É importante notar que, enquanto sistema físico, uma estrela comum, como o sol, goza de alguma simplicidade. Para isso contribui o facto das estrelas serem corpos aproximadamente esféricos, suportados essencialmente pelo equilíbrio entre a força da gravidade e a força que resulta do gradiente de pressão, compostos de gás maioritariamente ionizado. Não obstante, a complexidade aumenta quando se procura modelar as camadas mais superficiais da estrela, onde a escala de tempo para fenómenos térmicos diminui significativamente e onde a interação entre o campo magnético e o gás é particularmente relevante. Igualmente exigente é a modelação das regiões do interior onde o transporte de energia dominante muda entre o radiativo (transporte de energia assegurado por fotões) e a convecção (transporte de energia feito por movimentação do gás), ou onde a competição entre processos microscópicos e macroscópicos de transporte dos elementos químicos é considerável. De igual forma, o problema em mãos torna-se particularmente complexo quando procuramos compreender os fenómenos que estão na base da origem dos campos magnéticos observados direta ou indiretamente à superfície de uma estrela, a evolução do seu momento angular ou as instabilidades que precedem a fase final da sua vida.

O avanço na compreensão da estrutura e evolução estelar, bem como da interação entre as estrelas e os seus planetas, depende de forma crítica da correta modelação destes fenómenos mais complexos. Por sua vez, o acesso a uma grande quantidade de dados ultra precisos e diversos, hoje disponíveis graças ao investimento em instrumentos de observação a partir da terra e do espaço, serve de alavanca para esse avanço. O objetivo de alcançar uma caracterização cada vez mais completa dos fenómenos estudados, exige que se recorra a várias técnicas de observação e a diferentes tipos de dados. É a combinação de todos esses dados e a quantidade e qualidade da informação que eles nos revelam, que tem sustentado os grandes desenvolvimentos da física estelar nas últimas décadas.


Observando o interior das estrelas

O acesso a dados coletados por instrumentos a bordo de missões espaciais, pela sua qualidade e quantidade, permitiu uma verdadeira mudança de paradigma na abordagem do estudo da estrutura e evolução estelar. Essa mudança decorreu da deteção de pequeníssimas variações temporais no brilho de milhares de estrelas (FIGURA 1), associadas à propagação de ondas no seu interior. Este fenómeno, conhecido e estudado no contexto do sol desde a década de 60 do século XX, abriu as portas à inferência de informação direta acerca do interior das estrelas. O princípio subjacente à técnica utilizada para inferir a informação — conhecida por heliossismologia, no contexto do estudo do sol, e por asterossismologia1, quando se considera o estudo de outras estrelas — é relativamente simples. De facto, as características das ondas detetadas (em particular, a sua frequência e amplitude) dependem do meio onde estas se propagam e da fonte de energia que as mantém.


FIGURA 1. Variação do brilho da estrela TIC 237336864 observada pelo satélite TESS, da NASA. A variação de maior amplitude (de cerca de 15 mmag) resulta da presença de manchas (regiões de composição química diferente) à superfície da estrela. Estas aparecem e desaparecem do disco observado devido à rotação da estrela, que neste caso tem um período de cerca de 4,2 dias. As variações de brilho de menor amplitude (de cerca de 0,15 mmag) mostradas, de forma ampliada, no painel sobreposto, são manifestações de ondas acústicas que se propagam pelo interior da estrela com períodos de cerca de 7,4 minutos. (Figura de Daniel Holdsworth, Jeremiah Horrocks Institute, Univ. of Central Lancashire)

Na generalidade das estrelas, não tendo o benefício da proximidade que existe no caso do Sol, podemos detetar apenas fenómenos ondulatórios globais, resultantes da interferência construtiva dentro de uma cavidade correspondente a uma dada região da estrela.

Como cada modo de oscilação (correspondente a uma frequência própria) contém informação média acerca da cavidade onde se propaga, é possível combinar a informação contida em vários modos de oscilação para extrair informação localizada do interior de uma estrela.

A título de exemplo, consideremos uma estrela com simetria esférica e uma perturbação acústica de pequena amplitude, puramente radial (correspondente a pequenas expansões e contrações periódicas da estrela, sem alteração da sua simetria esférica). Neste caso, o problema é reduzido a uma dimensão e torna-se muito semelhante a outros bem conhecidos, como o estudo das ondas num tubo de um órgão com uma extremidade aberta, mas com uma velocidade de propagação variável. Se as ondas se propagarem numa cavidade definida por um raio (distância ao centro da estrela) mínimo, \(r_1\), e um raio máximo, \(r_2\), a condição para determinação dos valores próprios será dada por2:


\(\int_{r_1}^{r_2}\kappa dr=\left ( n-\frac{1}{2} \right )\pi\) (1)


onde \(\kappa\) é o número de onda e \(n\) um inteiro, designado por ordem radial.

É possível demonstrar que no caso descrito acima, a cavidade de propagação das ondas acústicas radiais se estende desde muito perto do centro, até à superfície da estrela. Se considerarmos que o comprimento da onda em causa é muito menor do que a escala de variação da estrutura da estrela (o que acontecerá para \(n\gg 1\)), a relação de dispersão será aproximadamente a de uma onda plana, ou seja, \(2\pi\nu \sim c\kappa\), onde \(c\) é a velocidade do som, de onde se conclui, a partir da equação 1, que a frequência de oscilação, \(\nu_n\), para a ordem radial \(n\), é dada aproximadamente por,


\(\nu_n\sim \left ( 2\int_{0}^{R}\frac{dr}{c} \right )^{-1}\left ( n-\frac{1}{2} \right )\) (2)


expressão que é válida para \(n\gg 1\), onde \(R\) é o raio à superfície da estrela.

Como antecipado, esta expressão é semelhante à encontrada no estudo de um tubo de um órgão com uma extremidade aberta (no limite em que se pode desprezar o diâmetro do tubo). O termo \(2\int_{0}^{R}\frac{dr}{c}\) corresponde ao tempo necessário para a onda atravessar a cavidade e voltar ao ponto inicial e é dado na forma integral porque a velocidade do som varia no interior da estrela. O inverso deste tempo escala com \(\sqrt{\bar{\rho}}\), onde \(\bar{\rho}\) é a densidade média da estrela, pelo que a diferença entre a frequência de modos com ordens radiais consecutivas permite-nos inferir a densidade média da estrela (por comparação, e.g., com a densidade média do sol).

Na prática, a estratificação introduz alterações à relação de dispersão, que fazem com que \(\kappa^2\) passe de positivo a negativo em pontos particulares da estrela, que definem precisamente as extremidades da cavidade de propagação. Perto dessas extremidades, a aproximação de onda plana deixa de ser válida. Através de uma análise cuidada das equações perturbadas2, tendo em conta a alteração da relação de dispersão junto às extremidades da cavidade, é possível mostrar que assimptoticamente, para \(n\) grande, as frequências são dadas por,


\(\nu_n\sim \left ( 2\int_{0}^{R}\frac{dr}{c} \right )^{-1}\left ( n+\frac{1}{4}+\alpha \right )\) (3)


Nesta expressão, o termo \(\frac{1}{4}\) incorpora um salto da fase na extremidade interior da cavidade (junto ao centro da estrela), e o termo \(\alpha\) é uma fase adicional que depende da frequência, resultante da reflexão da onda junto à superfície da estrela. As diferenças entre as frequências dos modos radiais mantêm-se muito semelhantes às previstas com as aproximações iniciais, mas as frequências em si estão deslocadas relativamente à análise simplificada, como consequência das variações da fase introduzidas nas extremidades da cavidade.

A condição para a determinação dos valores próprios e a relação de dispersão evidenciam o facto de que a frequência de um modo acústico contém informação média acerca da estrutura da estrela (no caso presente, expressa na velocidade do som) entre os extremos da cavidade de propagação. Na prática, uma estrela normalmente exibe também modos acústicos não radiais, cujas cavidades de propagação não se estendem até tão perto do centro. Este tipo de modos têm sido extensamente explorados no estudo do Sol. Dependendo da sua massa e fase de evolução, a estrela pode também exibir modos de natureza gravítica, onde as oscilações são mantidas pela ação da gravidade. Podem ainda existir modos de natureza mista, caracterizados por duas cavidades de propagação, uma em que a onda tem uma natureza acústica e outra em que tem uma natureza gravítica, e entre as quais há trocas de energia — à semelhança de um sistema de molas acopladas. É a exploração desta diversidade de modos de oscilação, cada um contendo informação complementar acerca da estratificação da estrela, que está na base da técnica de asterossismologia. O desenvolvimento das técnicas matemáticas usadas inicialmente no estudo do Sol, e, mais tarde, no estudo de outras estrelas, teve como ponto de partida o conhecimento que tinha sido construído no contexto da sismologia da Terra. É de notar, ainda, que a rotação e os campos magnéticos alteram as frequências dos modos próprios, deixando assinaturas particulares que podem ser identificadas e estudadas, inferindo-se, assim, informação acerca da dinâmica e propriedades magnéticas do interior das estrelas.


A revolução dos dados

No início do novo milénio, as chamadas oscilações de tipo solar — perturbações intrinsecamente estáveis produzidas pela turbulência associada à convecção — tinham sido observadas em apenas uma mão cheia de estrelas1. O lançamento de satélites com capacidade para recolher séries temporais de fotometria (variações no brilho da estrela como função do tempo) de alta cadência e precisão, como o CoRoT2 (França/ESA), o Kepler3 (NASA) e o TESS4 (NASA) veio mudar esta realidade. Hoje, oscilações deste tipo já foram detetadas em mais de 150 mil estrelas. Tendo em conta que o satélite TESS continua em observação, varrendo sucessivamente diferentes regiões do céu e debitando cerca de 27 GB de dados por dia, é de esperar que este número continue a aumentar e que aumente ainda mais, com o lançamento do satélite PLATO5 (ESA), previsto para 2026.

Muito embora a recolha de séries temporais fotométricas seja essencial para a deteção das oscilações, o estudo do interior das estrelas requer igualmente o conhecimento das suas propriedades globais, tais como a luminosidade e a temperatura efetiva, bem como das suas propriedades químicas, em particular a metalicidade. Neste contexto, o lançamento do satélite Gaia6 (ESA) no fim de 2013, com a missão de mapear em 6D a nossa galáxia, determinando a posição e o movimento de cerca de 200 mil milhões de estrelas (cerca de 1% das estrelas da Via Láctea), foi determinante para o avanço do conhecimento nesta área de estudo. Um exemplo do resultado da exploração combinada de dados dos satélites GAIA e TESS é ilustrado na FIGURA 2. A partir destes dados, foi possível determinar a massa de mais de 100 mil estrelas gigantes vermelhas e verificar que as mais jovens (de maior massa) estão confinadas essencialmente ao plano do disco galático, enquanto que as mais velhas (de menor massa) ocupam regiões mais distantes do mesmo. Estes resultados são importantes porque permitiram testar empiricamente uma previsão fundamental da astronomia galáctica, segundo a qual se espera que estrelas mais jovens estejam mais próximas do plano da Via Láctea.

Os dados obtidos a partir do espaço, são complementados com dados de espectroscopia de alta resolução, obtidos com instrumentos no solo. Os espectros das estrelas (a distribuição da energia emitida em função do comprimento de onda) recolhidos a partir da Terra, alimentam os estudos que estabelecem a temperatura à superfície da estrela e a sua composição química. Nesta componente, têm sido fundamentais os desenvolvimentos tecnológicos que suportam a obtenção destes dados, como os espectrógrafos que se encontram no VLT do Observatório Europeu do Sul (ESO) e noutras infraestruturas, em diferentes partes do globo, que têm permitido realizar surveys com vista a coletar espectros de todas as estrelas observadas com o GAIA ou outras missões espaciais. Os dados de espectroscopia, tal como os dados do GAIA, são essenciais para que possamos extrair toda a informação que a asterossismologia nos fornece.


FIGURA 2. Mapas da galáxia em coordenadas eclípticas. A imagem da esquerda mostra o céu observado pelo TESS, onde a banda mais clara ilustra a região de maior densidade de estrelas, correspondente ao plano da galáxia. O mapa à direita é construído a partir de 158 mil estrelas gigantes vermelhas para as quais foi possível detetar oscilações, coloridas de acordo com a massa determinada por combinação de dados dos satélites Gaia e TESS. Os tons azulados mostram estrelas de massa mais pequena, entre 0,8 e 1,2 massas solares, enquanto que o verde, amarelo, laranja e vermelho, mostram estrelas de massa superior, até pouco mais de duas massas solares. A parte omissa nos mapas corresponde à região do céu que não foi observada pelo TESS durante os dois primeiros anos da missão. (Figura de NASA/MIT/TESS and Ethan Kruse (USRA))

De notar que no estudo ilustrado na FIGURA 2, em particular para a deteção da presença de oscilações nas estrelas do TESS, os autores utilizaram métodos de machine learning, que são cada vez mais importantes no contexto da análise de grandes volumes de dados. Estas técnicas são também cada vez mais utilizadas na comparação entre as previsões dos modelos de evolução estelar e as observações, que muitas vezes envolvem a criação de grelhas de modelos muito densas.


FIGURA 3. A sonda espacial Gaia, operada pela Agência Espacial Europeia (ESA), lançada em dezembro de 2013, observa os céus a partir da sua órbita em torno do Sol com o objetivo de criar o maior e mais preciso mapa da nossa Galáxia. Esta missão está a produzir catálogos de dados que incluem medições de alta precisão — posições, distância e movimentos próprios — de cerca de 200 mil milhões de estrelas da nossa Via Láctea. Este catálogo fornece informação essencial para a realização de estudos revolucionários em muitas áreas da astronomia, incluindo a análise das populações de estrelas da Galáxia e a sua evolução. Esta imagem artística mostra a sonda Gaia com a Via Láctea ao fundo. (Figura de S. Brunier)

FIGURA 3. A sonda espacial Gaia, operada pela Agência Espacial Europeia (ESA), lançada em dezembro de 2013, observa os céus a partir da sua órbita em torno da Terra com o objetivo de criar o maior e mais preciso mapa da nossa Galáxia. Esta missão está a produzir catálogos de dados que incluem medições de alta precisão — posições, distância e movimentos próprios — de cerca de 200 mil milhões de estrelas da nossa Via Láctea. Este catálogo fornece informação essencial para a realização de estudos revolucionários em muitas áreas da astronomia, incluindo a análise das populações de estrelas da Galáxia e a sua evolução. Esta imagem artística mostra a sonda Gaia com a Via Láctea ao fundo.

Estes modelos são gerados a partir da simulação de diversos aspetos da física das estrelas, como, por exemplo, a equação de estado, a opacidade, as reações de fusão nuclear e a eficiência da segregação química. Desta forma, os modelos podem ser estendidos e aperfeiçoados, e, em última análise, validados (ou invalidados) com base na combinação dos dados que temos disponíveis para as estrelas.


Que futuro para a astrofísica estelar?

A física estelar é um exemplo paradigmático de como combinar dados muito distintos nos permite construir uma visão cada vez mais completa e precisa do nosso objeto de estudo — no caso, as estrelas. A asterossismologia, pela quantidade de informação que nos permite inferir, tem potenciado avanços significativos na compreensão de como a física opera em regimes e condições impossíveis de reproduzir em laboratório. Tal está na base da revolução que atravessamos3, sustentada nos dados que temos e cuja exploração só agora começou. Sabemos hoje muito mais sobre como a energia é transportada no interior das estrelas4, sobre como a sua composição química muda ao longo do tempo e sobre como a rotação5 e a convecção interagem para tornar as estrelas magneticamente ativas. Somos capazes de detetar assinaturas diretas de campos magnéticos escondidos no núcleo das estrelas6 e de distinguir, de entre estrelas com características idênticas à superfície, aquelas em cujo núcleo decorre fusão nuclear7. Já não é apenas o Sol o nosso laboratório de alta precisão: muitas das estrelas ao nosso redor estendem o nosso laboratório a condições e fenómenos que antes nos eram inacessíveis.

Esta revolução assenta, não só na coleção de dados observacionais (adquiridos por verdadeiras máquinas de coletar informação), mas também nos métodos de análise que estão a ser desenvolvidos. Esses métodos são o que permite transformar os dados em conhecimento, capaz de se concretizar numa nova geração de modelos e avanços científicos na compreensão da nossa estrela e das diferentes populações de estrelas que estão presentes na nossa galáxia. Este conhecimento será crítico para perceber a evolução de outras galáxias e a própria evolução do Universo.

Mas a recolha de dados não parou. Estão já previstas outras missões espaciais e detetores no solo que irão ampliar a quantidade e qualidade de dados, o que nos permite antecipar avanços que irão muito além dos alcançados até à data. Tal esforço tecnológico vai continuar a intensificar a necessidade de se otimizar a extração de informação dos dados disponíveis. O cientista tem de ser capaz de ultrapassar a quantidade e complexidade da informação que existe nos arquivos, para extrair o que necessita para responder a cada pergunta que formula sobre os objetos e fenómenos que estuda. Nunca, como hoje, este ponto foi tão crítico no avanço científico na astronomia em geral, e na astrofísica estelar em particular.