Os conceitos importam!

O conceito de comunicação de ciência (do inglês science communication) é alvo de muitíssimos entendimentos. Uma das causas para o nevoeiro semântico a ele associado estará, eventualmente, na tentativa de o definir, ao invés, de o conceptualizar. Concretizando: se fossemos autores de um dado conceito, ser-nos-ia fácil defini-lo. Contudo, no caso da comunicação de ciência, o processo terá de ser inverso: tentar colocar-se sobre o chapéu de um conceito, todo um conjunto de práticas seculares — pelo menos, desde o século XVII (FIGURA 1).


FIGURA 1. Capa de Sidereus Nuncius. Este folheto de 24 páginas, escrito por Galileu Galilei e publicado em Veneza em março de 1610, poderá ser o expoente primeiro e máximo do período do nascimento dos movimentos de divulgação científica. (fonte: Biblioteca Houghton, Universidade de Harvard)

Fazendo tal exercício poderemos dizer que estamos na presença de comunicação de ciência, quando existe a comunicação (do latim communicare — “tornar comum”, “partilhar”, “conferenciar”) de um conteúdo científico (conceptual, procedimental ou atitudinal).

A clarificação cabal do que seria um conteúdo científico conduziríamos a uma interessante reflexão sobre a filosofia da ciência. Contudo, sem ela, pois esse não é o foco aqui, teremos de utilizar a aproximação de que um conteúdo é científico quando está sujeito ao processo (desde a génese da investigação, até ao seu sancionamento) associado à construção de novo conhecimento científico. Intencionalmente não utilizamos a expressão “método científico” pois ela, como muito bem demonstrado pela filosofia das ciências, é redutora e, até, falaciosa. São muitos os motivos para tal assunção, mas, bastante ilustrativo, é pensarmos que a expressão nos remete, erradamente, para um único método que, comumente, se assume como baseado na observação.

Explicitada uma conceptualização de “comunicação de ciência”, agilmente se pode compreender que um comunicador de ciência pode ser, por exemplo, um cientista, um professor ou um jornalista. Contudo, nestes profissionais a comunicação de ciência é “apenas” uma componente do seu trabalho não coincidindo, portanto, com todo o conteúdo funcional da sua profissão. Ainda assim, nomeadamente em gabinetes de comunicação de instituições ligadas à ciência, centros de ciência e museus existem comunicadores de ciência que se dedicam quase exclusivamente a esta prática. Apesar disso, muitos desses gabinetes de comunicação acumulam, por exemplo, funções de marketing, gestão de projetos, relações públicas, financiamento... Ora estes últimos exemplos revelam que num gabinete de comunicação poderemos ter profissionais que não se dedicam à comunicação de ciência.

Do que se acaba de dizer resulta que, sem mais informação, não sabemos quem são os interlocutores envolvidos numa dada "comunicação de ciência". É aqui que emana um outro conceito: o de divulgação científica. Ele tem subjacente a ideia de que a comunicação de ciência se estabelece entre interlocutores que não estão ao mesmo nível no domínio do conteúdo alvo de comunicação. Assim, a tendência mais imediata seria para considerarmos a divulgação científica como inclusa no conceito de comunicação de ciência. Contudo, para certos autores tal não é verdade. Apesar disso, divulgação científica tem, imediatamente, implícita a ideia de que são as audiências não especializadas os destinatários da ação; comunicação de ciência terá de ter o cuidado extra de explicitar claramente a quem se dirige a ação, uma vez que os seus destinatários não estão subentendidos.


Aprofundando diferenças, esbatendo barreiras

Partindo de um entendimento mais lato, há autores como Christensen1 e Morrow2, que consideram que se há um emissor, um recetor e uma mensagem de ciência, então estamos na presença de comunicação de ciência. Neste entendimento existem diferentes “áreas” na comunicação científica: educação formal, educação informal, apoio ao público e à imprensa, relações públicas…

Contudo, o mais habitual no conceito de comunicação de ciência é afastá-lo dos conceitos de ensino e de educação, por estes serem organizados visando um currículo, com momentos de avaliação formal que contribuem decisivamente para a obtenção de certificação3.

No sentido de estabelecer um conceito mais holístico para comunicação de ciência Burns, O’Connor e Stocklmayer4, corroborados na sua essência por Sanchez-Mora5, apresentam uma definição que pretende encerrar, em si mesmo, o esclarecimento do propósito e das características da comunicação de ciência e que, ao mesmo tempo, fornece uma base para avaliar a sua eficácia. Assim, estes autores consideram que a comunicação de ciência pode ser definida como o uso apropriado de competências, meios e atividades no sentido de promover, para com a ciência: consciencialização, prazer, interesse, compreensão e opiniões fundamentadas.

Nas definições de comunicação de ciência mais centradas nos públicos dessas atividades de comunicação é paradigmático o trabalho do Office for Science and Technology (departamento tecnocrático do Governo Britânico que entre 1992 e 2007 foi responsável pelas políticas e atividades relacionadas com a ciência e a tecnologia) e da Wellcome Trust (fundação britânica de apoio à investigação nas áreas científicas e da saúde). Nele distingue-se a comunicação de ciência em função da que é estabelecida entre: grupos dentro da comunidade científica; a comunidade científica e os mediadores (museus, centros de ciências, jornalistas…); a comunidade científica e o público; a comunidade científica e os decisores políticos; a indústria e o público; os media (incluindo museus e centros de ciência) e o público; o governo e o público6.

Contudo, como já dissemos, vários autores retiram do conceito de comunicação de ciência o diálogo entre os cientistas e audiências não especializadas, para o fazer emergir como um conceito independente: o de divulgação científica. Assim, por exemplo para Bueno7, Crato3 e Kunth8, o conceito de comunicação de ciência está reservado para aquela componente de disseminação ou difusão de conteúdos entre pares especialistas (disciplinares ou interdisciplinares). A divulgação científica corresponde, assim, a algo diferente: ao exercício de diálogo entre peritos (ou seus mediadores constituídos) e público leigo e que assumiu, desde a primeira hora uma missão de educação social.

Uma quarta via de entendimento dos conceitos de comunicação e divulgação científica é a de não os distinguir: comunicação de ciência, tal como divulgação científica, refere-se a um diálogo entre especialistas e audiências não especializadas9, 10.

Seja qual for o entendimento sobre os conceitos, o mais central é que todos os cientistas percebam que apesar de nem toda a investigação dever ter como intenção primária a divulgação junto de um público não especializado, a sua construção social gera o dever de a divulgar juntos desse tipo de audiências.