princípio, em função de um Ponto de Vista determinado e requeira, para que a reconstituição espacial corresponda na totalidade às intenções do seu autor, que o ponto de observação coincida com esse Ponto de Vista, a verdade é que admite outros pontos de observação, desde que se mantenham no eixo da pirâmide espacial que passaremos a designar a partir de agora como eixo visual. Só que a diferentes pontos desse eixo visual corresponde uma dimensão diversa do espaço virtual, o qual sofre, em cada situação, um ajustamento das suas dimensões e, em concreto, da sua profundidade, para que a sua configuração regular se mantenha intacta.

Se realizarmos um percurso de aproximação e penetração num espaço acelerado ou contraperspético, constatamos que, à medida que vamos avançando, a forma do espaço virtual se vai transformando, verificando-se uma progressiva diminuição dimensional, se o espaço for acelerado, e um progressivo crescimento, se o espaço for contraperspético, que só termina quando o Observador atingir o plano do fundo. É nessa situação ideal que o espaço real e o espaço virtual coincidem, o que pode ser confirmado pela redução do quadrilátero feito de pontos de fuga ao Ponto Principal.

Este movimento de volume, que acompanha o deslocamento do sujeito (segundo o eixo visual), introduz uma dinâmica impossível de se verificar se o espaço real fosse um paralelepípedo regular de facto, e não uma realidade virtual.


A estrutura espacial da Cidade da Criança

A estrutura espacial concebida para a “Cidade da Criança do Funchal” resulta da conjugação de um espaço em perspetiva acelerada e de um espaço em perspetiva retardada (ou contraperspético), de modo a garantir a coincidência do espaço virtual de ambas as partes e assim permitir a simulação de um espaço paralelepipédico regular.

Merece uma nota particular a inserção da coluna existente no meio do espaço que na realidade se encontra por detrás da parte construída em perspetiva acelerada.

Outro efeito adicional, extremamente interessante, acontece quando alguém se desloca, da esquerda para a direita, paralelamente à parede de fundo do espaço retardado (ou contraperspético) e subitamente desaparece de cena por detrás do pilar sem que volte a reaparecer à direita da coluna, como seria expectável.

Merecem também referência as dimensões generosas do módulo: a profundidade do espaço acelerado é de 2,95 m; a do espaço retardado 9,24 m. O espaço virtual parece ter uma profundidade de 6,28 m.

A criação deste espaço teve como referência a salle à double perspetive concebida por Philippe Comar para La Cité des Sciences de La Villette3, embora se distinga daquele pelo tipo de arquitetura e a integração de elementos construídos no espaço existente.


FIGURA 11. Visão lateralizada do espaço acelerado e retardado da Cidade da Criança.

NOTA

A generalidade do texto deste artigo integra parte de um trabalho do autor no âmbito da prestação de provas de aptidão científica e capacidade pedagógica prestadas na FAUP (Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto)4.