Doenças zoonóticas de origem viral.

Nos últimos séculos, as populações humanas têm sido afetadas por diversas doenças virais, como a SIDA, o Ébola, o Zika, ou, mais recentemente, a COVID-19. Em comum, todas estas doenças são causadas por vírus zoonóticos, isto é, por vírus originalmente presentes num animal vertebrado não humano no qual persistiam e eram inócuos (reservatórios ou hospedeiros naturais), mas que passaram a infetar os seres humanos (hospedeiros definitivos), onde se multiplicam ativamente, e causam doenças, muitas vezes, fatais. Em alguns casos, houve envolvimento de um hospedeiro intermediário onde a multiplicação do vírus provocou o aparecimento de novas mutações e lhe conferiu a capacidade de infetar o novo hospedeiro. Por exemplo, na COVID-19, os hospedeiros intermediários, ainda não totalmente identificados, desempenharam um papel crucial no aparecimento de mutações na proteína da espícula do vírus SARS-CoV-2 para que a sua ligação ao recetor existente nas células dos seres humanos e a sua subsequente infeção fosse possível1. Adicionalmente, a transmissão de alguns destes vírus para os hospedeiros ocorre através de vetores. Os vetores são animais invertebrados que facilitam a dispersão dos vírus de um hospedeiro para outro. Os vetores mais comuns são os artrópodes, como os mosquitos, as carraças ou as pulgas. Estes podem transportar os vírus passivamente até ao hospedeiro final, sendo designados por vetores mecânicos, ou permitir a multiplicação dos vírus antes da infeção do hospedeiro definitivo, classificando-se como vetores biológicos. Nestes últimos incluem-se, por exemplo, o vírus do Zika que se multiplica no mosquito-tigre-asiático, Aedes albopictus, e no mosquito-da-dengue, Aedes aegypti2.

Para além das taxas de mutação (e fixação) elevadas e dos efetivos populacionais numerosos, a infeção de múltiplos hospedeiros e a existência de vetores contribui para a contínua emergência de doenças zoonóticas virais. A estas características dos vírus juntam-se ainda as pressões antropogénicas, como a urbanização, a desflorestação, as alteração nas práticas agropecuárias, as translocações de animais, o comércio de animais selvagens e de animais vivos, a caça furtiva, o aumento da população humana, a mobilidade e as alterações climáticas, que favorecem o aumento da frequência de contacto entre animais selvagens, animais domésticos e seres humanos, o que proporciona as condições ideais para a ocorrência de saltos de espécies nos vírus e a emergência de doenças zoonóticas. Assim, as doenças zoonóticas virais representam uma ameaça socioeconómica global por afetarem a saúde pública, o bem-estar e a saúde animal, com efeitos nefastos na produção e na comercialização de produtos de origem animal.


O vírus da gripe A (ou o vírus influenza A).

Os vírus da gripe possuem um genoma segmentado de ARN de cadeia simples e polaridade negativa e pertencem à família Orthomyxoviridae. Esta família inclui os vírus da gripe A, B, C e D. Os vírus da gripe A e B são os principais causadores dos surtos de gripe sazonais em seres humanos. Os vírus da gripe B têm uma menor contribuição para as epidemias anuais de gripe, e ocasionalmente infetam focas. Os vírus da gripe C além de infetarem porcos, também infetam humanos, onde causam uma doença menos severa, e os vírus da gripe D apenas causam doença ligeira em gado3.

Desde o início do século XX, os vírus da gripe A foram responsáveis por quatro pandemias com origem zoonótica, nas quais se incluem a pandemia de gripe espanhola de 1918 a 1920 que é considerada uma das piores pandemias de que há registo, pois estima-se que terá infetado cerca de um terço da população humana mundial e causado aproximadamente 50 milhões de mortes, e, mais recentemente, a pandemia de gripe A de 2009 que causou a morte a cerca de 17 mil pessoas4, 5. O principal reservatório dos vírus da gripe A são as aves aquáticas selvagens, incluindo patos, gansos e cisnes, onde não causam doença. Os vírus da gripe A têm elevada facilidade em atravessar a barreira de espécies, circulando também em aves domésticas (galinhas, perus e codornizes), e em mamíferos como suínos e cavalos. A proximidade dos seres humanos aos animais domésticos parece facilitar a sua infeção pelo vírus da gripe A e poderá levar à emergência de pandemias.

A organização do genoma da gripe A em diversos segmentos separados (FIGURA 1) também promove este salto de espécies ao permitir a troca de segmentos quando ocorre a coinfeção de uma célula do hospedeiro com dois ou mais vírus. Esta troca pode criar uma descendência de vírus com um genoma constituído por uma mistura de segmentos de um ou mais vírus parentais com adaptações a diferentes hospedeiros, sendo particularmente relevante nos segmentos que codificam as glicoproteínas hemaglutinina (HA) e neuraminidase (NA; FIGURA 1). A hemaglutinina efetua a ligação dos vírus a recetores existentes na superfície das células do hospedeiro, os resíduos terminais de ácido siálico, o que facilita a entrada na célula6. Após a formação de novas partículas virais, a neuraminidase atua removendo a ligação das partículas infeciosas recém-formadas (isto é, viriões) aos resíduos de ácido siálico através da hemaglutinina presente na sua superfície, o que permite a sua propagação para infeção de outras células do hospedeiro6. Adicionalmente, o equilíbrio entre a atividade da hemaglutinina e da neuraminidase possibilita que os vírus atravessem a camada de muco que protege os sistemas respiratório e digestivo e infetem as células alvo do hospedeiro7. Estas duas proteínas têm elevadas taxas de mutação, facilitando o aparecimento de mutações adaptativas a novos hospedeiros.


FIGURA 1. Representação esquemática de um vírus influenza A do subtipo H1N1. O vírus contém oito segmentos de ARN de cadeia simples que codificam diferentes proteínas virais. A polimerase viral é um complexo constituído pelas subunidades proteicas PA, PB1 e PB2. As glicoproteínas da superfície, hemaglutinina (HA) e neurominidase (NA), são responsáveis pela entrada e libertação das partículas virais, respetivamente. A proteína M1 forma a matriz que se encontra por baixo do envelope do vírus (camada azul). O envelope deriva da membrana bilipídica da célula do hospedeiro. A proteína M2 é um canal de iões que faz a mediação da acidificação do vírus quando está nos endossomas. A proteína NEP exporta os segmentos do núcleo da célula do hospedeiro. A nucleocápside (NP) condensa o genoma de ARN segmentado numa nucleocápside helicoidal e, juntamente com as subunidades da polimerase, forma uma ribonucleoproteína para a transcrição, replicação e empacotamento do ARN. Adaptado de www.viralzone.expasy.org.

De acordo com a natureza das glicoproteínas hemaglutinina e neuraminidase, os vírus da gripe A são classificados em subtipos HxNy. Por exemplo, os vírus que causaram a gripe espanhola e a gripe A foram causadas por vírus do subtipo H1N1. Na gripe espanhola, um vírus H1N1 de origem aviária infetou humanos (e suínos)4. O vírus da gripe A de 2009 resultou de um vírus H1N1 de origem suína e tripla conjugação, tendo-se formando um genoma viral com dois segmentos de linhagens aviárias, um de linhagem humana, três de linhagens (clássicas) de suínos da América do Norte e dois de linhagens de suínos da Eurásia8. Esta composição genómica facilitou o salto de espécies para os seres humanos e tornou o vírus capaz de se disseminar de forma eficiente entre humanos.


A preocupação atual: o vírus influenza A do subtipo H5N1.

Em 1996, o vírus influenza A do subtipo H5N1 foi identificado pela primeira vez em aves aquáticas domésticas. Em 1997, juntamente com um surto de H5N1 em aves domésticas, foram detetados os primeiros casos de infeção zoonótica em Hong Kong, em que das 18 pessoas infetadas, seis sucumbiram à infeção9. Em 2003, o vírus surgiu na Ásia em aves selvagens e causou surtos em aves domésticas e dois casos fatais em humanos. Entre 2003 e 2005, o vírus disseminou-se de aves selvagens para aves domésticas em África, no Médio Oriente e na Europa10. A evolução da HA do vírus originou diferentes clados e sub-clados e, embora a maioria destes se tenha extinguido, o clado 2.3.4.4b tornou-se dominante e circula amplamente em aves selvagens. Esta ampla circulação resultou num número sem precedentes de espécies de aves selvagens e domésticas afetadas e aumentou a probabilidade de animais mamíferos contraírem o vírus através do contacto com carcaças de aves infetadas ou ambientes contaminados.

Entre 2003 e 2023, e em particular entre 2020 e 2023, assistiu-se a um aumento significativo do número de espécies de mamíferos fatalmente infetados, quer terrestres, quer aquáticos, como raposas, guaxinins, martas, furões, cães-mapache, texugos-europeus, linces- pardos, linces-euroasiáticos, pumas, gatos, lontras, focas, leões marinhos, golfinhos, toninhas- comum, ursos polares, gambás-da-Virgínia, murganhos, alpacas, cabras e vacas, assim como de uma expansão geográfica massiva11, 12. Apesar da maioria das infeções em mamíferos parecer limitada a poucos casos, existem relatos de surtos com elevada mortalidade, o que parece indicar o aparecimento de mutações adaptativas no vírus H5N1 que tornam a transmissão mamífero para mamífero possível12. Adicionalmente, a atual circulação deste vírus em múltiplas espécies de mamíferos, incluindo em animais domésticos, poderá favorecer a emergência de estirpes virais com uma ainda melhor capacidade de transmissão entre mamíferos, mas também para e entre seres humanos. Assim, atualmente, o H5N1 constitui uma ameaça para a saúde animal e para a saúde pública.


Enfrentar o problema: Uma Só Saúde.

Dada a ameaça que os vírus da gripe representam para a saúde humana, a Organização Mundial de Saúde (OMS), juntamente com outras entidades e governos, estabeleceu o programa de vigilância mundial Global Influenza Surveillance and Response System (GISRS) em 195213. Este sistema providencia, por exemplo, informação para o desenvolvimento de vacinas adequadas aos vírus da gripe sazonais e analisa os vírus em circulação em hospedeiros não humanos para determinar o risco de pandemia.

No entanto, a circulação do vírus influenza A do subtipo H5N1 em múltiplos animais selvagens e domésticos e em proximidade com os seres humanos e as suas atividades, a transmissão entre espécies, a sua dispersão mundial ou a mortalidade expressiva associada indicam que é uma ameaça não só para a saúde humana, mas também para a saúde animal e do meio ambiente. Assim, o conceito “Uma Só Saúde” é essencial no contexto do H5N1 para antecipar e mitigar a eventual emergência de uma pandemia, e deverá privilegiar estratégias de vigilância de aves selvagens e domésticas e de mamíferos para a deteção precoce de surtos15, 16, de casos em seres humanos, e do meio ambiente para uma rápida remoção de carcaças de animais infetados para evitar a propagação viral. Em paralelo, a caracterização dos genomas dos vírus em circulação poderá ser essencial para identificar mutações adaptativas ou novas composições genómicas, que poderão ser testadas experimentalmente em condições altamente controladas, e assim determinar o potencial pandémico14. Finalmente, este conhecimento deverá estar acessível para acelerar a implementação de respostas globais concertadas e otimizadas para a contenção, controlo e erradicação.