A Terra, a Geodesia e o estabelecimento de unidades fundamentais
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- OA/ FC/ U. Porto
Referência Gonçalves, J. A., (2025) A Terra, a Geodesia e o estabelecimento de unidades fundamentais, Rev. Ciência Elem., V13(1):005
DOI http://doi.org/10.24927/rce2025.005
Palavras-chave
Resumo
A preocupação de perceber e representar o espaço que habitamos existe pelo menos desde a sedentarização e o desenvolvimento da agricultura. Era necessário medir os terrenos agrícolas, avaliar a dimensão da propriedade, planear a construção de infraestruturas, explorar novos territórios, conhecer a nossa localização e navegar. Era, por isso, necessário medir o nosso território, tendo assim surgido a Geodesia, a ciência que estuda a forma, dimensões e campo de gravidade da Terra. Ela tem as suas raízes profundamente ligadas à Astronomia. Desde a antiguidade, os diferentes povos usaram a observação astronómica para se localizar e para medir a Terra. A observação astronómica permitia também a medição do tempo e o estabelecimento dos calendários. A Terra proporcionou-nos a definição de grandezas físicas fundamentais, como o comprimento e o tempo. Este texto centra-se sobretudo no estabelecimento das unidades de comprimento e na sua relação com a medição da Terra.

Atualmente, com a internet e as redes sociais, somos muitas vezes confrontados com opiniões surpreendentes, algumas das quais desafiando conhecimentos científicos estabelecidos há séculos. Um exemplo notório é a crença na Terra Plana. Muitos dos que tentam corrigir esse equívoco, usam argumentações que recorrem à exploração espacial: “Já viajámos ao espaço e vimos que a Terra é curva”. Mas…, era preciso ir ao espaço? A medição da Terra já era possível muito antes da era espacial, e quem tem a tarefa de a medir nunca assume uma Terra plana!
A preocupação de perceber e representar o espaço que habitamos existe pelo menos desde a sedentarização e o desenvolvimento da agricultura. Era necessário medir os terrenos agrícolas, avaliar a dimensão da propriedade, planear a construção de infraestruturas, explorar novos territórios, conhecer a nossa localização e navegar. Era, por isso, necessário medir o nosso território, tendo assim surgido a Geodesia, a ciência que estuda a forma, dimensões e campo de gravidade da Terra. Ela tem as suas raízes profundamente ligadas à Astronomia. Desde a antiguidade, os diferentes povos usaram a observação astronómica para se localizar e para medir a Terra. A observação astronómica permitia também a medição do tempo e o estabelecimento dos calendários. A Terra proporcionou-nos a definição de grandezas físicas fundamentais, como o comprimento e o tempo. Este texto centra-se sobretudo no estabelecimento das unidades de comprimento e na sua relação com a medição da Terra.
A medição da Terra por Eratóstenes.
No século III a.C., Eratóstenes fez a primeira medição conhecida do raio da Terra, através da diferença de inclinação dos raios solares entre duas localidades no Egito: Assuão e Alexandria1. Assuão localiza-se aproximadamente sobre o trópico de Câncer, isto é, à latitude igual ao ângulo de inclinação entre o equador e o plano da órbita da Terra (23,5 graus). Nesta latitude, ao meio dia solar do dia do solstício de verão, o sol está no zénite, o que faz com que os objetos não tenham sombra. Pelo mesmo motivo, era possível ver o reflexo do Sol num poço vertical, como se observa na FIGURA 1A). Estando Alexandria mais a norte, junto ao Mediterrâneo, observava-se que, também ao meio dia solar, o Sol não estava no zénite, razão pela qual os objetos, como um obelisco que lá existia, tinham sombra. Medindo a sombra (s) e a altura do obelisco (h), era possível determinar o ângulo, α, entre a direção dos raios solares e a vertical do lugar, que corresponde à diferença de latitude entre os dois lugares (FIGURA 1B)). Esse ângulo foi estimado como 1/50 de um círculo completo, ou seja, 7,2 graus. Assumindo que as duas localidades estão à mesma longitude, bastaria avaliar a distância entre os dois lugares para calcular o raio da Terra. Essa distância foi medida a passo, tendo sido estimada em 5000 estádias. A estádia era uma unidade de medida utilizada na Antiguidade, pelos gregos e pelos romanos, que correspondia a, aproximadamente, 190 metros.

Apesar de, por vezes, a medição efetuada por Eratóstenes ser referida como sendo muito precisa, não é tão certo que assim seja, em primeiro lugar, pelas características dos dois lugares considerados. A latitude de Assuão não é exatamente igual à do Trópico de Câncer, diferindo por cerca de 0,4 graus, ou seja, aproximadamente, 40 km. Além disso, os dois pontos não estão exatamente no mesmo meridiano, tendo uma diferença de cerca de 3 graus de longitude, o que introduz um erro na suposição inicial do cálculo. Acresce a este facto a incerteza sobre a unidade utilizada. A estádia correspondia a 600 pés, na versão romana, e a 625 na versão grega. Por sua vez o pé romano e o pé grego tinham dimensões diferentes. Havia também outras definições de estádia, não se sabendo qual a que Eratóstenes usou. Daqui resulta uma grande incerteza, inevitável com unidades definidas com base no corpo humano, que podem ter grandes variações em diferentes culturas e civilizações.
O Corpo Humano como referência para Unidades de Medida.
Antes da adoção de sistemas de unidades padronizados, as civilizações antigas baseavam as suas medições em referências naturais e acessíveis, como o corpo humano2. Esta abordagem prática facilitava o comércio, a construção e outras atividades quotidianas, pois qualquer pessoa podia recorrer às dimensões do próprio corpo como padrão de medida.
Entre as unidades mais comuns derivadas do corpo humano, destacam-se:
- Polegada: aproximadamente o comprimento da falange do polegar.
- Palmo: distância entre a ponta do polegar e a do dedo mínimo com a mão aberta.
- Pé: equivalente ao comprimento do pé humano, com variações entre culturas e épocas.
- Côvado: distância entre o cotovelo e a ponta dos dedos (cubit, em inglês).
- Braça: medida correspondente à envergadura dos braços abertos de uma pessoa (fathom, em inglês).
Uma unidade também utilizada foi o passo. Apesar de não se referir à dimensão de uma parte do corpo humano, era facilmente reprodutível por uma pessoa, mas, tal como nestas unidades, apresentava uma diversidade de valores entre diferentes culturas e regiões.
Como é óbvio, unidades baseadas no corpo humano e em referências informais tinham um problema evidente: a sua variabilidade. O pé de uma pessoa não era igual ao de outra, e o comprimento do côvado podia diferir significativamente de região para região.
Naturalmente que, com a evolução do conhecimento científico e com a necessidade de rigor de muitas atividades humanas, tornou-se necessário criar padrões para as unidades de medida usadas. No século XVI, em Inglaterra, foram criadas barras de bronze para representar as unidades de medida utilizadas no país: a jarda, o pé (terça parte da jarda) e a polegada (1/12 do pé). Apesar disso eram unidades válidas apenas para um país e sem uma definição rigorosa independente daquele padrão. À medida que a ciência avançava e a navegação se tornava mais precisa, tornou-se evidente a necessidade de definir unidades de medida que fossem universais e independentes de padrões baseados no corpo humano. Foi assim que surgiram unidades baseadas em dimensões do nosso planeta.
A milha náutica.
No século XVII houve grande desenvolvimento na navegação, tendo os marinheiros necessidade de medir a sua localização. Estava já estabelecido o conceito da referenciação da posição através das coordenadas esféricas latitude e longitude. A determinação da latitude era feita com medições angulares astronómicas, sendo então possível o estabelecimento de uma unidade de comprimento através de uma diferença de latitude. O matemático e astrónomo inglês Edmund Gunter, que contribuiu para o desenvolvimento de instrumentação de medição topográfica, propôs, em 1624, como unidade para a navegação marítima, a milha náutica3. Ela é definida como o comprimento, ao longo do meridiano, de um arco de um minuto. Relacionou a milha náutica à unidade de medida do pé então em uso, definindo-a inicialmente com o valor de 5867 pés. Posteriormente foi corrigido para 6120 pés, muito mais próxima do valor oficialmente adotado atualmente.
A milha náutica foi, e ainda é, uma unidade de referência para a navegação marítima. Com a evolução da Astronomia e da Geodesia passou a haver o conhecimento do achamento do nosso planeta, cuja forma é muito mais bem representada por um elipsoide de revolução. Nesta figura geométrica a latitude de um ponto passou a ser definida como o ângulo entre o plano do equador e a direção normal ao elipsoide nesse ponto. Desta forma, um arco de um minuto tem dimensão variável, com um valor mínimo de 1843 metros, no equador, e um valor máximo de 1862 metros, no polo. Vários valores da milha náutica eram utilizados durante os séculos XIX, próximos dos 1853 metros, tendo havido uma harmonização em 1929, pela Organização Hidrográfica Internacional, do valor de 1852 metros. Atualmente a milha náutica é utilizada para referir distâncias na navegação marítima, assim como para unidade de velocidade, o nó, correspondente a uma milha náutica por hora.
As triangulações geodésicas.
A necessidade de navegação no mar desenvolveu os métodos do posicionamento e da representação do planeta e impulsionou muito o conhecimento científico. Contudo, havia igualmente uma necessidade de medir e representar com pormenor a superfície dos continentes. Essa era uma tarefa da Geodesia, que começa a consolidar-se a partir do século XVII, aplicando a matemática e a física na medição terrestre. No início desse século, Snellius, nos Países Baixos, desenvolveu o método da triangulação geodésica, baseada em medições angulares rigorosas4. Usou muito do conhecimento desenvolvido por Tycho Brae, astrónomo dinamarquês, e também interessado na Geodesia, que implementou métodos de medição angular precisas, ainda sem o uso de lunetas telescópicas. As medições eram feitas com quadrantes e círculos graduados, com grande dimensão para melhorar a precisão, mas ainda assim limitados porque se baseavam em visadas a olho nu. Com o desenvolvimento das lunetas, elas foram incorporadas em instrumentos para a medição geodésica, como os teodolitos. Estes aparelhos destinavam-se à medição de ângulos horizontais e verticais, tendo como referência a vertical do lugar.
A triangulação consiste na aplicação de conceitos simples da trigonometria. Conhecida a distância entre dois vértices geodésicos, A e B, e considerando um vértice geodésico C, visível a partir de A e de B, medem-se os ângulos, α e β, como se representa na FIGURA 2. Usando uma relação trigonométrica (lei dos senos), determinam-se os comprimentos dos lados AC e AB. No caso de dispormos de coordenadas retangulares dos pontos A e B, determinamos também as coordenadas do ponto C. A partir dos lados AC e BC poderão ser determinadas, pelo mesmo processo, coordenadas de novos pontos, em triângulos adjacentes. É assim possível ligar pontos afastados numa rede de triângulos que cubra uma grande região. O efeito da curvatura da Terra, e o consequente não paralelismo das verticais do lugar dos diferentes pontos, obriga à consideração dos triângulos como sendo esféricos e à aplicação da trigonometria esférica.

Em 1671, em França, Jean Picard realizou uma triangulação entre Paris e Amiens, ao longo do meridiano de Paris, numa extensão de mais de 120 km, ou seja, mais de um grau em latitude. Partiu de uma base correspondente ao lado um triângulo com 11,4 km, num local plano, cujo comprimento foi medido, com o rigor possível, com réguas. Desta triangulação foi estimado um raio da Terra de 6372 km, muito próximo do valor médio real. A unidade que era utilizada nesses trabalhos geodésicos era a toesa, uma medida padronizada, que correspondia a 6 pés, ou seja, próximo de 2 metros. Só mais de um século depois viria a ser estabelecida a unidade metro, a partir de medições geodésicas, como se descreve adiante.
Posteriormente foi feita, em 1700, uma triangulação mais extensa, entre Dunquerque e os Pirenéus, por Giovanni Cassini e o seu filho, Jacques Cassini, ao longo de uma distância muito maior, que permitiu já concluir que o modelo de uma Terra esférica não era o mais adequado, isto é, que haveria um raio polar menor que o raio equatorial. Isso vinha ao encontro do que havia sido sugerido por Isaac Newton, em 1687, e também por Christiaan Huygens em 1690, como consequência do movimento de rotação da Terra. Foram também realizadas missões de medição de arcos de meridiano, próximo do equador, no Peru, e próximo do polo norte, na Lapónia5. Com estas medições começaram a ser conhecidos valores mais rigorosos para a definição do elipsoide mais adequado para a representação de toda a Terra.
A definição do metro.
A Geodesia, usando os desenvolvimentos da matemática e da física, permitiu compreender que a forma da Terra era matematizável como um elipsoide de revolução. Todos os meridianos têm a forma de uma elipse, resultando o elipsoide de rodar uma elipse meridiana em torno do seu eixo menor, que une os dois polos. Esta perceção desencadeou a ideia de que a Terra permitiria definir uma unidade de comprimento rigorosa e universal.
No final do século XVIII, Jean-Baptiste Delambre e Pierre-François-André Méchain, dois astrónomos e matemáticos franceses, foram incumbidos pela Academia de Ciências Francesa de realizar uma triangulação mais extensa e mais rigorosa6. Essa nova triangulação (FIGURA 3), com mais de 100 triângulos geodésicos, permitiria um melhor conhecimento da forma da Terra e igualmente estabelecer uma nova unidade de medida baseada na dimensão da Terra. Repetiram a triangulação previamente feita ao longo do meridiano de Paris, estendendo-a a Barcelona. Agora, já com medições angulares mais rigorosas e com métodos de cálculo matemático mais avançados, foi possível calcular com grande rigor, já tomando em consideração o achatamento, o comprimento de um arco de meridiano com uma extensão de mais 1000 km.

A ideia de definir uma unidade de referência para a medição do comprimento a partir da medida do meridiano terrestre surgiu no final do século XVIII e foi formalmente proposta pela Academia de Ciências Francesa em 17916. O conceito baseava-se nos princípios do Iluminismo e na necessidade de criar uma unidade de medida universal, invariável e baseada na natureza. Os principais cientistas envolvidos nessa decisão foram Jean-Charles de Borda, Joseph-Louis Lagrange, Pierre-Simon Laplace, Gaspard Monge e Condorcet, nomes conhecidos de várias outras contribuições para a Matemática, a Astronomia e a Física. A proposta consistiu em tomar a unidade metro como a décima milionésima parte de um quarto de meridiano terrestre, isto é, da distância entre o equador e o polo. Resultou assim uma unidade com uma ordem de grandeza conveniente para o uso quotidiano, adequada para medições comuns e compatível com as dimensões do corpo humano.
Após as medições geodésicas foi fabricado um padrão físico do metro em platina, conhecido como “Mètre des Archives”, que foi armazenado nos Arquivos Nacionais da França, tornando-se a referência oficial. Em 1837 o governo francês tornou obrigatório o uso do sistema métrico. A adoção por outros países foi ocorrendo aos poucos, tendo Portugal sido um dos primeiros, em 18527.
Em 1875, a Convenção do Metro reuniu vários países para estabelecer um padrão internacional mais preciso. Um novo protótipo do metro foi fabricado em platina (90%) e irídio (10%), uma liga mais resistente e estável. Em 1889 esse padrão foi adotado como a referência mundial e armazenado no Bureau International des Poids et Mesures (BIPM), em Sèvres, França. Em 1960, a criação do Sistema Internacional de Unidades (SI) consolidou o metro como a unidade de comprimento oficial da ciência e do comércio global. Os Estados Unidos, apesar de oficialmente usarem o sistema imperial, adotam o metro em áreas científicas, médicas e na indústria.
A definição atual.
Com a evolução da Geodesia, e sobretudo, com o uso de satélites artificiais, conhecemos muito melhor a dimensão do planeta. O elipsoide em uso atualmente tem um excesso de 1966 metros em relação aos 10 milhões de metros associados à definição original. As irregularidades de distribuição de massa na crusta terrestre também levantam incertezas a essa definição, pelo que não se pode dizer que tenha um caráter tão universal e reprodutível como se pretendia. Criaram-se, por isso, novas formas de definir a unidade metro, baseadas em fenómenos físicos.
Desde 1983, foi redefinido com base na velocidade da luz, sendo o comprimento do percurso da luz no vácuo durante 1/299.792.458 de segundo.
Referências
- 1 NEWTON, R. R., The sources of Eratosthenes measurement of the Earth, Quarterly Journal of the Royal Astronomical Society, Vol. 21, P. 379, 1980, 21, 379. 1980.
- 2 KAARONEN, R. O. et al., Body-based units of measure in cultural evolution, Science, 380(6648), 948-954. 2023.
- 3 MOODY, A. B., The nautical mile, The International Hydrographic Review. 1950.
- 4 HAASBROEK, N. D., & FRISIUS, G., Brahe and Snellius and their tri-angulations, Delft, Publikatie van de Rijkscommissie voor Geodesie, 119. 1968.
- 5 GEMAEL, C., Editorial vol. 46, outubro de 1995, Revista Brasileira de Cartografia, [S. l.], v. 46. 1995.
- 6 LE POINT, Des poids et des mesures - L’aventure de la méridienne. 2019
- 7 DIÁRIO DA REPÚBLICA, Decreto-Lei n.º 238/94, de 19 de setembro. 1994.
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