A mudança sazonal da cor da pelagem e os desafios das alterações climáticas.

As alterações climáticas são uma das principais causas das perdas de biodiversidade registadas nas últimas décadas1. Um dos grandes desafios da investigação científica na atualidade é perceber de que forma as espécies se poderão adaptar face a estas rápidas mudanças. A variação genética pré-existente nas populações naturais poderá ser um dos fatores mais determinantes para a sobrevivência das espécies, em particular a variação genética adaptativa, isto é, a que se encontra associada à determinação de fenótipos favoráveis à sobrevivência em determinadas condições ambientais2, 3.

A mudança sazonal da cor é uma característica adaptativa descrita em cerca de 20 espécies de aves e mamíferos e consiste na alternância sazonal da cor do pelo ou penas, de castanho no verão para branco no inverno4 (FIGURA 1A)). Estas espécies habitam primariamente o hemisfério norte, onde se incluem regiões com neve sazonal (no inverno), pelo que esta característica permite que os animais se mantenham camuflados ao longo de todo o ano. O fotoperíodo é o principal fator que desencadeia a mudança de cor, embora outros, como a temperatura, possam afetar a sua velocidade4, 5, 6. O aquecimento global tem levado a reduções significativas da cobertura de neve, que resultam em períodos de neve mais tardios, mais curtos e de menor extensão geográfica7, enquanto o fotoperíodo se mantém constante. Isto faz com que os animais enfrentem períodos de disrupção da camuflagem, em que apresentam uma pelagem branca, quando não existe (ou existe pouca) neve no ambiente (FIGURA 1B)). Espera-se que estas condições tenham impactos significativos na sobrevivência das populações brancas no inverno, devido ao aumento da predisposição para serem predados e consequentes aumentos de mortalidade5, 8, 9.

Em muitas destas espécies existe ainda polimorfismo da cor de inverno, isto é, existem dois fenótipos alternativos, observando-se não só populações que mudam de cor para branco, mas também populações que se mantêm castanhas durante todo o ano (FIGURA 1A)). Este polimorfismo é determinado a nível genético e, em diferentes espécies de lebres, doninhas e raposas, já foi possível associar cores de inverno alternativas com mutações em regiões genómicas envolvidas na produção de pigmento10, 11, 12, 13, 14. A distribuição geográfica de populações com cores de inverno diferentes é primariamente determinada por gradientes ambientais associados à cobertura de neve, sendo a ocorrência de populações castanhas mais provável em locais de baixa latitude, de menor altitude e/ou mais próximos de zonas costeiras, onde a queda de neve no inverno é mais inconsistente, ou inexistente15. A mudança sazonal da cor é, assim, um exemplo claro de uma característica cujo valor adaptativo poderá ser severamente afetado pelas alterações climáticas, mas na qual a existência de variação genética, associada a um polimorfismo fenotípico, poderá ser crucial para garantir a sobrevivência das espécies face ao aquecimento global15.


FIGURA 1. Mudança sazonal da cor da pelagem. A) O ciclo da muda de cor, de castanho no verão para branco no inverno, e o polimorfismo associado à cor de inverno. B) Exemplos de uma lebre americana (Lepus americanus) e uma doninha-anã (Mustela nivalis) em disrupção de camuflagem. Fotografias: Laboratório de investigação de L. Scott Mills; Karol Zub.


Estudar a evolução da mudança sazonal da cor da pelagem na sala de aula.

Na Escola Secundária de Rio Tinto (ESRT), os estudantes do ensino secundário que frequentam a disciplina de Biologia são incentivados a desenvolver um projeto de investigação semestral, em articulação com o Clube de Ciência Viva na Escola – ESRT (CCVnE – ESRT). Este projeto pode ser escolhido de entre um leque de opções apresentadas aos alunos, ou por eles idealizado. No ano letivo 2022/2023, um dos projetos disponíveis debruçou-se sobre o tema da mudança sazonal da cor da pelagem, como resultado de uma parceria entre o centro de investigação CIBIO-InBIO/BIOPOLIS e o Agrupamento de Escolas de Rio Tinto n.º 3 (AERT3). Os objetivos gerais do projeto incluíram:

  • Apresentar aos estudantes as etapas de desenvolvimento de um projeto de investigação, desde a conceptualização à divulgação de resultados;
  • Utilizar o tema da mudança sazonal da cor da pelagem para explorar conceitos relevantes na área da Biologia, em particular no estudo da evolução, como fenótipo e genótipo, variação fenotípica e genética, mutação, polimorfismo, seleção natural e adaptação;
  • Desenvolver competências a nível informático, através do uso de diversas ferramentas ao longo das diferentes tarefas do projeto.


O projeto foi apresentado aos estudantes durante uma atividade prática desenvolvida em novembro de 2022, aberta a todos os interessados (ver secção Apresentação do projeto), ao que se seguiu um período para refletirem sobre o seu interesse em participar no mesmo e se inscreverem. As atividades do projeto foram desenvolvidas entre janeiro e maio de 2023, ao longo de 15 sessões semanais, com a duração de 2 a 3 horas cada (ver secção Desenvolvimento do projeto). Adicionalmente, os estudantes foram incentivados a realizar trabalho autónomo, sempre que necessário para a conclusão das tarefas.

A investigação desenvolvida intitulou-se “A mudança sazonal da cor da pelagem e as características ambientais que a determinam em espécies de mamíferos”, tendo quatro objetivos específicos:

  • Identificar as variáveis (características) ambientais e climáticas com maior impacto na distribuição atual dos dois fenótipos de inverno associados à mudança sazonal da cor da pelagem, em seis espécies de estudo;
  • Estimar a distribuição atual dos fenótipos de inverno, ao longo da distribuição geográfica das espécies;
  • Utilizar modelos climáticos futuros para prever como a distribuição poderá evoluir face às alterações climáticas;
  • Divulgar os resultados obtidos à comunidade escolar.


Apresentação do projeto: atividade prática.

O recrutamento de alunos para participar no trabalho foi feito através do desenvolvimento de uma atividade prática. Esta atividade visou replicar os conceitos e métodos a implementar no projeto semestral, sem contextualização teórica, a priori, do sistema biológico em estudo. Para a sua realização, os estudantes foram divididos em grupos de trabalho de 4 a 5 elementos.

A fase inicial consistiu no desenvolvimento de um desafio (FIGURA 2), onde foram apresentadas instruções para a realização de duas tarefas, em momentos consecutivos. Numa primeira etapa, os estudantes foram incitados a distribuir num mapa da Europa observações possíveis de indivíduos de uma espécie hipotética com dois fenótipos distintos. Os dados disponíveis sobre estas observações hipotéticas incluíam informação sobre o fenótipo do animal, a sua localização (em formato de coordenadas geográficas) e a data em que foi avistado. A informação foi disponibilizada aos estudantes na forma de lista e, usando estes dados, as observações de cada fenótipo foram assinaladas num mapa georreferenciado utilizando ícones de diferentes cores. Na segunda tarefa, os alunos compararam a distribuição dos fenótipos com a distribuição dos valores de diferentes variáveis ambientais e climáticas na mesma região geográfica. Para tal, foram disponibilizados mapas destas variáveis para a Europa. O objetivo consistiu na tentativa de identificação das variáveis ambientais cuja distribuição mais se assemelhava à obtida para os fenótipos.

Concluído o desafio, os estudantes discutiram os resultados obtidos pelos diferentes grupos, avaliando a convergência das suas conclusões e levantando hipóteses sobre o modelo biológico em análise na atividade. Finalmente, seguiu-se uma introdução do tema e objetivos do projeto a desenvolver no semestre seguinte.


FIGURA 2. Participantes da atividade de apresentação do projeto resolvem os desafios propostos. Fotografia: M. Natália Ferreira.

Os materiais utilizados e a descrição detalhada de como implementar esta atividade podem ser consultados em repositório anexo a este artigo (ver abaixo). As tarefas podem ser adaptadas a diferentes faixas etárias, com maior ou menor grau de complexidade e de informação inicial, permitindo explorar, de forma interativa, os conceitos evolutivos acima listados.


Desenvolvimento do projeto: principais etapas.

Durante o desenvolvimento do projeto, os alunos trabalharam individualmente ou em pares, estando cada grupo responsável pelo estudo de uma das espécies que apresentam mudança sazonal da cor da pelagem4. Para atingir os objetivos específicos descritos, o trabalho dos estudantes contou com tarefas distintas que, ao serem realizadas, lhes permitiram explorar as diferentes fases de um projeto de investigação. Segue-se uma descrição mais detalhada das tarefas desenvolvidas (FIGURA 3).


Fase 1. Recolha de dados.

Para obter observações da espécie em estudo, os alunos utilizaram bases de dados públicas, como as plataformas Global Biodiversity Information Facility ou Biodiversity4All, nas quais instituições de investigação, museus, investigadores ou cidadãos não-especialistas podem fazer o registo de observações da biodiversidade terrestre. Restringiram-se a registos efetuados no inverno, com coordenadas geográficas e foto, a qual permitisse identificar o fenótipo de inverno (branco ou castanho) do animal observado.

Além disso, obtiveram dados climáticos e ambientais em bases de dados como o WorldClim e o CHELSA, onde se encontram depositados modelos climáticos desenvolvidos por investigadores. Os dados climáticos foram obtidos para dois períodos temporais: um mais próximo ao atual (1980-2010) e outro do futuro (2070-2100).


FIGURA 3. Esquema das principais fases do projeto desenvolvido pelos estudantes ao longo do semestre, distribuídas pelas diferentes etapas do processo de investigação.

Para os dados futuros, obtiveram estimativas relativas a dois modelos climáticos: um mais otimista (que assume um aquecimento global mais lento) e outro mais pessimista (que assume um aquecimento global mais significativo).


Fase 2. Análise de dados e interpretação de resultados.

Os estudantes analisaram os dados recolhidos usando diversas ferramentas informáticas, como o Microsoft Excel, softwares baseados em Sistemas de Informação Geográfica e a linguagem de programação R, para as quais receberam um breve enquadramento teórico-prático. Começaram por comparar as observações recolhidas com a distribuição geográfica descrita para as espécies em estudo, excluindo registos que caíssem fora da mesma. De seguida, compararam estatisticamente a distribuição geográfica das observações de cada fenótipo de inverno com os valores de diferentes variáveis ambientais e climáticas em cada ponto de observação, usando dados climáticos atuais. Isto permitiu que identificassem as variáveis que mais se correlacionam com a distribuição fenotípica e, portanto, que se espera que sejam importantes para determinar a presença de um ou outro fenótipo em certo local. Adicionalmente, usaram essa informação para estimar a distribuição atual de cada fenótipo, ao longo de toda a distribuição geográfica da espécie. Finalmente, as mesmas correlações foram aplicadas aos dados dos dois modelos climáticos futuros, para prever como esta distribuição se poderá alterar, em condições climáticas futuras mais ou menos otimistas. Os modelos de distribuição dos fenótipos obtidos foram comparados visualmente, com o objetivo de identificar possíveis diferenças entre as estimativas para os dois períodos temporais e fazer inferências sobre a possibilidade de adaptação das espécies no contexto das alterações climáticas.


Fase 3. Divulgação de resultados.

Para apresentarem o trabalho desenvolvido e os resultados obtidos à comunidade escolar, os alunos elaboraram diversos produtos. Durante o desenrolar do projeto, mantiveram registos detalhados das atividades e tarefas realizadas, que integraram um portfólio digital na plataforma Padlet. No final do projeto, cada grupo preparou um poster científico, onde apresentou os seus principais resultados e conclusões, de forma sistemática. Adicionalmente, os estudantes dinamizaram uma banca de atividades na feira de ciências anual da escola, onde desenvolveram jogos inseridos na temática do projeto de investigação (FIGURA 4). Por fim, realizaram uma apresentação oral no I Encontro de Ciência da escola, no qual foram apresentados à comunidade escolar todos os projetos desenvolvidos ao longo do ano letivo. Alguns materiais produzidos pelos alunos podem ser consultados em repositório anexo.

A coordenação do projeto, incluindo a disponibilização de materiais aos alunos ao longo do semestre, contou ainda com a utilização de plataformas online de trabalho colaborativo, como o Google Classroom e o Mural.


FIGURA 4. Detalhes da banca de divulgação organizada pelos alunos do projeto para a feira de ciência da escola. Fotografia: Inês Miranda.


Balanço do projeto: competências e aprendizagens.

O projeto, sustentado pelo domínio “Preservar e recuperar o ambiente” das Aprendizagens Essenciais de Biologia do 12.º ano, permitiu, também, a concretização das Aprendizagens Essenciais Transversais (AET), em especial a de “Formular e comunicar opiniões críticas, cientificamente fundamentadas e relacionadas com Ciência, Tecnologia, Sociedade e Ambiente (CTSA)”16.

Saliente-se que, ao longo do semestre, os alunos depararam-se com diversas dificuldades e obstáculos, que traduzem aqueles que são, muitas vezes, as dificuldades e obstáculos sentidos por investigadores experientes nas suas linhas de investigação. Tal permitiu que desenvolvessem competências diversas, onde se destacam as de relacionamento interpessoal, em particular o trabalho em equipa, a comunicação oral e escrita, o pensamento crítico e criativo, a autonomia, o raciocínio (científico) e a resolução de problemas, bem como o saber científico, técnico e tecnológico, todas inscritas no Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória17. Adicionalmente, o desenvolvimento do trabalho possibilitou não só a consolidação de importantes conceitos biológicos, através sua aplicação num contexto real de investigação, mas também a utilização de ferramentas de análise de dados habitualmente não exploradas em contexto escolar, como softwares especializados para análises geográficas e uma linguagem de programação. Isto permitiu que adquirissem noções e competências básicas de tratamento de dados avançado, que poderão ser úteis noutros contextos académicos ou profissionais.

A participação ativa dos estudantes em todas as fases do trabalho, com a exceção da sua conceptualização, permitiu um envolvimento permanente, que culminou com atividades de divulgação muito bem-sucedidas e elogiadas por toda a comunidade escolar. Num inquérito anónimo conduzido aquando do encerramento do projeto, os participantes consideraram que, no geral, esta foi uma experiência positiva e que lhes permitiu conhecerem melhor as diferentes etapas que pautam a investigação científica. Além disso, o trabalho dos alunos foi sempre acompanhado por dois investigadores, permitindo-lhes o contacto e interação diretos, a partilha de experiências, bem como o esclarecimento de dúvidas e a eliminação de conceções equivocadas sobre a atividade de investigação, contribuindo para a desmistificação da profissão.

A implementação deste projeto permitiu, assim, aproximar a ciência da sala de aula, contribuindo para a aprendizagem e crescimento dos estudantes.


Material Anexo

Os materiais usados para a dinamização da atividade prática de apresentação do projeto, os documentos utilizados durante o desenvolvimento das diferentes fases do trabalho e alguns exemplos das produções dos estudantes podem ser consultados em: https://doi.org/10.6084/m9.figshare.24260620.


Agradecimentos

Este trabalho foi desenvolvido no âmbito do projeto de investigação “HybridChange”, PTDC/ BIA-EVL/1307/2020, suportado por fundos nacionais através da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT). A autora I.M. foi apoiada por uma bolsa de doutoramento, SFRH/ BD/143457/2019, financiada por fundos nacionais e do Fundo Social Europeu (FSE), através da FCT. O tema do trabalho insere-se nas linhas de investigação do grupo de investigação EVOCHANGE do CIBIO-InBIO, BIOPOLIS, Universidade do Porto. Agradecemos a José Melo- -Ferreira, Paulo Célio Alves, L. Scott Mills e Jeffrey M. Good pelo desenvolvimento conceptual da investigação que deu origem a este trabalho. Agradecemos à Direção do AERT3, na pessoa do seu Diretor, professor Nuno Santos, pelo acolhimento do projeto e por facilitar o acesso às instalações necessárias à implementação bem-sucedida do mesmo.