Mas como pode o acaso estar envolvido em investigação científica? O método científico consiste num conjunto de rigorosos procedimentos assentes em regras e princípios do pensamento crítico e raciocínio dedutivo. Este instrumento cognitivo é fundamental para o cientista poder garantir o avanço do conhecimento e validar grandes descobertas. Um dos pilares da ciência moderna é a observação crítica de fenómenos naturais ou de resultados de experiências planeadas. Contudo, há resultados que não encaixam no esquema preditivo do cientista e, apesar de estarem corretos, desafiam o edifício lógico que ele foi construindo ao longo da sua vivência. Por vezes a frustração assalta-o e pode até ser tentado a minimizar a importância desses resultados dissonantes, rejeitando-os definitivamente como erros. Quantas descobertas terão sido inibidas por não se prestar a devida atenção a raras observações fortuitas?

O acaso de uma grande descoberta não acontece com a afortunada simplicidade com que se encontra uma pepita de ouro a reluzir no solo durante uma despreocupada caminhada pelo campo. É necessário possuir uma mente curiosa, observadora e crítica para identificar um acontecimento fortuito que tem potencial para vir a transformar-se numa descoberta. O cientista ou inventor com adequado treino científico é capaz de estabelecer relações entre o fenómeno observado e o conhecimento previamente adquirido. De facto, na original definição de serendipity, Walpole referia a sagacidade como característica fundamental. Assim, a partir de um acontecimento aparentemente desconexo, que para muitos não passaria de um contratempo ou lamentável insucesso, um espírito sagaz será capaz de identificar uma ideia com potencial e desencadear um plano de investigação, seguindo as regras do rigoroso método científico, que o leve à descoberta científica. Como disse Louis Pasteur “O acaso só favorece a mente preparada”.

Muitos casos de descoberta por serendipidade surgem na história da Ciência, como por exemplo os raios-X, a radioatividade, o vidro inquebrável, o forno de micro-ondas, os polímeros condutores, os post-its, o nylon, o medicamento sildenafil (Viagra), só para mencionar alguns2. A seguir, são descritos sucintamente três casos bastante populares de descobertas que se enquadram no fenómeno de serendipidade.

Um dos mais conhecidos é o da descoberta, em 1928, do primeiro antibiótico, a penicilina, pelo bacteriologista escocês Alexander Fleming (1881—1955). Na véspera de partir para duas semanas de férias, Fleming preparou várias placas com uma cultura de bactérias Staphylococcus aureus; mas, em vez de as colocar na estufa, deixou-as esquecidas em cima da bancada do seu laboratório no Hospital St. Mary em Londres. Num laboratório do piso imediatamente abaixo, trabalhava um perito em bolores que cultivava, entre outros, os esporos do fungo Penicillium notatum. Imagina-se que os esporos, muito leves, se tenham espalhado pela atmosfera do edifício e tenham entrado em grande quantidade no laboratório de Fleming, cuja porta estaria sempre aberta. Quando regressou de férias e resolveu arrumar o laboratório, ele reparou que havia placas que apresentavam largas zonas claras totalmente desprovidas de estafilococos, precisamente as que se encontravam cercadas pelo bolor. Fleming achou este fenómeno curioso e resolveu investigar a razão, realizando várias experiências que o levaram a concluir que os fungos do género Penicillium produziam uma substância responsável pelo efeito bactericida e que, compreensivelmente, ele designou de penicilina. Mais tarde, dois outros cientistas, Ernst Chain (1906—1979) e Howard Florey (1898—1968) purificaram e caracterizaram a penicilina, e mostraram que esta pode ser usada como um antibiótico não tóxico capaz de matar bactérias que causam infeções em animais e humanos. Estes três cientistas partilharam o prémio Nobel da Medicina em 1945. Na cerimónia de entrega do prestigiado prémio, Fleming declarou humildemente que o seu único mérito tinha sido, simplesmente, dar atenção à inesperada observação3.

Outro caso não menos surpreendente é o da invenção do Velcro pelo engenheiro suíço George de Mestral (1907—1990). No verão de 1941, depois de regressar de uma das suas habituais saídas para a caça nos Alpes, George de Mestral reparou que a sua roupa e o pêlo do seu cão estavam cobertos de sementes de Arctium, muito difíceis de arrancar. Este facto, apesar de o irritar, deixou-o também curioso e decidiu investigar o mecanismo da forte fixação das sementes. Usando um microscópio, ele constatou que as sementes eram revestidas por um grande número de minúsculos ganchos que se agarravam a filamentos vegetais ou animais. Imaginou então criar dois materiais que se pudessem ligar reversivelmente e que pudessem ter aplicação, por exemplo, na indústria do vestuário. Porém, o caminho que liga uma ideia genial a um produto de mercado com sucesso é muitas vezes tortuoso, e só é possível percorrê-lo com muita resiliência e engenho. George de Mestral tentou diferentes materiais e metodologias de fabrico durante 10 anos até conseguir submeter uma patente da sua ideia com o nome Velcro, que é um acrónimo das duas palavras francesas que significam veludo (velours) e gancho (crochet). O negócio foi crescendo, mas a penetração no mercado do vestuário foi mais difícil por razões estéticas; finalmente, a marca Velcro teve o derradeiro impulso quando a NASA, uma década mais tarde, usou os seus artigos em fechos e outras soluções de segurança nas missões espaciais Apolo4. Hoje em dia será difícil encontrar uma pessoa que não conheça o popular sistema Velcro constituído pelas duas características peças que aderem reversivelmente uma à outra; quando observadas à lupa, verifica-se que uma delas é constituída por inúmeros ganchos minúsculos que engatam no emaranhado de fibras existente na outra, exatamente o mesmo mecanismo natural que intrigou Mestral num despreocupado passeio em 1941.

Finalmente, abordemos a importante descoberta do tratamento da borracha que lhe permite ter a ampla aplicação prática que conhecemos hoje em dia. A borracha é uma substância natural que já era utilizada pelos povos da Mesoamérica há muitos séculos, como por exemplo a civilização Olmeca, e que é produzida a partir do látex extraído da seringueira ou árvore-da-borracha. Este produto natural, que se apresentava maleável e pegajoso a temperaturas elevadas, e que se tornava duro e quebradiço a temperaturas baixas, pouco entusiasmo despertou nos europeus quando os primeiros exploradores do Novo Mundo o trouxeram a bordo das caravelas no século XVI. Uma das primeiras aplicações práticas desta substância natural foi como agente de remoção de marcas de lápis, isto é, como utensílio de escrita que ainda hoje se usa e é designado comummente por borracha. O termo anglo-saxónico rubber deriva precisamente de rub (fricção) e a palavra portuguesa borracha foi assimilada da equivalente espanhola que significa odre em couro cujo interior era impermeabilizado com essa substância para transporte de vinho. O químico escocês Charles Macintosh (1766—1843) inventou, em 1824, um processo de impermeabilização de vestuário que o tornou famoso, mas a variação das propriedades da borracha com a temperatura tornava as peças de vestuário e de calçado particularmente desconfortáveis.

Charles Goodyear (1800—1860), um químico autodidata americano, pretendeu inventar um método de tratamento da borracha que mantivesse as suas atrativas características invariáveis com a temperatura, de modo a melhorar e alargar o seu leque de aplicações. Durante aproximadamente dez anos, Goodyear testou inúmeros métodos, entre os quais um que envolvia o tratamento com enxofre. Certa vez, inadvertidamente, deixou cair um pouco da mistura numa frigideira e, para sua surpresa, a borracha não derreteu e manteve- se flexível. Achando este acontecimento espantoso, resolveu colocar o material ao frio no exterior da sua casa. Na manhã seguinte, reparou que o material mantinha as propriedades e, mesmo quando o trouxe para dentro e o aproximou do fogo da sua lareira, o pedaço de borracha permanecia flexível e não pegajoso. Goodyear resolveu então otimizar o processo de estabilização da borracha, tendo registado a respetiva patente em 1844 com a designação de vulcanização, inspirada no deus romano do fogo Vulcano. A primeira fábrica Goodyear foi fundada em 1898 no estado americano de Ohio, fornecendo fundamentalmente pneus para bicicletas e carruagens. Com o advento do automóvel, a empresa cresceu muito e, atualmente, 75% da produção mundial de borracha vulcanizada é destinada à indústria de pneus de automóveis e de outros meios de transporte5.

Goodyear resolveu então otimizar o processo de estabilização da borracha tendo registado a respetiva patente em 1844 com a designação de vulcanização, inspirada no deus romano do fogo Vulcano. A primeira fábrica Goodyear foi fundada em 1898 no estado americano de Ohio fornecendo fundamentalmente pneus para bicicletas e carruagens. Com o advento do automóvel, a empresa cresceu muito e, atualmente, 75% da produção mundial de borracha vulcanizada é destinada à indústria de pneus de automóveis e de outros meios de transporte4.



fenómeno da serendipidade pode manifestar-se através de mecanismos de processamento da informação distintos, como foi estudado recentemente por Yaqub6 e que se pode inferir pelos três exemplos acima descritos. Segundo este autor, existe ainda um quarto tipo de descoberta por serendipidade que engloba as fortuitas observações que, não tendo aplicação imediata, conduzem a soluções de problemas a posteriori. Um interessante exemplo é o da formulação do vidro inquebrável (ou de segurança) criado por Edouard Benedictus (1878—1930) e que teve origem numa inesperada observação feita no seu laboratório, em 1903, ao deixar cair um frasco ao chão que, curiosamente, não se despedaçou em inúmeros estilhaços de vidro. Contudo, somente seis anos mais tarde é que Benedictus resolveu registar a patente do vidro de segurança ao ler a notícia de um grave acidente de automóvel em que duas mulheres ficaram gravemente feridas pela quebra do para-brisas. Outro interessante exemplo é o da indução eletromagnética, um fenómeno inicialmente observado por Hans Christian Oersted em 1820 mas explorado por Michael Faraday e Samuel Morse somente uma década mais tarde2.

A descoberta e conceção de novos fármacos, como o caso da penicilina, é uma área onde abundam exemplos de serendipidade7. De facto, a complexidade dos sistemas biológicos e a multiplicidade de respostas fisiológicas dos organismos vivos a diferentes princípios ativos torna esta área mais fértil em observações inesperadas de efeitos secundários. Um caso, deveras curioso, é o da nitroglicerina sintetizada em 1846 e usada como potente explosivo. Anos mais tarde, verificou-se que um elevado número de trabalhadores que manuseavam este explosivo diariamente apresentavam queixas de cefaleias. Resolveu-se então efetuar um estudo sistemático epidemiológico e concluiu-se que a substância era de facto a causa deste efeito e, posteriormente, foi possível concluir também que as dores resultavam da dilatação dos vasos sanguíneos do cérebro causada pela ação da nitroglicerina. A comunidade médica usou este estudo para propor que a dilatação de vasos sanguíneos do coração poderia ser muito útil no tratamento de doenças cardiovasculares. Desde 1879, a nitroglicerina, também conhecida nos meios médicos por trinitrato de glicerilo, tem vindo a ser usada sob a forma de aerossóis ou drageias de administração sublingual na profilaxia e tratamento de insuficiência cardíaca e hipertensão arterial. Esta substância é metabolizada no organismo por ação da enzima aldeído-desidrogenase, originando monóxido de nitrogénio, que é um potente vasodilatador2.

Estudos epidemiológicos são suportados por análises de dados obtidos em amostras de uma dada população e podem revelar correlações inesperadas entre fármacos e os seus efeitos. Tradicionalmente, estes estudos usam amostras devidamente preparadas para um dado objetivo e baseiam-se em técnicas básicas de estatística. A análise de grandes volumes de dados aumenta a probabilidade de se encontrarem correlações inesperadas que podem configurar descobertas serendipitosas. Porém, a aplicação massiva de métodos de estatística clássica pode encontrar, por coincidência numérica, correlações espúrias entre variáveis; por exemplo, Tyger Vigen constatou que o número de doutoramentos em engenharia civil nos Estados Unidos da América entre os anos de 2000 e 2009 está fortemente correlacionado (95,9%) com o consumo per capita de queijo mozzarella8. Ninguém acredita que estas duas variáveis estejam correlacionadas! Ou estarão?

Na última década, a sociedade global tem assistido a um aumento extraordinário e ininterrupto de informação depositada em enormes bases de dados, o que estimulou o desenvolvimento de novos métodos de tratamento de grandes quantidades de dados. Estas inovadoras técnicas de análise estão a criar uma autêntica revolução em quase todos os campos da Ciência porque se têm revelado extremamente eficazes na previsão de fenómenos. De facto, como já foi vaticinado por vários autores, as modernas técnicas de Inteligência Artificial e outros algoritmos de Big Data podem representar uma perfeita Máquina de Serendipidade9, no sentido em que permitem observações de causalidade inesperada que, obviamente, necessitarão de tratamento científico posterior adequado para se consolidar uma verdadeira descoberta científica.

A serendipidade, por definição, é um fenómeno aleatório. Se fosse possível controlá-lo, deixaria de se classificar como serendipidade. Não podemos, portanto, prever quando estamos perante um potencial caso de serendipidade, mas devemos manter sempre a nossa capacidade de observação aguda e o nosso espírito curioso, inquisitivo e crítico perante fenómenos que nos vão surgindo pela frente, mesmo quando aparentam ser erróneos.