Criaturas do micromundo a observar e explorar através do espólio de um Museu da Ciência
📧
- MC/ ERF
Referência Saraiva, A. B., (2025) Criaturas do micromundo a observar e explorar através do espólio de um Museu da Ciência, Rev. Ciência Elem., V13(2):019
DOI http://doi.org/10.24927/rce2025.019
Palavras-chave
Resumo
Desde as primeiras observações ao microscópio de seres do micromundo, no século XVII, até à biologia molecular e ao microscópio eletrónico do século XX, a diversidade da vida tem revelado um número infindável de pequenas criaturas que habitam os mais variados nichos ecológicos.
Conhecer e entender a diversidade de vida, em geral, e dos “mais pequenos” em particular sempre foi - e continuará a ser- um desafio colocado aos cientistas. A história da classificação dos seres vivos reflete bem esta complexa tarefa, marcada por constantes avanços e adaptações ao longo dos séculos.
Ao longo do tempo foram apresentadas diferentes propostas de classificação. Os seres vivos foram sendo incluídos em sistemas de classificação, sempre na tentativa de integrar todos os organismos conhecidos e permitir prever onde novos, que são descobertos e/ou comecem a ser descritos, possam ser encaixados.
Seres preservados em herbários ou algários e outros representados em modelos bidimensionais e tridimensionais, existentes no espólio de um museu, oferecem uma oportunidade ímpar para conhecer, interpretar e aprofundar o estudo da diversidade biológica microscópica.
Este artigo insere-se numa série em que a autora pretende dar a conhecer e a valorizar o espólio que existe no Museu da Ciência da Escola Básica e Secundária Rodrigues de Freitas (MCEBSRF) no Porto. Já foram publicados dois outros artigos, o primeiro sobre os cinco Herbários do Museu na revista da Ciência Elementar, da Casa das Ciências, Volume 11, n.º 4 e o segundo, sobre os Modelos botânicos, no Volume 12, n.º 1 da mesma revista.
A visualização e a descrição dos “seres invisíveis”.
Nos finais do século XVI a invenção do microscópio por Zacharias Janssen, um holandês fabricante de óculos1, mostrou uma diversidade da vida que era invisível ao olhar humano. No século seguinte, em 1676, a construção de um microscópio por Anton van Leeuwenhoek, permitiu a visualização de “pequenos animais ou animálculos” e a sua descrição em palavras e em esquemas2.
O termo “animálculo” referia-se a organismos microscópicos que incluíam bactérias, protozoários e animais muito pequenos. Este inventor também observou uma bactéria viva presente numa placa dentária. No dia 17 de setembro de 1683 enviou uma carta à Royal Society of London descrevendo, pela primeira vez, o microrganismo. Este dia foi escolhido, a partir de 2017, para se comemorar o Dia Internacional do Microrganismo3.
Em 1665, num trabalho chamado “Micrographia”, Robert Hooke publicou a primeira descrição de células4 a partir da observação de cortiça (FIGURA 1).
No século XIX foi formulada a Teoria Celular4 que refere que todos os seres vivos são constituídos por células e estas provêm de outras pré-existentes.
O MCEBSRF possui no seu acervo várias caixas com preparações definitivas de células animais e vegetais, de tecidos, de órgãos e de seres do micromundo (FIGURA 2). As preparações, que foram sendo adquiridas, ao longo do século XX, têm uma origem variada como por exemplo, o Instituto de Zoologia Dr. Augusto Nobre da UP.
A invenção e o aperfeiçoamento dos microscópios.
A invenção do microscópio mudou completamente a maneira do Homem ver o mundo que o rodeia. Este aparelho possibilitou a observação e a exploração de áreas até então desconhecidas, revolucionando o conhecimento científico. A palavra microscópio tem a sua origem nos termos mikrós (do grego, pequeno) e scoppéoo (do grego observar, ver através de).
O microscópio ótico composto (duas ou mais lentes associadas) ou simples (apenas uma lente) utiliza um feixe de luz para visualizar objetos ampliados até 1500 vezes (com a objetiva de 100x e a ocular de 15x), mas, embora o aumento seja significativo, não se alcançam grandes detalhes da estrutura celular.
No MCEBSRF existem vários modelos de microscópios que foram sendo adquiridos nos finais do século XIX (FIGURA 3) e ao longo do século XX. Em 1935, para equipar os laboratórios de Ciências do novo edifício da escola, que ficou concluído no ano de 1933, adquiriu-se uma grande quantidade de material de ensino como consta do Cadastro dos Bens do Domínio Privado da Direção Geral da Fazenda Pública, Repartição do Património5.
Associados aos microscópios do MCEBSRF existem outros materiais, como por exemplo, uma câmara clara (existem no total quatro no MCEBSRF) que se pode acoplar ao canhão e que torna possível a visão do objeto sobreposta a um papel. Desta forma, pode-se desenhar o espécime observado ao microscópio contornando-se a sua forma diretamente no papel. A câmara clara é uma adaptação, para instrumentos óticos, muito utilizada desde a sua invenção no século XIX (FIGURA 4).
Os fabricantes alemães ocupam o segundo lugar em importância, depois do Reino Unido, na história da microscopia europeia. Os fabricantes de microscópios compostos alemães caracterizavam- se por serem em número pequeno de empresas que foram absorvidas pelas duas grandes empresas de ótica que ainda hoje existem: Leitz de Wetzlar e Carl Zeiss (FIGURA 5). Foram os primeiros a adotar o método de produção em série, o que conduziu a um grande progresso na fabricação. Em 1900, a Leitz fabricou 55 mil microscópios e a Zeiss, 40 mil7 (tinha fabricado o primeiro microscópio composto em 1857).
No dia 9 de março de 1931 o físico alemão Ernst Ruska e os seus colaboradores apresentaram o primeiro microscópio eletrónico de transmissão, que utiliza um feixe de eletrões para a visualização de objetos. O impacto deste avanço e a sua importância para a ciência foi de tal importância que 55 anos depois (1986) Ruska recebeu o Prémio Nobel da Física8. Em 1939, a empresa Siemens produziu o primeiro microscópio de transmissão (o feixe de eletrões atravessa o objeto) comercial, difundindo o uso do aparelho (FIGURA 6).
No acervo do MCEBSRF existe um pequeno dossier, com dimensões de 24cm x 21cm, que contem 56 fotografias originais de microscopia eletrónica oferecidas ao Museu pelo Centro de Microscopia Eletrónica da Faculdade de Ciências da UP (FIGURA 6), no início da década de 80 do século passado.
Classificação dos seres vivos.
O objetivo de um sistema de classificação é separar os seres vivos em diferentes grupos para os organizar e facilitar o seu estudo. Durante a história da biologia ocorreram diversas alterações em relação à classificação dos organismos, pois sempre que existia nova informação era necessário introduzir novos parâmetros para a classificação. Desde Aristóteles, no século IV a.C, até à proposta de Sandra L. Baldauf9 em 2007, para os seres eucariontes, passando pelas propostas de Lineu, Haeckel, Copeland, Whitaker, Margulis, Woese e Cavalier-Smith, a classificação dos seres foi-se modificando.
Na antiguidade o critério utilizado era o “movimento”: se o organismo não se movia, era planta; se o organismo se movia, era animal. Aristóteles (384–322 a.C.) classificou os seres vivos em dois reinos, o Plantae e o Animalia, tendo usado o critério de mobilidade. Nessa altura só conseguiam classificar os seres macroscópicos que observavam a olho nu10.
Os estudos das plantas foram feitos por um discípulo de Aristóteles, Teofrasto (371 - 287 a.C.), que classificava os cerca de 500 tipos de plantas conhecidas com base no modo de crescimento, presença ou não de espinhos, e cultivo ou não pelo ser humano (ver artigo da autora na revista da Ciência Elementar de março 2024).
A segunda fase da classificação começou em 1665 e estendeu-se até cerca de 1940. Iniciou- se com as observações de Hooke e Leeuwenhoek, como referimos anteriormente, mas o naturalista que trouxe as maiores contribuições nesta fase foi o botânico, zoólogo e médico sueco Carolus Linnaeus (1707–1778).
Lineu continuou a agrupar todos os seres vivos em dois reinos: o Reino Animal e o Reino Vegetal. Na décima edição de seu Systema Naturae, a última que publicou, descreveu todos os seres eucariontes conhecidos até então (FIGURA 7).
As criaturas “invisíveis”.
As bactérias.
As bactérias são organismos unicelulares microscópicos e procariontes, sem núcleo nem estruturas membranares internas, presentes em diversos ecossistemas, desde fontes hidrotermais até a microbiota humana. Dominam a Terra há biliões de anos adaptando-se a quase todos os ambientes e possuindo ampla capacidade metabólica, utilizando compostos orgânicos e inorgânicos, como sulfureto de hidrogénio, para se alimentar. Embora algumas causam doenças, a maioria desempenha papéis ecológicos benéficos, como a decomposição de matéria orgânica e a fixação de nitrogénio em simbiose com plantas e invertebrados. Além disso, são essenciais na produção de alimentos, produtos químicos e antibióticos. O estudo das relações bacterianas contribui para a compreensão da origem da vida e da evolução.
As bactérias podem assumir três formas principais: esférica (cocos), em bastonete (bacilo) ou curvada (vibrio, espirilo, espiroqueta). Algumas formas, como os cocos, podem formar aglomerados úteis para identificação, enquanto os bacilos podem formar cadeias ou formas tortas, como os vibrios, associados a doenças como a cólera. As espiroquetas têm uma estrutura helicoidal. Além disso, as bactérias geralmente não se organizam em tecidos, mas podem formar agregados funcionais conhecidos como biofilmes, como a Zoogloea. Nos biofilmes, as bactérias apresentam propriedades distintas em comparação ao estado individual, podendo se comunicar sobre o tamanho da população e o estado metabólico11.
No MCEBSRF há dois quadros parietais que descrevem as formas das bactérias (FIGURA 8). Um dos quadros (A) pertence a uma série intitulada: “Tableaux d´Histoire naturelle” produzidas pelos botânicos Louis Mangin (1852-1937) e Gaston Bonnier (1853-1922), célebre professor de botânica na Sorbonne e publicado pelos editores franceses HACHETTE & CIE - G. MASSON.
Os protozoários.
Os protozoários são organismos eucarióticos unicelulares com uma grande diversidade de formas variando desde as amebas, que apresentam capacidade de mudar de forma, até Paramecium, que possui uma estrutura fixa. Estes organismos habitam ambientes húmidos, como águas doces, ambientes marinhos e o solo12. Embora sejam microscópicos, possuem uma estrutura interna complexa e realizam atividades metabólicas sofisticadas. Estão classificados em seis filos, com mais de 50.000 espécies descritas, sendo a maioria de vida livre, e com registos fósseis que remontam ao Pré-Câmbrico.
Os protozoários podem viver dentro ou sobre o corpo humano, e algumas espécies, são parasitas responsáveis por doenças como toxoplasmose (Toxoplasma gondii), malária e leishmaniose. Alguns destes organismos possuem ciclos de vida complexos que exigem um ou dois hospedeiros, com reprodução assexuada que acelera o aumento da infestação. Os seus processos metabólicos são semelhantes aos dos animais, necessitando de compostos orgânicos e inorgânicos. A investigação sobre o seu metabolismo tem como objetivo o desenvolvimento de compostos eficazes no combate aos protozoários parasitas12.
No Museu há um modelo de Paramecium em gesso, de autor desconhecido, e dois modelos de amebas, também em gesso (FIGURA 9), produzidos por Václav Fric (1839-1916). A Amoeba proteus está montada num suporte metálico, inserido numa pequena caixa retangular de madeira, onde uma etiqueta de papel está afixada. Nessa etiqueta consta o nome da espécie, o nome do fabricante, o local da firma, o n.º1, outra numeração, além da palavra “Leidy”. Também há uma parte destacável que se encaixa no modelo fixo, fechando- o. O modelo de Difflugia pyriformis é apresentado da mesma forma, com o n.º4 e a palavra “Perty”.
Foraminíferos.
Os foraminíferos são organismos unicelulares eucarióticos com pseudópodes, classificados no Reino Chromista por Cavalier-Smith em 1981. Todos possuem uma teca ou concha, que pode ser carbonatada (CaCO3), aglutinada com partículas do meio ou, mais raramente, proteica. A morfologia e composição da teca são essenciais para a sua classificação taxonómica. Embora em geral tenham menos de 1 mm, algumas espécies podem atingir até 190 mm. Estão distribuídos desde estuários até planícies abissais, e também em água doce e solos de florestas pluviais. A maioria é bentónica, com apenas 40 espécies sendo planctónicas (FIGURA 10). Estas últimas, juntamente com as algas cocolitóforas, desempenham um papel crucial nos processos de carbono oceânico, formando depósitos de calcário oceânico, o cré, a partir das tecas dos organismos mortos13.
Desde a década de 1960, fósseis planctónicos têm sido amplamente utilizados em bioestratigrafia devido à sua abundância, boa preservação e facilidade de análise, permitindo uma datação precisa de rochas.
A análise dos isótopos estáveis de oxigénio e carbono permite a reconstrução de paleoclimas e paleoprodutividade dos oceanos, além de identificar ambientes deposicionais específicos14.
Os radiolários.
Os radiolários são protozoários ameboides unicelulares que produzem esqueletos minerais, geralmente de sílica, formando vasas siliciosas no fundo marinho. Estes esqueletos são frequentemente incorporados em rochas sedimentares. A designação foi dada por E. Haeckel, em 1862, ao observar a estrutura característica dos radiolários, com numerosos pseudópodes finos em forma radial. Os radiolários possuem uma cápsula central esférica, perfurada e constituída por quitina, que divide a célula em endoplasma e exoplasma. O esqueleto é formado por espículas de sílica ou sulfato de estrôncio. O citoplasma contém vacúolos com óleo, que auxiliam na flutuação e servem como reserva nutricional15. As suas formações esqueléticas variam em complexidade, sendo um critério importante para a sua classificação (FIGURA 11).
Os mixomicetos.
Os mixomicetos são microrganismos pertencentes ao Reino Protista, Filo Amoebozoa, e embora não sejam fungos, são tradicionalmente estudados por micologistas e conhecidos popularmente como “fungos mucilaginosos”. Com mais de 1.000 espécies descritas, habitam diversos ecossistemas terrestres, incluindo ambientes urbanos, como quintais e jardins, onde se desenvolvem sobre matéria orgânica em decomposição. Apresentam características de protozoários e de fungos. Além de sua importância ecológica, os mixomicetos são valiosos para a pesquisa científica, especialmente no estudo da dinâmica celular, do movimento plasmodial e da fisiologia do seu desenvolvimento. Desde 1969, vários estudos abordam aspetos como citologia, genética e fisiologia desses organismos16.
O ciclo de vida dos mixomicetos inclui fases micro e macroscópicas. A fase macroscópica é composta pelo plasmódio e pelo esporóforo (ou corpo de frutificação), que em algumas espécies são visíveis a olho nu e podem ser facilmente observados no campo (FIGURA 12).
Os fungos.
Os fungos podem ser organismos unicelulares ou multicelulares muito complexos. São encontrados em praticamente qualquer habitat, mas a maioria vive na terra, principalmente no solo ou em material vegetal (FIGURA 13).
Um grupo, os decompositores, cresce no solo ou em matéria vegetal morta, onde desempenha um papel importante no ciclo do carbono e de outros elementos. Alguns são parasitas de plantas que causam doenças como o míldio, oídio (FIGURA 13), ferrugem, crostas ou cancro. Nas culturas, estas doenças podem levar a perdas monetárias significativas para o agricultor.
Um número muito pequeno de fungos causa doenças em animais. Nos seres humanos, estas incluem doenças de pele como pé de atleta, micose, candidíase e ergotismo (em épocas passadas).
Esta última doença, também conhecida por envenenamento por cravagem ou Fogo de Santo António, é uma intoxicação causada pela ingestão de produtos contaminados pelo fungo Claviceps purpurea, (FIGURA 14) um fungo contaminante comum do centeio e outras plantas gramíneas que causa o apodrecimento da espiga antes da maturação.
Claviceps purpurea é um fungo comum em regiões de clima temperado, favorecendo a germinação dos escleródios em clima frio e húmido. As condições ideais para a infeção nos grãos de cereais ocorrem quando a polinização é atrasada, aumentando a suscetibilidade à infeção17.
Este fungo tem utilidade farmacológica pelas suas propriedades hemostáticas e vasoconstritoras, sendo também conhecido por cornelho, grão-de-corvo, esporão-do-centeio, etc.
Os fungos são subdivididos com base nos seus ciclos de vida, na presença ou na estrutura de seu corpo frutífero e na disposição e tipo de esporos que produzem. Podem ser classificados como:
1. Bolores.
São constituídos por fios muito finos (hifas). As hifas crescem na ponta e dividem-se repetidamente ao longo de seu comprimento, criando cadeias longas e ramificadas. As hifas continuam a crescer e entrelaçam-se até formarem uma rede de fios chamada micélio. As enzimas digestivas são segregadas pela ponta da hifa. Essas enzimas decompõem a matéria orgânica encontrada no solo em moléculas menores que são absorvidas e utilizadas pelo fungo como alimento.
Alguns dos ramos das hifas crescem no ar e formam-se esporos nesses ramos aéreos. Os esporos são estruturas especializadas na reprodução com uma camada protetora que os protege de condições ambientais adversas, como desidratação e altas temperaturas (FIGURA 15).
Os esporos permitem a reprodução assexuada do fungo18. Vento, chuva ou insetos espalham esporos que pousam em novos habitats e, se as condições forem adequadas, começam a crescer e a produzir novas hifas.
Como os fungos não se conseguem mover, eles usam esporos para encontrar um novo ambiente onde haja menos organismos concorrentes (FIGURA 16).
2. Fungos que formam corpos frutíferos macroscópicos.
Os fungos filamentosos macroscópicos também crescem através um micélio abaixo do solo. Diferem dos bolores porque produzem corpos frutíferos visíveis (comumente conhecidos como cogumelos) que produzem e dispersam os esporos. O corpo frutífero é composto por hifas compactadas que se dividem para produzir as diferentes partes da estrutura do cogumelo, por exemplo, o pé e o chapéu. As lâminas, ou tecido esponjoso, na superfície ventral do chapéu estão cobertas por esporos, e um chapéu de 10 cm de diâmetro pode produzir até 100 milhões de esporos por hora (FIGURA 17).
3. Leveduras microscópicas unicelulares.
As leveduras são pequenas células únicas em forma de limão, aproximadamente do mesmo tamanho dos glóbulos vermelhos. Reproduzem-se assexuadamente por gemulação aparecendo uma célula filha da célula-mãe original. Leveduras como a Saccharomyces desempenham um papel importante na produção de pão e no fabrico de cerveja e vinho. As leveduras também são um dos organismos modelo mais amplamente utilizados para estudos genéticos, por exemplo, na pesquisa do cancro. Outras espécies de leveduras, como a Candida, são patógenos oportunistas e causam infeções em indivíduos que não possuem um sistema imunológico saudável (FIGURA 18).
Os líquenes.
Vemos líquenes todos os dias a crescer em quase todas as superfícies e em quase todos os ambientes do planeta. Encontram-se nos telhados, nas árvores, nos muros e até nas calçadas.
Durante anos, o consenso científico foi que os líquenes eram plantas. Mas em 1867, o botânico suíço Simon Schwendener levantou a hipótese de que o líquen não era apenas um organismo, mas uma interação mútua entre dois organismos separados, um fungo e uma alga. Na altura esta “hipótese dupla” não foi aceite pela comunidade científica em geral, mas à medida que as técnicas microscópicas melhoraram, as evidências mostraram que o conceito estava correto.
Os líquenes são então relações simbióticas entre seres de reinos diferentes, entre fungos heterotróficos e parceiros fotoautotróficos, como plantas, musgos, cianobactérias e algas (FIGURA 19).
O fungo alimenta-se dos hidratos de carbono que as algas produzem pela fotossíntese. Em troca, as algas têm um local seguro, protegido das tempestades, além de acesso à água e aos nutrientes que o fungo absorve do meio19. Este “trabalho” em conjunto permite que as duas espécies prosperem em ambientes adversos, que não conseguiriam se vivessem sozinhas.
Mais de 18.000 espécies de fungos, constituindo um grupo altamente diversificado e representando cerca de 20% das atualmente identificadas, participam em parcerias de líquenes. Os líquenes ocorrem em todos os ecossistemas terrestres, variando de áreas polares a tropicais e de ecossistemas costeiros a ecossistemas de alta montanha. Os líquenes formam estruturas vegetativas chamadas talos e podem crescer numa grande variedade de substratos, como minerais, rochas, solo descoberto e madeira ou folhas de plantas, mesmo em riachos e zonas marinhas, bem como em superfícies de materiais sintéticos (FIGURA 20).
A condição simbiótica dos líquenes permaneceu desconhecida por muito tempo. O micologista alemão Anton de Bary introduziu o termo “simbiose” para descrever a condição de organismos diferentes que vivem juntos obrigatoriamente, apoiando a teoria de que o líquen é formado por dois organismos separados, um fungo (micobionte) e cianobactérias e / ou algas verdes, que atuavam como parceiro foto autotrófico (fotobionte). O fotobionte e micobionte estão estreitamente relacionados através de um haustório, local de transferência dos produtos fotossintetisados para o micobionte.
No entanto, a contribuição do fotobionte para a morfogénese do líquene é importante, dado que apenas após o estabelecimento da simbiose é que se forma um talo liquénico característico20.
Na última década foi demonstrado que os líquenes estão longe de ser uma simples associação entre dois grupos de organismos não relacionados e, em vez disso, envolvem um componente bacteriano (e outros fungos, incluindo leveduras) que é um contribuidor chave para a biologia do holobionte21. A inclusão de bactérias na parceria do líquen foi observada pela primeira vez por volta da década de 1930. Além do cianobionte principal, outras cianobactérias foram encontradas na microbiota do líquen talo e substratos, que também podem contribuir com parte do aporte de nitrogénio para a simbiose.
Comunidades bacterianas e fúngicas secundárias que habitam líquenes foram encontradas através de técnicas de sequenciamento de próxima geração (FIGURA 21).
Utilização das “criaturas” minúsculas do Museu da Ciência nas aprendizagens dos alunos do Agrupamento de escolas Rodrigues de Freitas (Porto).
Os modelos, os quadros parietais e o herbário podem ser utilizados para a concretização de algumas aprendizagens essenciais, transversais ou por domínio, do 1.º ciclo ao secundário.
Deste modo, podem ser propostas algumas atividades, que podem ser concretizadas com recurso a este material museológico:
Visitas ao Museu.
Neste contexto de visitas ao Museu os alunos de todos os ciclos de aprendizagem podem concretizar várias aprendizagens. Como exemplo citam-se:
- A) Elaboração de um trabalho digital em formato ppt ou poster. No início do estudo da Biologia do 10.º ano, os alunos podem observar e escolher os seres que vão depois descrever no trabalho, para concretização da aprendizagem: “Sistematizar conhecimentos de hierarquia biológica (comunidade, população, organismo, sistemas e órgãos) e estrutura dos ecossistemas (produtores, consumidores, decompositores) com base em dados recolhidos em suportes/ambientes diversificados (bibliografia, vídeos, jardins, parques naturais, museus)”.
- B) Limpeza, armazenamento e identificação de materiais museológicos. Através de atividades em que se explora a forma, o tamanho e a textura (para os alunos de baixa visão ou invisuais), os alunos conhecem uma grande diversidade biológica22.
- C) Construção de uma cadeia alimentar. Através da construção de uma teia alimentar com os exemplares do Museu, os alunos, do 8.º ano, aprendem que os seres vivos dependem uns dos outros, nomeadamente através das relações alimentares que estabelecem entre si.
- D) Invisível a olho nu. Através da exploração da estrutura, composição e função do microscópio ótico, os alunos ficam a conhecer melhor um instrumento de observação científica e a conhecer também a evolução deste instrumento ao longo do tempo. Através da observação de células de diferentes organismos ao microscópio, os alunos reconhecem a célula como unidade básica dos seres vivos e distinguem diferentes tipos de células eucarióticas.
Saída de campo.
Recolha de material, como líquenes e fungos, nos espaços exteriores da escola ou nos espaços ajardinados na proximidade da escola, e posterior identificação dos espécimes com ajuda do material do Museu. Esta saída pode ser com turmas do 8.º ano e/ou do 10.º ano. Sair com os alunos da sala de aula e permitir que visualizem outras “imagens” das aprendizagens que estão a efetuar é uma mais valia na sua compreensão.
Produção de um vídeo.
Produzir um vídeo didático contextualizado sobre as “criaturas” do micromundo e apresentar as suas possibilidades de uso para o Ensino da disciplina de Ciências do 8.º e 9.º anos23. A vídeo aula produzida deve seguir as etapas básicas do desenvolvimento de recursos audiovisuais, como a pré-produção, produção e pós-produção. Entre as possibilidades de uso do recurso, destacam-se a sensibilização, a motivação, a ilustração e a promoção de um Ensino de Ciências contextualizado acerca da temática apresentada, além de divulgar conhecimentos científicos acerca do assunto.
Pré-produção: Deve conter uma sinopse que apresenta o resumo geral do vídeo (é importante fazer uma seleção do organismo ou organismos que se pretende divulgar no vídeo); o argumento, que apresenta brevemente os objetivos do material a ser produzido; um roteiro, no qual se redige detalhadamente todo o texto com falas e cenas que serão gravadas; e uma organização de forma sequencial do material descrito no roteiro.
Nesta etapa é necessário:
- Definir as aprendizagens em que se vão basear;
- Recolher informações básicas acerca dos organismos compiladas da literatura específica como: a variedade de habitats em que esses seres vivos são encontrados, condições ideais para o seu desenvolvimento, morfologia e ciclo de vida, além de técnicas de coleta e formas de herborização (se for o caso);
- Realizar um levantamento de potenciais locais para a ocorrência dos organismos, como parques públicos, jardins, lagos, florestas e bosques;
- Realizar um levantamento do material que existe no Museu;
- Comparar espécimes vivos com modelos museológicos.
Produção: Etapa em que são realizadas as filmagens e captura das imagens nos habitats; no laboratório, com imagens captadas por microscópio ou lupa; e no Museu. Deve ainda ser narrado o roteiro, utilizando um aplicativo de gravação de áudio num aparelho smartphone, adotando-se a técnica de voice-over.
Pós-produção: Etapa em que são compiladas todas as atividades desenvolvidas nas etapas anteriores, realizando-se a edição do vídeo.
Conclusão.
Em conclusão, o espólio do Museu da Ciência proporciona uma experiência rica e diversificada, permitindo aos alunos de diferentes ciclos de aprendizagem explorar e observar as fascinantes criaturas do micromundo. Através das visitas, os estudantes não só aprofundam os seus conhecimentos em Biologia, como também desenvolvem uma compreensão mais profunda sobre a diversidade biológica e os sistemas naturais que regem a vida. O material presente no museu ilustra, de forma concreta, muitos dos conceitos abordados na componente de Biologia de todos os níveis de ensino, tornando o processo de aprendizagem mais envolvente e significativo. Assim, o Museu da Ciência não só é um ponto de contacto com a história e a ciência, mas também uma ferramenta educativa essencial para a sistematização de conhecimentos e a promoção da curiosidade científica, contribuindo para a formação de cidadãos mais conscientes e informados sobre o mundo natural.
Notas.
A- Václav Fric (1839 – 1916), de Praga, naturalista e negociante de História Natural, iniciou o seu negócio neste assunto em 1862, muito influenciado por exemplos britânicos. Fornecia espécimes botânicos, zoológicos e minerais para museus, instituições educacionais e colecionadores particulares em todo o mundo24. O seu negócio e outros relacionados com História Natural podem ser entendidos como parte do movimento do aparecimento e importância de Museus no século XIX. Manteve um relacionamento estável com o Museu Nacional de Praga, onde o seu irmão Antonín Fric era curador. Para anunciar o seu negócio, Fric contribuiu para exposições na Europa e até na Austrália e publicou catálogos dos seus materiais.
Os modelos elaborados por Fric forneciam demonstrações de diversidade natural por meio de seleções representativas e coerentes. O seu negócio merece ser valorizado como um exemplo líder do final do século XIX, ao lado de museus de História Natural e coleções de ensino, já que os seus materiais também demonstravam perceções científicas reais.
Na construção de alguns dos seus modelos, como é o caso dos foraminíferos existentes no MCEBSRF, contava com a supervisão de Anton Reuss (1811/1873- Praga, Chéquia), um dos primeiros micropaleontólogos.
B- Gaston Eugène Marie Bonnier (1853-1922 ) era um botânico francês. Nomeado diretor do laboratório de botânica em 1886, Bonnier ensinou botânica na Faculdade de Ciências de Paris de 1887 até sua morte. Em 1889 fundou um laboratório de biologia vegetal em Fontainebleau.
Foi eleito membro da Academia de Ciências em 1897. Foi membro de várias sociedades científicas, incluindo a Sociedade Botânica Francesa (que presidiu em 1890), a Sociedade Biológica, a Sociedade Central de Apicultura (que presidiu de 1909 a 1921), etc. Era membro das academias de Viena e Petrogrado. Abriu numerosos caminhos de pesquisa em campos tão variados como sistemática, biogeografia, ecologia vegetal e fisiologia. Publicou inúmeras obras destinadas ao ensino ou à pedagogia, nomeadamente uma série de manuais escolares relativos às diversas disciplinas da história natural (zoologia, botânica, geologia). As suas obras mais famosas, porém, são aquelas dedicadas ao estudo da flora da França, constantemente republicadas até hoje25.
Referências
- 1 https://www.aps.org/apsnews/2004/03/lens-crafters-1590-invention-microscope.
- 2 M. KARAMANOU et al., Anton van Leeuwenhoek (1632-1723): Father of micromorphology and discoverer of spermatozoa.
- 3 https://www.internationalmicroorganismday.org/mission.
- 4 https://educacao.uol.com.br/disciplinas/biologia/microscopia-a-descoberta-da-celula-e-a-teoria-celular.htm.
- 5 Cadastro dos Bens do Domínio Privado da Direção Geral da Fazenda Pública, Repartição do Património, material de ensino.
- 6 Catálogo do Laboratório de Física - Álvaro Rodrigues Machado – 1916; Página: 38; Referência: 53.
- 7 https://www.perea-borobio.com/fabricantes-alemanes/.
- 8 https://www.nobelprize.org/prizes/physics/1986/press-release/.
- 9 BALDAUF, S., Evolução das Galápagos, Universidade de Uppsala Maria Romeralo Universidade de Uppsala Martin Carr Universidade de Huddersfield, pp.73-106.. DOI: 10.1007/978-1-4614-6732-8_7.
- 10 LOPES, S. G. B. C. & HO, F. F. C., Panorama histórico da classificação dos seres vivos e os grandes grupos dentro da proposta atual de classificação, Licenciatura em Ciências.
- 11 https://www.britannica.com/science/bacteria.
- 12 National Center for Biotechnology Information, National Library of Medicine.
- 13 https://pt.wikipedia.org/wiki/Foraminifera.
- 14 RIGUAL-HERNÁNDEZA, A. S. et al., Limited variability in the phytoplankton Emiliania huxleyi since the pre-industrial era in the Subantarctic Southern Ocean.
- 15 https://pt.wikipedia.org/wiki/Radiolaria.
- 16 https://pt.wikipedia.org/wiki/Myxomycota.
- 17 https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/cravagem-do-centeio.
- 18 https://microbiologysociety.org/why-microbiology-matters/what-is-microbiology/fungi.html.
- 19 EDDIE JOHNSTON, Discover the life and incredible adventures of Elke Mackenzie, who improved our understanding of lichens while proudly embracing her identity.
- 20 https://webpages.ciencias.ulisboa.pt/~maloucao/liquenes.pdf.
- 21 MORILLAS, L. et al., Enciclopédia, 2 (3), 1421-1431. 2022.
- 22 https://mhnc.up.pt/na-escola-e-no-museu-atividades-para-alunos-do-ensino-basico/.
- 23 http://dx.doi.org/10.31512/encitec.v13i1.571.
- 24 DOI: 10.1093/jhc/fhi001.
Este artigo já foi visualizado 1522 vezes.
