Segundo a definição clássica, os antibióticos são todos os metabolitos microbianos naturais que, em baixas concentrações, inibem o crescimento de outros microrganismos1. No entanto, atualmente são considerados antibióticos todos os compostos que têm essa mesma função, mas que são obtidos por processos químicos (antibióticos sintéticos), ou pela modificação de antibióticos naturais (antibióticos semissintéticos)2. Assim, podemos considerar que os antibióticos são compostos naturais, sintéticos ou semissintéticos que têm a capacidade de matar ou inibir o crescimento de microrganismos como, fungos, protozoários ou bactérias3. Para além da ampla utilização na medicina humana e veterinária, estes são ainda utilizados em várias partes do mundo como substâncias promotoras de crescimento em animais destinados à produção de alimentos, como a pecuária e aquacultura (exceto na União Europeia que proibiu o seu uso para esse fim em 2006)4, 5, 6. Estes compostos podem ser divididos em diferentes grupos, de acordo com diferentes critérios, nomeadamente: a estrutura química, o espectro de ação (largo ou pequeno espectro) e o mecanismo de ação (quebra da estrutura ou função da membrana celular, inibição da estrutura e função dos ácidos nucleicos, inibição da síntese proteica e bloqueio das principais vias metabólicas, como por exemplo vias de síntese de vitaminas)7, 8.

O primeiro antibiótico sintético, conhecido como a bala mágica, surgiu em 1910, quando Paul Ehrlich desenvolveu o composto arsfenamina (mais tarde designado salvarsan) para curar uma doença endémica e praticamente incurável da altura, a sífilis9. Em 1928 surgiu uma das maiores descobertas na medicina, a penicilina. Este antibiótico natural, produzido pelo fungo Penicillium notatum foi descoberto acidentalmente pelo jovem médico Alexandre Fleming enquanto estudava uma bactéria capaz de provocar graves infeções, Staphylococcus aureus9, 10. Dada a sua elevada capacidade de agir contra microrganismos patogénicos, a descoberta dos antibióticos foi uma das maiores conquistas científicas até hoje, permitindo o tratamento de infeções antes consideradas mortais, promovendo o aumento da qualidade de vida humana e animal11. Atualmente, e de acordo com a sua estrutura química, são conhecidas várias classes de antibióticos, como tetraciclinas, fluoroquinolonas, sulfonamidas, β-lactâmicos, macrólidos, aminoglicosídeos e cefalosporinas12.

Com o aumento da população e crescente proliferação de doenças, a quantidade de antibióticos usados no tratamento ou prevenção das mais variadas doenças (quer em humanos, quer em animais) tem aumentado exponencialmente13. Apesar disso, nos últimos anos, o uso de antibióticos em humanos tem diminuído na União Europeia (o consumo total de antibióticos passou de 19,9 doses diárias definidas por 1000 habitantes em 2019, para 16,4 em 2020, o que representa um decréscimo de 17,6% nas taxas de consumo diárias). Este resultado parece ser um efeito positivo das iniciativas/tentativas de consciencialização dos riscos associados ao uso inadequado destes compostos, desenvolvidas pela Organização Mundial de Saúde (OMS) nos últimos anos14. O uso indevido e indiscriminado de antibióticos representa um grave problema económico, ambiental e de segurança alimentar15. Segundo a OMS, a resistência antimicrobiana é um problema mundial e uma das maiores ameaças à saúde pública deste século16. O uso excessivo destes compostos representa também um risco para os ecossistemas, contribuindo para o desenvolvimento e propagação de resistência a antibióticos (surgimento de bactérias multirresistentes) e, consequentemente perda da eficácia destes compostos.


Antibióticos e o ambiente.

Muitos resíduos de antibióticos acabam por entrar nos ecossistemas naturais durante o seu fabrico, utilização e eliminação13 (FIGURA 1), sendo geralmente detetados em baixas concentrações (ng/L ou μg/L). São vários os estudos que reportam a deteção de antibióticos em águas superficiais (p.ex.: rios e lagos) e subterrâneas17, mas principalmente em efluentes de estações de tratamento de águas residuais em todo o mundo18. As concentrações ambientais e o destino final destes fármacos dependem de vários fatores, como por exemplo da sua estrutura química, processos de transformação, taxas de degradação, complexação com outros compostos e/ou matéria orgânica19.

A entrada contínua de antibióticos nos ecossistemas pode afetar os organismos dos diferentes níveis tróficos e induzir efeitos adversos (p.ex.: mortalidade, alterações de comportamento, danos no DNA, alterações nas taxas de crescimento, reprodução e/ou alimentação) em organismos não alvo (bactérias, fungos, protozoários, algas, microcrustáceos e peixes)20, 21, devido à sua atividade biológica. Mesmo a baixas concentrações estes compostos podem comprometer o funcionamento normal dos organismos, sendo capazes de interagir com sistemas biológicos específicos (enzimas ou recetores)18, 19, desencadear diferentes respostas metabólicas ou fisiológicas22 e afetar os órgãos e/ou sistemas20. Em casos mais graves, podem também afetar níveis de organização biológica mais elevados, como populações ou comunidades23, 24, o que pode provocar a rutura das cadeias alimentares e afetar a dinâmica do ecossistema.


FIGURA 1. Vias de entrada de antibióticos em ecossistemas aquáticos e terrestres.

Apesar da biodisponibilidade e natureza física e química de cada antibiótico poder alterar o seu potencial de bioacumulação, e a sua integração nas redes alimentares, a biodisponibilidade e bioacumulação destes no ambiente pode ainda variar de acordo com as características físicas e químicas do meio (pH e temperatura). Estudos indicam que estes parâmetros podem afetar a estabilidade química e biológica dos compostos21, sendo capazes de alterar a toxicidade, comportamento de absorção, fotorreatividade e atividade antibiótica25.

Para entender as consequências que a contaminação por antibióticos pode provocar no ambiente é essencial estudar os eventuais efeitos a curto e longo prazo desta contaminação na conservação, biodiversidade e funcionalidade dos ecossistemas aquáticos, atendendo a que estes últimos representam, maioritariamente, o seu destino final (FIGURA 1). Para isso é necessário investir na monitorização e avaliação do impacte ambiental destes compostos e dos seus produtos de degradação. Este tipo de avaliação pode ser desenvolvida com base em protocolos padronizados envolvendo ensaios ecotoxicológicos (ensaios em laboratório de avaliação da toxicidade — efeitos sobre os organismos expostos) com diferentes organismos modelo e de diferentes níveis tróficos (microalga — Raphidocelis subcapitata, macrófita — Lemna minor, crustáceo — Daphnia magna, peixes — Danio renio e Oncorhynchus mykiss)26. Os resultados destes ensaios permitem avaliar e compreender os mecanismos toxicológicos dos antibióticos (ou outros contaminantes ambientais), prevendo ou mitigando potenciais consequências no ambiente. Estas ferramentas têm mostrado sensibilidade na avaliação de efeitos tóxicos quer de compostos individuais bem como de misturas complexas, situação que ocorre normalmente no ambiente (podendo ocorrer sinergismo, antagonismo, potencialização)27, 28, 29. Se o objetivo for avaliar uma resposta rápida e mais severa (mortalidade, inibição de crescimento) realizam-se ensaios agudos, onde num curto período de tempo de exposição são testadas concentrações elevadas do composto em estudo. Por outro lado, se o objetivo for avaliar o efeito a longo prazo (reprodução, comportamento), maior relevância ecológica, realizam-se ensaios crónicos, onde num longo período de tempo de exposição são testadas concentrações do composto já reportadas no ambiente. González-Pleiter et al.30, testou concentrações ambientalmente relevantes de diferentes antibióticos e misturas, e observou que certas combinações podem representar risco ecológico para os ecossistemas aquáticos, nomeadamente, tetraciclina e eritromicina afetaram o crescimento de organismos não alvo (microalga Raphidocelis subcapitata). Rodrigues et al.31, observou também que eritromicina provoca danos no DNA de truta arco-íris (O. mykiss), após exposição a concentrações ambientalmente relevantes.

Nos últimos anos, devido ao amplo uso em medicamentos humanos e veterinários, bem como a sua persistência no meio ambiente, são vários os antibióticos que têm sido incluídos na Lista de Observação sob a Diretiva-Quadro da Água, para serem monitorizados em águas superficiais interiores em toda a UE. Esta lista funciona como um sistema de alerta precoce para contaminantes de preocupação emergente, servindo para preencher as lacunas de conhecimento sobre os mesmos, reunindo dados de qualidade para determinar o risco que estes podem representar para os ecossistemas32. Além disso, outras entidades como a OMS ou a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (Food and Agriculture Organization of the United Nations — FAO), têm reunido esforços para tentar prevenir, reduzir e gerir as fontes de poluição da água, prestando atenção aos poluentes de preocupação emergente como os resíduos farmacêuticos15.

Para cumprir as metas de redução da contaminação ambiental é crucial reunir esforços a nível mundial de modo a aprimorar metodologias mais fidedignas e desenvolver métodos analíticos mais sensíveis para conhecer a realidade ambiental e determinar de forma mais efetiva as concentrações de antibióticos (e respetivos metabolitos) presentes nos ecossistemas. Além disso, é necessário aumentar a consciencialização para o tratamento de resíduos e apostar na revisão e atualização da legislação vigente dos diferentes países tendo como objetivo garantir a preservação dos ecossistemas. A Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável constitui um plano de ação (composto por 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS)) para acabar com a pobreza, proteger o planeta e melhorar a qualidade de vida à escala global33. Apesar desta agenda alertar para problemas ambientais (a libertação de produtos químicos e materiais perigosos para os ecossistemas aquáticos — ODS 6; impacto das alterações climáticas — ODS 13; libertação de resíduos para o ar, água e solo — ODS 12; degradação dos solos e perda de biodiversidade — ODS 15) que colocam em perigo a saúde ambiental e humana, existem vários fenómenos como os problemas associados ao uso excessivo de antibióticos (propagação de resistência a antibióticos e perda da eficácia dos mesmos, surgimento de bactérias multirresistentes) que não estão contemplados na lista dos ODS. Estudar o efeito individual ou em mistura de antibióticos não é apenas uma questão de saúde pública e ambiental, mas também é fundamental para o progresso do desenvolvimento global, e para o sucesso das várias metas propostas na Agenda 2030.