A Calçada Portuguesa é uma forma de arte portuguesa, que está hoje espalhada por todo o país e por todo o mundo, do Brasil a Macau, passando por África. Esta expressão cultural é uma herança histórica da cultura e da tecnologia de empedramento das vias e mosaicos romanos, que se renovou em Portugal na renascença nos reinados de D. João II e de D. Manuel.

A primeira das calçadas decorativas, hoje conhecidas por Calçadas Portuguesas, terá sido feita em Lisboa em 1842. Eusébio Pinheiro Furtado, oficial de engenharia e então o governador do Castelo de São Jorge, mandou fazer uma calçada num dos acessos ao castelo por presos da Cadeia do Limoeiro. Esse pavimento com um traçado simples, a preto e branco usando calcário e basalto, teve grande sucesso, servindo de exemplo à pavimentação de toda a área da Praça do Rossio, numa extensão de 8 712 m², que ficou concluída em 1849 com um padrão da autoria daquele engenheiro militar.


FIGURA 1. Litografia colorida dos finais do século XIX com a Praça D. Pedro IV, o Rossio, em Lisboa.

Esse padrão, com ondas pretas e brancas, tornou-se icónico e ficou conhecido como Mar Largo, em homenagem aos descobrimentos Portugueses, evocando a expressão camoniana5 dos versos de Os Lusíadas (IV.66):


Manuel, que a Joane sucedeu

No Reino e nos altivos pensamentos,

Logo tomou do Reino cargo,

Tomou mais a conquista do mar largo.


O Mar Largo do Rossio foi removido em 1919 e parcialmente reposto em 1976, tendo sido restabelecido na sua forma atual em 2001. Entretanto, o Mar Largo esteve presente na Exposição Universal de Paris em 1900 e atravessou rapidamente o Atlântico calçando o Largo de São Sebastião em Manaus, em 1901, e a marginal de Copacabana, no Rio de Janeiro em 1905, dando lugar ao atual calçadão carioca em 1970. Surge atualmente em vários locais, em Portugal e no Mundo, como, por exemplo, em Cascais ou na Nazaré e na Ilha de Moçambique ou em Macau, no Largo do Senado até à Igreja de São Domingos.

A simetria sempre fascinou a humanidade, aparecendo na arquitetura, nas artes decorativas, nas engenharias e nas ciências. Há milhares de anos que os padrões planos são utilizados no dia-a-dia em artefactos, tecidos ou pavimentos, seja nas formas primitivas da civilização, seja nas formas mais avançadas. Por exemplo, na Idade Média, a arte islâmica criou formas geométricas com simetrias elaboradas, alcançando no século XIII e XIV, nos caleidoscópios e nos mosaicos da Alhambra, em Granada, o conjunto completo dos 17 padrões cristalográficos do plano.

O conceito de simetria foi introduzido nas ciências, e em particular na matemática, no século XIX. A sua associação aos grupos de transformação na geometria, em 1869, está associada a Camille Jordan, e o estudo das simetrias na cristalografia, aos trabalhos do matemático Artur Schönflies, que, em 1891, conduziram à catalogação completa dos 230 grupos de simetria espacial, em colaboração com o mineralogista Evgraf Fedorov, que também efetuou a primeira identificação dos grupos cristalográficos no plano e concluiu serem exatamente 17.


FIGURA 2. A cruz 1 tem 4 eixos de simetria e um centro de simetria, pelo que é invariante para reflexões e rotações; a cruz 2 não tem eixos de simetria, mas tem centro de simetria, em torno do qual permanece invariante para rotações de 90°; a cruz 3 não é uma figura simétrica, pois não existem nem eixos nem centros de simetria, pelo que não existe nenhuma transformação geométrica diferente da identidade que a deixe globalmente invariante.

Mas o que significa ter simetria? Em linguagem corrente, dizemos que uma figura é simétrica (do grego antigo sum metria) se possui uma simetria axial. Mais geralmente, podemos dizer que uma figura ainda é simétrica mesmo quando não tem eixos de simetria, desde que exista uma transformação geométrica, como uma rotação ou uma reflexão, que a deixa globalmente invariante, isto é, podem alguns ou todos os pontos da figura mudar de posição mas a figura, como um todo, não apresenta modificações em relação à forma inicial.

A definição matemática de simetria recorre ao conceito de grupo, mas não necessitamos dele para caracterizar os quatro tipos de simetria relevantes à compreensão dos padrões e os frisos no plano das calçadas. São eles:

  • Simetria por reflexão (espelhos);
  • Simetria por rotação (girações);
  • Simetria por reflexão deslizante (cruzamentos);
  • Simetria só por translação (admirações).

Tal como se usam os algarismos para exprimir números e símbolos para representar operações matemáticas, usaremos uma notação introduzida por Conway nos anos 1980’s, para denotar os tipos de simetrias, atribuindo uma assinatura simbólica a cada uma delas. Assim, uma estrela * é usada para indicar uma simetria de espelho, e para a assinatura do tipo da simetria da letra H, que tem dois eixos de simetria que se cruzam num ponto, escrevemos *2.

Os algarismos 2, 3, 4, … são usados para simbolizar a ordem da rotação em torno de cada centro de simetria. Por exemplo, a assinatura do tipo de simetria da cruz 2 da FIGURA 2 é simplesmente 4 (=360°/90°).

O símbolo X denota uma reflexão deslizante, que, juntamente com as reflexões e as rotações, devem ser contabilizadas em prioridade sobre as translações.

O símbolo O denota uma simetria só por translação. Um padrão do tipo O é um padrão que não apresenta nem espelhos, nem girações, nem cruzamentos, e apenas apresenta translações.


FIGURA 3. Matematicamente, o Mar Largo tem a simetria com duas rotações de 180° e com uma reflexão de espelho, determinando assim uma assinatura 2 2 * e corresponde ao grupo cristalográfico p2mg1.


FIGURA 4. A calçada da Rua Garret no Chiado tem a assinatura *442 e o padrão desenhado por João Abel Manta na Praça dos Restauradores tem a assinatura 442, correspondendo aos grupos cristalográficos p4mm e p4, respetivamente1.



FIGURA 5. A calçada colorida no Mosteiro dos Jerónimos do lado do Planetário Gulbenkian tem assinatura XX, correspondendo ao grupo cristalográfico pg, e os anéis na calçada da Praça da República em Aveiro é o tipo de padrão O, um dos cinco ainda não encontrados em Lisboa, correspondendo ao grupo cristalográfico p11.


Para além da pioneira e icónica calçada do Mar Largo, Lisboa tem várias outras praças e múltiplas ruas pavimentadas com a Calçada Portuguesa. Para além da Praça dos Restauradores, cujo padrão com a assinatura 4 4 2 foi desenhado pelo arquiteto e ilustrador João Abel Manta, a Praça do Município foi repavimentada em 1997/1998 com uma calçada desenhada pelo pintor e artista plástico Eduardo Nery, com uma simetria do tipo * 4 4 2.


FIGURA 6. Os espelhos estão assinalados a vermelho e amarelo. Estes eixos encontram-se em três tipos de centros: Centros dos quadrados negros, centros dos quadrados brancos e vértices onde se encontram quatro triângulos maiores, dois negros e dois brancos. Nos centros dos quadrados negros ou brancos cruzam-se quatro eixos de reflexão e nos pontos de encontro de 4 triângulos só se cruzam 2 eixos. Portanto, a sua simetria tem assinatura * 4 4 2, corresponde ao grupo p4mm1.

Em 1924 o matemático George Pólya redescobriu os 17 grupos de simetria bidimensionais, também chamados grupos cristalográficos no plano ou de papéis de parede, encontrados por Fedorov em 1891.

Estes têm uma complexidade intermédia entre os 7 grupos dos frisos, cujos padrões de simetria em forma de faixa incluem necessariamente o símbolo ∞ na assinatura, e os grupos espaciais de simetria nas dimensões 3 e 4, que são, respetivamente 219 (ou 230 se as cópias quirais forem consideradas distintas) e 4783. O quadro abstrato da topologia algébrica permitiu, nos anos 1980’s, dar uma explicação geométrica para a existência de exatamente 24 tipos de simetria planar2, que chamaremos Teorema Mágico (FIGURA 7), sendo 17 papéis de parede e 7 frisos.

Os frisos encontram-se nas artes decorativas de várias civilizações. Com efeito, com as nossas pegadas podemos estampar facilmente os sete tipos de frisos, todos eles existindo já nas calçadas de Lisboa. Alguns são antigos, outros mais recentes como o padrão ∞ X, colocado na Praça Duque de Saldanha em 2017.

Uma das autoras, tendo observado mais de duzentas calçadas públicas em Portugal desde 2005, ano em que o matemático e professor da Universidade de Princeton (EUA) ministrou um curso sobre simetria em Lisboa, lançou o projeto Simetria Passo a Passo1, que contou com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian e, com a colaboração de dois estudantes do Instituto Superior Técnico, procedeu a um primeiro levantamento sistemático das calçadas simétricas, tendo proposto, em 2010, uma Rota da Simetria para Lisboa.


FIGURA 7. Os padrões correspondem as 17 assinaturas nos quadrados a azul claro e aos frisos as assinaturas assinaladas nos 7 quadrados mais escuros, estando assinalados com um círculo os 5 padrões que não foram ainda encontrados nas calçadas de Lisboa.

Em 2006, a Câmara Municipal de Lisboa e a Sociedade Portuguesa de Matemática assinaram um protocolo de colaboração para divulgar e completar os tipos de simetria existentes nas calçadas de Lisboa. Apesar dos 7 tipos de frisos já ter sido completado, ainda não se conhecem os 5 padrões indicados na FIGURA 7.


FIGURA 8. Os passos nos frisos: ∞ X andamento normal; ∞ * salto com pés juntos; *2 2 ∞ salto com os dois pés aterrando de frente ou de costas; * ∞ ∞ salto com os pés de lado; 2 * ∞ salto com os dois pés de lado e rodando 180°; ∞ ∞ salto ao pé coxinho; 2 2 ∞ salto com o pé coxinho rodando 180°.

As simetrias planas na cultura portuguesa não aparecem só nas calçadas, mas também, por exemplo, nos azulejos. A riqueza visual e didática da simetria constitui um tema de relevante para a divulgação da matemática e para o ensino, fazendo parte dos novos programas do ensino básico.


FIGURA 9. Simetria *2 2 ∞ no passeio da Rua Garrett em 1922 e friso ∞ X colocado em 2017 na Praça Duque de Saldanha.

A descrição de um DVD Simetria, apresentação dinâmica4, produzido em 2009 pela associação Atractor, baseia-se na ideia da classificação dos padrões duplamente periódicos no plano inspirada no tratamento dos matemáticos M. MacBeath e W. Thurston que conduziu ao referido Teorema Mágico2. Esse DVD é ilustrado com azulejos portugueses e mostra animações da produção de frisos e padrões com os 24 carimbos da FIGURA 11.


FIGURA 10. Uma calçada imaginária com hélices de seis pás com centros de rotação de ordem 6, 3 e 2, correspondendo a rotações de 60°, 120° e 180° tem a assinatura 6 3 2 (à esquerda) e outra com hélices de três pás triangulares dispostas de forma a que os seus centros se cruzem três espelhos tem a assinatura * 3 3 3 (à direita), correspondendo aos grupos cristalográficos p6 e p3m1, respetivamente1.

A associação Atractor produziu e disponibiliza em acesso livre o programa GeCLa, acessível a alunos de vários graus de ensino, que é capaz de gerar frisos e padrões e classificar as simetrias do plano. Este instrumento é, portanto, um poderoso meio de, dando largas à criatividade artística de cada um, em particular dos jovens, ajudar a promover a concursos para a construção de frisos e padrões e completar as 24 simetrias, não só nas calçadas de Lisboa, mas também pelas ruas e praças do resto do país.

No âmbito da celebração do tema Matemática do Planeta Terra, uma iniciativa lançada no quadro da IMU (International Mathematical Union), que envolveu em 2013 várias associações e instituições em Portugal e foi apoiada pela Comissão Nacional de Matemáticas e pela Comissão Nacional da UNESCO, o Museu Nacional de História Natural e da Ciência da Universidade de Lisboa organizou uma série de ações e, seguindo a sugestão do projeto Simetria Passo a Passo, em particular, lançou em junho desse ano uma série de visitas guiadas com uma Rota das simetrias das calçadas de Lisboa, com um percurso com nove calçadas, partindo da calçada do Jardim Botânico e terminando na Praça do Município, passando pelas Praças dos Restauradores e do Rossio.


FIGURA 11. Os 24 carimbos para estampar os 17 padrões e 7 frisos no plano (os 6 na linha de baixo e o 7.º acima do último à direita), escolhendo livremente um motivo sem simetria, como por exemplo a letra J.

Essas visitas guiadas, que tiveram o apoio do Ciência Viva e da Câmara Municipal de Lisboa, mostravam e explicavam as assinaturas dos padrões dessas nove calçadas e relatavam as caraterísticas geológicas de Lisboa, evocando a ligação aos cristais através das simetrias matemáticas e anunciando o Ano Internacional da Cristalografia que decorreu em 2014.

Em 2017 foi constituída a Associação da Calçada Portuguesa, impulsionada pela Câmara Municipal de Lisboa, com o desígnio de proteger, promover, valorizar e a internacionalizar a Calçada Portuguesa.


Agradecimentos.

Os autores agradecem aos fotógrafos João Ferrand e Ernesto Matos a autorização da reprodução das imagens de Lisboa (nas FIGURAS 3, 4, 5 e 6) e de Aveiro (na FIGURA 6), respetivamente.


ANEXO

O roteiro das simetrias de nove calçadas em Lisboa nas visitas guiadas organizadas pelo Museu Nacional de História Natural e da Ciência da Universidade de Lisboa, participaram nas celebrações da Matemática do Planeta Terra em 2013.