Perda de biodiversidade – dados gerais e o risco de extirpação de camarinhas

Estima-se que cerca de 40 a 45% das espécies de plantas vasculares descritas estejam ameaçadas a nível global15, com o risco de que algumas possam vir a ser extintas, mesmo antes de serem descritas. Estes autores consideram urgente a recolha e preservação da diversidade vegetal global, dado o valor intrínseco, para salvaguardar os ecossistemas, para aumentar o bem-estar e o conhecimento das pessoas sobre este assunto.

Nesta perspetiva, e com o intuito de consciencializar os jovens sobre uma planta relativamente pouco conhecida – a camarinha ou camarinheira, de nome científico Corema album (L.) D. Don, cujas plantas femininas desta espécie dão frutos comestíveis (as camarinhas), de peculiar cor branca ou tom rosado. Desde 2016, tem-se vindo a desenvolver o projeto Explorar Matos de Camarinha da Costa – Emc2 10. Este projeto divulga a camarinha, uma espécie dióica, que, por só existir em Portugal, Espanha e em algumas ilhas açorianas, é um caso de endemismo ibérico.


FIGURA 1. Planta feminina de camarinheira com frutos brancos “camarinhas”.

Esta planta é referida no Programa Operacional da Administração Pública Portuguesa para a Conservação e Melhoramento dos Recursos Genéticos Florestais6, como uma espécie autóctone, ameaçada e de elevado valor de conservação. Em Portugal continental, uma população de camarinhas que estava ameaçada e em acentuado declínio era a população de camarinhas da Foz do Minho, que existe na duna da praia de Moledo e na Mata do Camarido (Caminha). As primeiras ações em sua defesa foram realizadas, desde 1988, pela associação de defesa do ambiente COREMA. Posteriormente, o declínio desta população progrediu, conforme registos datados de 1995 e 2007, reportados em 2010, no Plano de Gestão Florestal da Mata Nacional do Camarido5. Dado o acentuado declínio desta população, foi decidido avançar-se, em outubro de 2017, no âmbito do projeto Emc2, com uma iniciativa de propagação de camarinhas por estacaria. Esta ação teve o apoio da equipa do Investigador Pedro Oliveira6, a colaboração de associados da Associação COREMA, o apoio da União de Freguesias de Moledo e Cristelo, do Município de Caminha e a participação ativa de Professores de Escolas de Caminha11. Desde então, o projeto Emc2 tem vindo a capacitar os jovens das escolas de Caminha a colaborar na conservação desta população de camarinhas.

A primeira reintrodução de plantas na natureza obtidas por estacaria que decorreu em 2018, foi bem sucedida e divulgada quer a nível nacional11, como internacional, com inclusão desde 2021, no Portal Mundial “Panorama Solutions”7.


FIGURA 2. Planta de camarinha obtida por estacaria que após reintrodução na natureza em 2018, frutificou em 2021.

As mais recentes ações de propagação por estacaria estão a decorrer com a colaboração do Viveiro “Raíz da Terra” (Vile, Caminha), onde milhares de estacas estão em enraizamento.

Esta propagação de camarinhas é importante para travar o desaparecimento desta planta nas zonas costeiras. Numa visita à zona costeira de Montedor (Norte de Portugal), em junho de 2024, com o intuito de aí verificar a ocorrência de camarinhas, não foi possível encontrar esta espécie arbustiva, outrora aí existente. Deste modo, é provável ter ocorrido o seu desaparecimento local, processo designado como extirpação, que nos deve servir de alerta para a atual crise de biodiversidade e perda do nosso património natural. Estudos sobre a área de distribuição da camarinha nas últimas duas décadas, mostraram a sua regressão, com o seu desaparecimento em várias zonas da costa ocidental da Península Ibérica, devido a diversos fatores, entre os quais, a ameaça de espécies invasoras, efeitos das alterações climáticas e a fragmentação de habitat.


FIGURA 3. Propagação por estacaria nos Viveiros “Raíz da Terra”.

Nas zonas costeiras a fragmentação do habitat deve-se frequentemente à pressão urbanística como sucede na zona de Tróia, com destruição da biodiversidade local, a qual tem sido alvo de contestação por organizações de defesa do ambiente (LPN, s.d).

Aos alunos participantes no projeto Emc2 é explicado o valor dos espécimes guardados em herbários pois o processo de extirpação de camarinhas, ou seja, o seu desaparecimento a nível local, pode ser inferido pela análise comparativa entre os registos existentes em herbário e a sua atual ocorrência na natureza. Constatou-se que as camarinhas de Montedor devem ter desaparecido e já só existem em herbário (ex.: espécime colhido em Montedor, junho de 1886). Muitos outros casos de espécimes de camarinha existentes em herbário, e igualmente coletados em finais do século XIX, ainda existem na natureza (ex.: Ovar, Quiaios, Tróia e Sagres). Portanto, neste caso de Montedor, a ameaça de plantas invasoras, sobretudo acácias, poderá ter sido, entre outras causas, um dos principais fatores da extirpação de camarinhas, um exemplo que deve servir de alerta para se evitar que tal aconteça futuramente, em outras zonas costeiras. Para além das acácias, outra planta invasora da zona costeira é o chorão-da-praia, Carpobrotus edulis (L.) N. E. Br. (escolhida no projeto Emc2 como caso-de-estudo de planta invasora).

A extirpação é prejudicial para a sobrevivência das espécies pois o desaparecimento de populações num dado local, através de ações levadas a cabo pelo Homem ou devido a outras causas, provoca danos no funcionamento dos ecossistemas e reduz a diversidade genética das espécies. Isto significa que muitas espécies se tornam menos resilientes às alterações ambientais, biológicas e ecológicas, e acabam por ficar mais vulneráveis ao seu desaparecimento a nível global, ou seja, à sua extinção.

O projeto Emc2 Explorar Matos de Camarinha da Costa é ilustrativo de que só se protege o que se conhece, e de que a educação sobre a importância e a diversidade das plantas são componentes essenciais da sua conservação8. A conservação das camarinhas de Caminha irá prosseguir, com novas etapas de estacaria, pelo que se deseja ir a tempo de travar a extirpação de camarinhas neste local. Paralelamente à multiplicação por estacaria está a ser testada a multiplicação por semente, que garante variabilidade genética, de acordo com um protocolo já testado e publicado9.


Governação global da biodiversidade.

A governação global da biodiversidade é um sistema complexo e interligado que envolve Governos, Organizações Internacionais, Empresas, Comunidades Locais e Sociedade Civil, que trabalham em conjunto para travar a perda de biodiversidade, e quando possível, promover o restauro ecológico, de forma a garantir um futuro sustentável para a vida na Terra.

Para os países que fazem parte da União Europeia (UE), como é o caso de Portugal, a Governação Global tem mais um nível de complexidade a acrescentar, pois para além de ter de implementar as Convenções Internacionais que ratificaram, precisam ainda transpor toda a legislação da UE, que muitas vezes é mais ambiciosa e possui uma maior monitorização por parte da Comissão Europeia e do Tribunal de Justiça da UE, do que as próprias Convenções. Neste artigo abordar-se-á apenas a Convenção das Nações Unidas sobre Diversidade Biológica (CDB).

Pode-se afirmar que a governação global ganhou mais força em 1992 com a adoção das Convenções do Rio (Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Alterações Climáticas, Convenção das Nações Unidas sobre Diversidade Biológica e a Convenção das Nações Unidas de Combate à Desertificação nos Países Afetados por Seca Grave e/ou Desertificação, particularmente em África).

A CDB tem três objetivos principais que são “a conservação da diversidade biológica; o uso sustentável de seus componentes; e a partilha justa e equitativa dos benefícios decorrentes da utilização dos recursos genéticos, inclusive por meio do acesso adequado aos recursos genéticos” (artigo 1.º da CDB). Portugal ratificou esta Convenção, tornando-se Parte, em 1993, através do Decreto n.º 21/93, de 21 de junho.

A CDB representou um grande avanço no tratamento das questões ligadas à Biodiversidade, “de caráter vanguardista na esfera jurídica internacional”1, visto ser a primeira vez que uma convenção internacional abrange as complexas questões da diversidade biológica. Em termos institucionais e normativos pode-se erigir a CDB como o marco para as novas abordagens políticas e económicas, uma vez que é juridicamente vinculativa13. A CDB foi inovadora ao estabelecer que os Estados são soberanos sobre os seus recursos naturais (artigo 3.º da CDB), sendo a biodiversidade um bem intangível3, 14.

Após a sua adoção, foram desenvolvidos protocolos e acordos internacionais para abordar questões específicas, como a biossegurança e o acesso aos recursos genéticos. Além disso, a CDB estimulou a criação de áreas protegidas e a implementação de planos nacionais de biodiversidade, sendo obrigação de cada país reportar, a cada dois anos, a evolução dos seus Planos Nacionais (artigo 6.º da CDB). É nestes Planos Nacionais que os países informam todo o trabalho a nível nacional que está a ser desenvolvido para reduzir a perda de biodiversidade e conservá-la, sendo de referir que atualmente é também solicitada informação sobre os trabalhos de restauro da fauna e flora de cada país.

Apesar dos esforços da CDB, a perda de biodiversidade continuou a acelerar em todo o mundo, sendo de referir que a década de 2010 foi marcada por um crescente reconhecimento da crise da biodiversidade e da necessidade de uma ação mais ambiciosa. Assim, em 2010, as Partes da CDB adotaram o Plano Estratégico para a Biodiversidade 2011-2020, denominadas Metas de Aichi para a Biodiversidade, que eram compostas por 20 metas voltadas para a redução da perda da biodiversidade a nível mundial. Contudo, apesar dos esforços globais, estas Metas não foram alcançadas. Nessa medida, em 2022, após anos de negociações, as Partes da CDB adotaram o Quadro Global de Biodiversidade de Kunming-Montreal (Global Biodiversity Framework Kunming-Montreal - GBF). Este marco representa um avanço significativo na conservação da biodiversidade, estabelecendo metas ambiciosas e um plano de ação para a próxima década, que servirá também para alcançar a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável.

A implementação deste Quadro Global será orientada e apoiada por: um quadro de monitorização do GBF; um mecanismo de planeamento, monitorização, comunicação e revisão da implementação; recursos financeiros necessários para a sua implementação; quadros estratégicos para o desenvolvimento de capacidades e a cooperação técnica e científica, assim como um acordo sobre a informação digital sequencial sobre recursos genéticos. O GBF é formado por quatro objetivos para 2050 e 23 metas para 2030. Dentre as metas, realça-se a meta 30x30 para Proteger pelo menos 30% das áreas terrestres e marinhas do planeta até 2030; o restauro de ecossistemas em pelo menos 30% dos ecossistemas degradados; ter um financiamento, ou seja, mobilizar recursos financeiros adequados para a implementação do marco e por fim, fortalecer a Governação Global para a biodiversidade em todos os níveis (CBD, 2022). Com este GBF, pretende-se obter, entre outros, os seguintes resultados: ampliar as áreas protegidas; aumentar a consciencialização sobre a importância da biodiversidade; promover uma maior cooperação internacional para enfrentar os desafios da conservação da biodiversidade, além de incorporar a biodiversidade em políticas nacionais e setoriais de cada País Parte da Convenção.

Em 2024, durante a 16.ª Conferência das Partes (COP 16) da CDB (FIGURA 4), o representante de Portugal, na sua intervenção, durante o segmento de alto nível, reafirmou o seu compromisso com a implementação do Quadro Global de Biodiversidade (QGB), o trabalho que está a ser feito no âmbito da revisão da estratégia nacional e do seu respetivo alinhamento com as estratégias europeias para alcançar os compromissos nacionais assumidos durante a COP15, em 2022.


FIGURA 4. Aspeto de Sessão na 16.ª Conferência das Partes (COP 16).

Assim, e tendo como exemplo o caso neste artigo descrito sobre a camarinha, todo o trabalho a nível nacional para reduzir a perda, conservar e restaurar a biodiversidade deve ser relatado e contabilizado, para que Portugal atinja a meta de “proteger pelo menos 30% das áreas terrestres e marinhas do planeta até 2030”. De igual relevância, há que salvaguardar e restaurar todas as espécies autóctones da fauna e flora que estão em vias de extinção e, ainda de acordo com a meta 6 do GBF, “eliminar, minimizar, reduzir e ou mitigar os impactos de espécies exóticas invasoras na biodiversidade e nos serviços ecossistémicos […] em pelo menos 50% até 2030”2, o que contribuirá para reduzir a ameaça de plantas invasoras, como sucede, em Portugal, entre muitos outros casos, com as acácias que afetam a flora autóctone de zonas costeiras, na qual se inclui a camarinha.


Considerações finais.

Na atual crise da biodiversidade, e conforme defendido por diversos investigadores15, é urgente a recolha e preservação da diversidade vegetal global, pelo seu valor intrínseco, para salvaguardar os ecossistemas e para aumentar o bem-estar e o conhecimento das pessoas sobre este tema. De igual modo, é também relevante toda a ação local para travar a extirpação de plantas que permitirá contribuir para minimizar a tendência de perda de biodiversidade.

De modo a alcançar esta meta de reduzir ao máximo a perda de biodiversidade e alcançar os objetivos da Agenda 2030 sobre Desenvolvimento Sustentável, a Convenção sobre Diversidade Biológica, ao longo dos últimos 32 anos, tem vindo a adotar medidas globais para serem implementadas a nível local, nacional e regional, como é o caso do QGB Kunming-Montreal, que visa travar, e se possível, restaurar a biodiversidade.

Cabe também aos municípios um papel ativo nesta defesa, podendo o projeto ODSlocal ser um veículo relevante para dar visibilidade a esta componente para a sustentabilidade local.

Espera-se que Portugal continue a investir em ações de conservação da biodiversidade e a fortalecer a sua colaboração internacional, através de um forte compromisso político neste domínio, na mobilização de recursos e no investimento em inovação e tecnologia.


Agradecimentos.

A Equipa Coordenadora do Projeto Emc2 agradece o apoio e a colaboração em diversas iniciativas de: Professores e Comunidades Educativas; Membros de Municípios e/ou Uniões de Freguesia e outras Entidades Nacionais envolvidas (ex.: ICNF); Investigadores de Herbários Nacionais; Investigadores do INIAV, I.P.; Membros da Associação COREMA e do Viveiro Raíz da Terra (Vile, Caminha).

O Projeto Emc2 é financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT, Portugal), através dos projetos estratégicos UIDB/04292/2020 e UIDP/04292/2020 atribuídos ao MARE - Marine and Environmental Sciences Centre, e o projeto LA/P/0069/2020 atribuído ao Laboratório Assocido ARNET - Aquatic Research Network.