Diabetes e obesidade.

A diabetes mellitus caracteriza-se pela presença de elevados níveis de glicose plasmática, designada por hiperglicemia, como resultado de deficiências na secreção de insulina e/ou resistência à insulina. Esta doença pode ser classificada em diabetes tipo 1, diabetes tipo 2, diabetes gestacional e outros tipos específicos de diabetes1. De acordo com a International Diabetes Federation, cerca de 537 milhões de pessoas vivem atualmente com diabetes, podendo atingir 783 milhões em 20452. Em Portugal, segundo o último relatório divulgado pelo Observatório Nacional da Diabetes, estima-se que a prevalência da diabetes entre adultos com idades compreendidas entre os 20 e os 79 anos corresponde a 1 milhão de pessoas, representando cerca de 13,6% da população3. Este artigo surge na sequência da celebração do centésimo aniversário da primeira injeção bem sucedida de insulina num doente (Leonard Thompson). Este foi um marco na importante luta contra uma doença que antes era associada a uma mortalidade elevada e precoce4. Desde então, diversas classes de fármacos foram desenvolvidos para controlar a doença e permitir uma melhoria na qualidade de vida de pessoas com diabetes, sendo que nos últimos 10 anos as opções terapêuticas aumentaram consideravelmente5. Contudo, e apesar desse avanço, esta doença permanece sem cura, passando a constituir uma doença crónica, com elevado impacto a nível social e económico.

Como resultado da evolução dos tempos e da transição nutricional associada ao aumento global da população, alterações na produção, distribuição e consumo de alimentos expõem a população humana a múltiplos fatores com impacto no metabolismo e na fisiologia cardiometabólica6, 7. Decorrente destes fatores, a obesidade ou excesso de peso tem atingido proporções epidémicas, estando associada à morte de pelo menos 4 milhões pessoas a cada ano. O índice de massa corporal (IMC) é frequentemente utilizado na classificação da obesidade em adultos, sendo este igual ou superior a 30 kg/m2 em indivíduos obesos. De acordo com a Organização Mundial da Saúde, em 2016, mais de 1,9 mil milhões de adultos apresentavam excesso de peso, sendo que destes, 650 milhões eram obesos. Este número tenderá a crescer, uma vez que em 2020, 39 milhões de crianças com idade inferior a 5 anos sofriam excesso de peso ou obesidade8. A obesidade encontra-se envolvida não apenas na etiologia da diabetes tipo 2 (FIGURA 1) mas também possui um papel importante no desenvolvimento das suas complicações micro- (retinopatia, nefropatia e neuropatia) e macrovasculares (doença coronária, doença cerebral e hipertensão arterial)6, 9.


FIGURA 1. Patofisiologia da obesidade associada ao desenvolvimento da diabetes tipo 2.

A gestão farmacológica da obesidade envolve um longo período de história povoada por múltiplas e proeminentes desilusões. A base do fracasso tem sido multifactorial e deve-se essencialmente às limitações na utilização de modelos animais para prever a segurança cardiovascular, juntamente com considerável heterogeneidade dos indivíduos obesos. Doentes com obesidade, estão frequentemente associados a comorbilidades como a diabetes tipo 2, com alto risco de doenças vasculares, o que torna mais complexa a avaliação da farmacoterapia e da segurança na utilização da mesma. Ensaios clínicos a longo prazo, em larga escala, em coortes heterogéneas de obesos são onerosos e difíceis de justificar quando o sucesso tem sido vago e os fracassos proeminentes10. No entanto, o recente tratamento com fármacos que têm como mecanismo de ação a ligação ao recetor peptídeo semelhante à glicagina-1 (GLP1R), têm trazido uma nova esperança no futuro no que diz respeito ao tratamento da obesidade assim como da diabetes tipo 210, 11.


Fármacos disponíveis na Europa para o tratamento da diabetes tipo 2 e obesidade.

A obesidade tem ocupado uma posição de destaque como fator de risco em doenças não transmissíveis, onde se inclui a diabetes. De facto, a diabetes e a obesidade frequentemente coexistem, aumentando a dificuldade em encontrar o tratamento mais eficaz. Estudos demonstraram que a taxa de descontinuação de fármacos para o tratamento da diabetes tipo 2 é maior em doentes que aumentam de peso comparativamente com a sua redução5. Várias classes de agentes anti-diabéticos podem causar aumento de peso, como por exemplo os análogos da insulina, as tiazolidinedionas e as meglitinidas. Por outro lado, apenas três fármacos são aprovados atualmente na Europa para a diminuição do peso a longo prazo. Destes, apenas o liraglutido e mais recentemente o semaglutido, agonistas do GLP1R (GLP1RAs), são aceites para o tratamento simultâneo da obesidade e da diabetes tipo 212 (TABELAS 1 e 2). No entanto, o tratamento com estes agentes é limitado pelo seu modo de administração parenteral (subcutâneo)13.

Na TABELA 1 estão apresentados os diversos agentes anti-diabéticos aprovados pela Agência Europeia do Medicamento (EMA), assim como o seu efeito no peso do doente e potenciais efeitos adversos.

Como é possível verificar através da análise da TABELA 1, os fármacos utilizados para o tratamento da diabetes tipo 2 aprovados na Europa, com efeitos na redução de peso, são os inibidores da α-glicosidase, os GLP1RAs, assim como os inibidores do SGLT2. Na TABELA 2 são apresentados os fármacos aprovados pela EMA para o tratamento da obesidade.

Pela análise das TABELAS 1 e 2 é possível observar que os fármacos de eleição para doentes com obesidade associada à resistência à insulina e diabetes tipo 2 seriam os GLP1RAs (liraglitudo e semaglutido)20. O mesmo se pode verificar através da abordagem terapêutica eleita e aplicada na clínica no que respeita à obesidade e suas comorbilidades (FIGURA 2).


TABELA 1. Fármacos disponíveis na Europa para o tratamento da diabetes tipo 2 e respetivos mecanismo de ação, efeito no peso corporal e efeitos adversos.
ATP — adenosina trifosfato; cAMP — monofosfato cíclico de adenosina; GLP1 — peptídeo semelhante à glicagina 1; GLP1R — recetor do peptídeo semelhante à insulina; GLP1RAs — agonistas do recetor do peptídeo semelhante à glicagina 1; PPARγ — recetor ativado por proliferadores do peroxissoma γ; SGLT2 — transportador de sódio-glicose 2; SNC — sistema nervoso central.


TABELA 2. Fármacos disponíveis na Europa para o tratamento da obesidade e respetivos mecanismo de ação, a possibilidade para o tratamento da diabetes tipo 2 e efeitos adversos.
AgRP — peptídeo relacionado ao gene agouti; CART — transcrição regulada por anfetaminas e cocaína; NYP — neuropeptídeo Y; POMC — pró-opiomelanocortina.

Para além da componente genética, a obesidade e diabetes tipo 2 envolvem também fatores de risco ambientais, nomeadamente sedentarismo, consumo de álcool e tabaco e dieta rica em açúcar, gorduras e carnes vermelhas21. Desta forma, este tratamento deve ser acompanhado com intervenções que visem alterações no estilo de vida e de comportamento dos doentes22, 23.

De acordo com os dados e os números apresentados neste artigo, há necessidade de aumentar a sensibilização para a obesidade e a diabetes como uma questão de saúde global e de se abordar a prevenção e o tratamento como parte dos cuidados de saúde primários e da cobertura sanitária universal8. Torna-se imperativo reduzir o risco de desenvolvimento de ambas as doenças e assegurar que todas as pessoas diagnosticadas tenham acesso a um tratamento equitativo, abrangente, acessível e de qualidade.

Adicionalmente, devido à complexidade e heterogeneidade das doenças aqui mencionadas, assim como o aparecimento de complicações associadas, deve ser adotada uma terapia individualizada, tendo por base as características e índices metabólicos de cada doente24, 25, 26, 27. Atualmente, o tratamento da diabetes tipo 2 e da obesidade é realizado através da adoção de diretrizes internacionais estabelecidas pela Associação Americana de Diabetes (AAD) e Associação Americana dos Endocrinologistas Clínicos28, 29. Várias das opções de tratamento são baseadas nas evidências acumuladas na fase 3 de ensaios clínicos e estudos populacionais.


FIGURA 2. Escolha da intervenção terapêutica na obesidade e suas comorbilidades (adaptado de Son e Kim)19. IMC — índice de massa corporal; NASH — esteato-hepatite não alcoólica; SOPC — síndrome do ovário policístico.

Em particular, a AAD recomendou recentemente uma terapia mais específica e direcionada para o paciente, tendo em conta vários aspetos como o comportamento e disponibilidade do paciente, risco hipoglicémico, duração da doença, esperança de vida, existência de complicações micro ou macrovasculares, fatores genéticos e recursos aos cuidados de saúde5.


Conclusão.

A descoberta e administração de insulina é indubitavelmente uma esperança de vida para um elevado número de diabéticos. No entanto novas questões se levantam, em consequência da obesidade ser atualmente o maior fator de risco para o desenvolvimento da diabetes. Estes dados refletem a necessidade de pesquisa e desenvolvimento de novas opções farmacológicas eficazes no tratamento da diabetes, com efeitos na redução de peso a longo prazo. A recente utilização do liraglutido e semaglutido resulta numa perda de peso superior a 10%, tendo em conta o seu mecanismo de ação, o que provou ter um impacto benéfico a nível cardiovascular em doentes com diabetes tipo 2, inspirando confiança no futuro. O tratamento da obesidade e diabetes deve ser personalizado e associado a mudanças comportamentais e do estilo de vida, tais como a prática de exercício físico, cessação tabágica, redução na ingestão de bebidas alcoólicas e hábitos alimentares mais saudáveis.


Agradecimentos.

Os autores agradecem o apoio financeiro de fundos nacionais (FCT/MCTES, Fundação para a Ciência e Tecnologia e Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior) através do projecto UIDB/50006/2020. Os autores também agradecem o financiamento através de fundos da União Europeia (FEDER) e nacionais (FCT) através do projeto EXPL/MED-QUI/0815/2021. CP e ATR agradecem a FCT o seu financiamento através do projecto PDTC/MED- -QUI/29241/2017. MF agradece o seu contrato ao abrigo do CEEC Individual (2020.04126. CEECIND/CP1596/CT0006).