O que são nanopartículas?

A palavra “nanopartícula” designa uma entidade muito pequena, cujo tamanho é convenientemente definido utilizando o nanómetro como unidade de medida de comprimento, ou seja, o equivalente ao milésimo de um milionésimo do metro (10-9 m). Apesar da sua relativa pequenez, uma nanopartícula é um objeto gigantesco quando o seu tamanho é comparado com as dimensões dos átomos. Por exemplo, o raio atómico do hidrogénio é 53 picómetros (pm), portanto, o picómetro em relação ao nanómetro é uma unidade de dimensão mil vezes inferior (10-12 m). Tal como muitos outros termos contendo o prefixo “nano”, a palavra “nanopartícula” é utilizada amplamente hoje em dia, o que em parte se deve à importância crescente atribuída à Nanotecnologia. Esta integra conhecimentos e práticas multidisciplinares que procuram compreender as propriedades dos materiais com dimensões nanométricas, incluindo, nomeadamente, a sua síntese e manipulação, bem como o fabrico de dispositivos de baixa dimensionalidade que, inclusivamente, podem ser reduzidos até dimensões moleculares. Os objetos de estudo utilizados nestes processos apresentam dimensões típicas entre 1-100 nm, entendido como um intervalo com limites ajustáveis, já que para além de possuirem dimensões que viabilizam processos de miniaturização tecnológica, os nanomateriais adquirem especial importância por exibirem propriedades únicas que dependem intrinsecamente de efeitos de tamanho e da elevada área de superfície por volume de material1, 2.

Entre as diversas classes de nanomateriais existentes, as nanopartículas de natureza coloidal têm sido especialmente investigadas pelos cientistas, nomeadamente na área da Química1, 2, 3, 4. Estes estudos tiveram um crescimento acentuado a partir das duas últimas décadas do século passado, tanto ao nível da síntese química como na caracterização e aplicações, tendo estas por base as propriedades peculiares das nanopartículas. Apesar do prefixo “nano” estar justamente associado a uma ideia de modernidade tecnológica, existem nanomateriais que têm sido investigados desde há muito tempo, incluindo algumas aplicações que remontam a vários séculos. O ouro coloidal (FIGURA 1) é um sistema em que se conjuga exemplarmente uma ideia de atualidade conferida pela Nanotecnologia com vasta sabedoria acumulada ao longo do tempo.


FIGURA 1. Imagens que ilustram o metal ouro com diferentes estados de divisão das partículas. A) Suspensão de minúsculas lascas de ouro macrocristalino num licor. B) Coloide de nanopartículas de ouro dispersas em água.

Curiosidades com passado histórico dourado.

No British Museum encontra-se exposto o famoso cálice de Licurgo, trata-se de um artefacto do século IV, fabricado à base de vidro e armação de prata, cuja origem remonta à antiga civilização romana5. O cálice tem paredes vítreas em alto-relevo que fazem alusão a uma lenda da mitologia grega que relata o fim penoso do rei Licurgo6, 7. Este rei trácio terá perseguido os seguidores de Dionísio que, entre outras competências, era o deus do vinho e da vinicultura. O aterrorizado Dionísio foi acolhido no regaço de Tétis, uma ninfa do mar, já o rei Licurgo sofreu duramente com o castigo dos deuses. O rei foi aprisionado por Ambrosia, uma bacante disfarçada de videira e, uma vez por ela atado, terá sido cego pelo filho de Crono, tendo o rei morrido algum tempo depois… Para além do valor histórico e artístico, o cálice de Licurgo é um objeto cientificamente muito precioso, entre outras razões por mostrar características de um material dicróico, algo muito raro na antiguidade. O cálice apresenta-se esverdeado quando iluminado exteriormente e observado devido à reflexão de luz, mas mostra cambiantes de vermelho quando no seu interior é colocado um foco de luz branca e é observado por transmissão de luz que atravessa as suas paredes. A cor observada no cálice depende pois da absorção e reflexão seletivas de radiação, consoante a posição da fonte de luz incidente. Esta propriedade ótica deve-se à presença de minúsculas partículas metálicas (ca. 50-100 nm) de prata e ouro dispersas na matriz vítrea, pelo que este material é entendido como um sistema coloidal, especificamente um sol sólido. O cálice de Licurgo tem agora reconhecida popularidade na comunidade científica, em grande parte devido ao desenvolvimento das nanotecnologias e, em particular, à utilização do microsocópio eletrónico de transmissão como técnica importante na caracterização de materiais à escala nanométrica. Efetivamente, foi esta técnica microscópica que permitiu confirmar inequivocamente a presença de nanopartículas metálicas dispersas no vidro do cálice8. Neste caso, as nanopartículas metálicas são constituídas por uma liga de prata e ouro, na proporção de 70:30, que conferem ao vidro a cor vermelha por absorção de luz no visível, cujo máximo foi determinado a 515 nm9. O ouro, tal como a prata, adota uma estrutura cristalina cúbica de faces centradas (FIGURA 2).


FIGURA 2. Célula unitária de um metal com estrutura cristalina cúbica de faces centradas. As esferas representam os átomos do metal.

Os raios atómicos destes metais também não são muito diferentes, para o átomo de prata 165 pm e 174 pm para o de ouro. Estas semelhanças facilitam a miscibilidade atómica do ouro e da prata que, em determinadas proporções, quando são fundidos e posteriormente arrefecidos formam ligas metálicas, por exemplo para aplicações em joalharia. A ligação entre átomos de prata e de ouro também ocorre numa liga metálica de ocorrência natural chamada “electro”.

Aparentemente, os antigos artífices vidreiros teriam o conhecimento necessário para recorrer a pigmentos obtidos a partir de metais finamente divididos, contudo, talvez seja exagerado considerar esta prática uma aplicação nanotecnológica. Nessa altura não existiria o termo “nanopartícula” e, supõe-se, o fabrico de objetos contendo nanopartículas metálicas resultaria da transmissão de práticas artesanais por via empírica, portanto não edificado em conhecimento de base científica. Contudo, a utilização de nanopartículas metálicas é reconhecida em outros objetos do passado, nomeadamente como pigmentos colorantes de vários materiais de vidro e de cerâmica. Assim, os vitrais coloridos que decoram algumas catedrais edificadas na Idade Média incorporam partículas de metais que lhes conferem cores características. O vermelho vibrante num vitral, por exemplo, podia ser obtido pela presença de nanopartículas de cobre dispersas no vidro. Também em peças cerâmicas e esmaltes são encontrados pigmentos na forma de metais finamente dispersos. O pigmento púrpura de Cassius contém nanopartículas de ouro, tendo sido descrito e divulgado por Andreas Cassius (filho), no século XVII10. A preparação deste pigmento recorre ao composto inorgânico SnO2, dióxido de estanho (IV), como matriz dispersante das nanopartículas de ouro. A síntese química do pigmento de Cassius envolve a formação de um coloide de Au(0) pela redução de um sal de Au(III) utilizando SnCl2 como agente redutor, por oxidação de Sn(II) a Sn(IV), com formação de um pigmento contendo nanopartículas de ouro estabilizadas por SnO2, um composto também obtido através deste processo químico e que evita a agregação das partículas de ouro. Os pigmentos de Cassius são conhecidos e apelidados frequentemente pela tonalidade púrpura, contudo, podem conferir outros cambiantes, nomeadamente cor-de-rosa e vermelho, dependendo do tamanho de partícula e, da quantidade relativa de ouro e SnO2.


O amanhecer da Nanociência com o sol de Faraday.

Michael Faraday (1791-1867) foi indiscutivelmente um dos mais ilustres cientistas, com muitas e importantes contribuições para a humanidade que, ainda hoje, beneficia das suas descobertas em domínios diversos, como por exemplo na área do eletromagnetismo e das reações químicas de oxidação-redução. Porventura um facto menos conhecido é a sua contribuição na síntese e investigação das propriedades óticas de partículas de ouro dispersas num meio líquido, sistemas que vieram a ser designados posteriormente por coloides11. Estes estudos foram realizados em meados do século XIX, portanto algumas décadas depois da primeira teoria atómica moderna formulada por John Dalton (1803) e alguns anos antes da publicação, por James Maxwell (1865), das equações para o eletromagnetismo. O trabalho de Faraday sobre coloides de ouro é hoje reconhecido como uma contribuição seminal importante para o desenvolvimento da Nanotecnologia2, 12. Tal como ilustram os exemplos descritos na secção anterior, a preparação e aplicação tecnológica de ouro finamente dividido já eram factos conhecidos à época. Todavia, foi o estudo sistemático sobre a interação da luz com metais, realizado em centenas de amostras e depois publicado por Faraday, que colocou estes sistemas no campo científico, tanto ao nível da reprodutibilidade de processos de síntese química como na tentativa de interpretar as propriedades óticas observadas. Pelo relato de Faraday sobre a investigação que realizou nestes sistemas, é possível imaginar o fascínio que o terá invadido ao observar a paleta de cores obtida no decurso das suas experiências, nomeadamente a cor do fluido vermelho-rubi, que corretamente atribuiu à presença de ouro finamente dividido disperso em água11. Este sistema aparentemente homogéneo é de facto constituído por minúsculas partículas sólidas dispersas e estabilizadas num meio líquido, ou seja, um coloide que Faraday designou por sol de ouro.

O interesse de Faraday no estudo das propriedades óticas de coloides de ouro terá surgido por uma eventualidade, enquanto preparava amostras laminadas de ouro metálico. O propósito da investigação de Faraday era, pois, estudar o fenómeno de interação da luz com os metais, no âmbito ainda mais vasto de compreender a natureza ondulatória da luz11. O ouro é um metal dúctil, facilmente pode ser adelgaçado por martelada, contudo, Faraday pretendia estudar amostras ainda mais finas, pelo que recorreu a métodos químicos para preparar filmes finos do nobre metal. Entre as muitas experiências realizadas, Faraday recorreu a uma experiência de Química que consistiu em reduzir um sal de ouro dissolvido, utilizando para o efeito fósforo como agente redutor, obtendo no processo um sol de ouro com cor vermelha, algo semelhante ao que já tinha observado nas águas utilizadas para a preparação de filmes finos de ouro. Desde estas experiências de Faraday que foram desenvolvidos muitos outros métodos de síntese química de nanopartículas de ouro, mas a redução de um sal de Au(III) em fase líquida é ainda o processo mais utilizado para preparar coloides de ouro estáveis, embora usando condições experimentais diferentes, nomeadamente o recurso a um agente redutor mais amigável, como por exemplo o ácido cítrico3.

Através da cor, os coloides de ouro (FIGURA 1 B)) evidenciam que as nanopartículas apresentam propriedades marcadamente distintas quando comparadas com as do material análogo na forma macrocristalina, por exemplo na forma de minúsculas lascas de ouro em suspensão num líquido, que exibem por reflexão de luz a cor dourada característica deste metal (FIGURA 1 A)), ou a cor azul quando na forma de películas finas observadas por transmissão de luz. Outro exemplo de alteração nas propriedades do ouro devido a efeitos de tamanho de partícula é verificado na temperatura de fusão. A temperatura de fusão do ouro macrocristalino é 1337 K (1064oC), contudo, o seu valor desce abruptamente quando na forma nanoestruturada e para dimensões inferiores a 10 nm. Estas nanopartículas são como que fragmentos nanométricos cristalinos do ouro metálico, com a estrutura cúbica de faces centradas (FIGURA 2), daí serem também designadas por nanocristais de ouro. Por outras palavras, são semelhantes os difratogramas de raios X do ouro nanocristalino e de folhas de ouro macrocristalino. A pertinência desta observação reside no facto de que a diferença entre as propriedades óticas de um coloide de ouro nanocristalino e, uma suspensão contendo minúsculas lascas de ouro, não poder ser atribuída a alterações na estrutura cristalina do metal. Ao interpretar esta diferença como resultado de um efeito de tamanho de partícula, Faraday avançou uma explicação qualitativamente correta também à luz do conhecimento científico atual. Mais tarde, com o trabalho do físico alemão Gustav Mie, em 1908, entre outros cientistas, serão publicadas no século XX interpretações mais aprofundadas do espetro de absorção no visível do sol de Faraday bem como de outros coloides. O espetro do visível de um coloide de ouro (FIGURA 3) é caracterizado por uma banda de absorção intensa, associada à frequência de ressonância à qual oscilam coletivamente os eletrões de condução do metal, em resposta ao campo elétrico alternado da radiação eletromagnética incidente. Este efeito observa-se em coloides de partículas metálicas cujas dimensões não sejam superiores ao comprimento de onda da radiação incidente, como é o caso do coloide de ouro ilustrado na FIGURA 3.


FIGURA 3. Espetro de absorção no visível do coloide de ouro (sol) cuja fotografia está inserida na imagem. Neste coloide, o tamanho médio das nanopartículas de ouro é 15 nm.

Coloides de ouro em nanotecnologias.

O facto de os coloides de ouro serem conhecidos há muito tempo não os torna sistemas do passado. Efetivamente, entre a diversidade de nanomateriais atualmente conhecidos, as nanopartículas de ouro continuam a ser dos sistemas mais investigados pela comunidade científica. Ao conhecimento acumulado ao longo de séculos, os cientistas deram uma base científica consolidada que permite explorar nanoestruturas antes desconhecidas. Com a síntese coloidal de nanopartículas de ouro, consegue-se hoje uma panóplia de possibilidades no controle da forma e distribuição de tamanhos de nanopartículas, bem como na funcionalização química das suas superfícies. Se nos coloides de ouro por síntese convencional predominavam partículas esferoides, atualmente é possível obter ouro coloidal contendo bastonetes e estrelas, entre muitas outras formas geométricas batizadas com o prefixo nano. Para além da composição dos sistemas coloidais, a Química passou a dar maior atenção ao estudo da forma e tamanho das partículas, bem como às propriedades que daí decorrem, enfim, assumiu a sua componente Nanoquímica. A par da síntese de nanopartículas existem atualmente equipamentos capazes de as caracterizar morfologicamente à nanoescala, como por exemplo a microscopia de força atómica e a já referida microscopia eletrónica de transmissão (FIGURA 4). Deste modo, as propriedades de coloides de ouro podem ser ajustadas sistematicamente, para aplicações específicas, como por exemplo em sensores óticos ou como agentes de diagnóstico em medicina, entre muitas outras nanotecnologias.


FIGURA 4. Imagens de microscopia eletrónica de transmissão. A) Nanoesferas de ouro. B) Nanobastonetes de ouro.

Conclui-se este artigo com uma referência à Nanomedicina, assim, retoma-se o aspeto interessante da aplicação continuada e renovada dos coloides de ouro em novos contextos. A utilização do ouro em termos medicinais, em séculos passados, está também ela associada a práticas alquímicas comuns a várias civilizações antigas. Na civilização ocidental, o médico e alquimista Paracelso (1493-1541) é ainda hoje invocado como alguém que tanto deve à sua genialidade como às ideias controversas que advogou. Por exemplo, este alquimista recomendava o Aurum Potabile (ouro potável) como panaceia para várias maleitas, nomeadamente para males do coração, uma vez que, acreditava Paracelso, tanto o ouro como o coração são governados pelo Sol13. Supõe-se que Aurum Potabile era a designação utilizada pelos alquimistas para um sol de ouro. Atualmente, o desenvolvimento de nanotecnologias aplicadas à medicina reveste-se de grande importância. Existe um conjunto numeroso de procedimentos que assentam na investigação em nanopartículas de ouro aplicadas a sistemas biológicos. Também neste domínio, os cientistas inovam em estratégias de diagnóstico, investigam estratégias terapêuticas não-convencionais e, em alguns casos particulares, exploram processos de teranóstica, que integram métodos simultâneos de diagnóstico e terapêutica, com recurso às nanopartículas de ouro de natureza coloidal. Devido ao seu elevado coeficiente de absorção no visível, os coloides de ouro podem ser aplicados em biomarcação tomando partido da sua coloração característica e estabilidade química. Para além disso, a cor observada no coloide de ouro depende do estado de agregação das partículas, algo já do conhecimento de Michael Faraday11. Um coloide aquoso contendo nanopartículas de ouro tem cor vermelha até estas agregarem, o que tende a ocorrer espontaneamente com o passar do tempo ou por tal ser induzido, por exemplo por adição de uma solução aquosa de um eletrólito como o NaCl. Este tipo de comportamento está na base de sensores colorimétricos que recorrem a alterações no estado de divisão do coloide e à biofuncionalização das nanopartículas de ouro para efeito de reconhecimento molecular específico em meio fisiológico. As nanopartículas de ouro biofuncionalizadas, uma vez alojadas num sistema biológico alvo, por exemplo em células cancerosas, podem ser utilizadas em técnicas de fototermia. Assim, quando o sistema é iluminado seletivamente com luz proveniente de um laser, as nanopartículas de ouro atuam como radiadores de calor nanoscópicos que ao causarem o aumento da temperatura local, provocam a eliminação das células cancerosas. Os nanobastonetes de ouro (FIGURA 4 B)) têm sido especialmente investigados nesta modalidade terapêutica de combate ao cancro, uma vez que a absorção destas nanoestruturas pode ser ajustada na chamada janela terapêutica (650-1350 nm), ou seja, a região no espetro eletromagnético onde a luz tem a sua máxima profundidade de penetração nos tecidos biológicos. O substrato científico que permite tanto a biofuncionalização das nanopartículas de ouro como o ajuste das suas propriedades óticas, tem origem no conhecimento químico destes sistemas, que era sobretudo cor na antiguidade, mas se agigantou em muito mais na era da Nanotecnologia.