Outonecer
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- CEF/ Universidade de Coimbra
Referência Canhoto, J.M., (2025) Outonecer, Rev. Ciência Elem., V13(3):023
DOI http://doi.org/10.24927/rce2025.023
Palavras-chave
Compramos livros por vários motivos: porque já conhecemos o autor, o tema nos interessa ou temos um amigo de quem gostamos e compramos milhares de exemplares para lhe encher o ego e ajudá-lo nas agruras da vida. Pessoalmente, também compro livros pelas capas e pelos títulos. Foi o que aconteceu com o livro do médico psiquiatra Júlio Machado Vaz, a quem roubei o título – Outonecer – para este texto. O título é fascinante. E o conteúdo também.
Quando este número da revista chegar aos leitores, estaremos em pleno outono, uma estação meio melancólica, perdida entre o verão e o Natal. Para os humanos, outonecer não é fácil, metafórica e literalmente. O outono parece só trazer aborrecimentos: acabam-se as férias, começam os sarilhos com a escola, os dias encolhem, com azar apanha-se mais uma gripe e o frio, vindo no Norte, começa a chegar – primeiro um pouco disfarçado pelo sol e, mais tarde, já pouco discreto, tolhe-nos os movimentos e empurra-nos para a lareira. Metaforicamente, outonecer é, sem dúvida, pior.
Mas, mesmo no outono, um pouco indiferente às idiossincrasias humanas, a natureza segue o seu caminho. É certo que as variações no clima a que vamos assistindo quase nos fazem acreditar que as meias-estações já não existem. No entanto, os sinais estão aí, e nada melhor do que as folhas para nos mostrar o que se avizinha. Primeiro, adquirem um tom verde-amarelado, sinal de que a clorofila começa a desaparecer; depois ganham tons laranja e vermelho, devido à predominância dos carotenoides e à síntese de antocianinas; e, finalmente, um castanho mais ou menos intenso, que anuncia a abscisão foliar. Em algumas zonas do globo, estas modificações na paisagem são tão intensas que motivam a deslocação de um grande número de pessoas, como acontece na costa noroeste dos Estados Unidos da América e no Canadá, onde os bordos (Acer) predominam, e em algumas zonas do Japão, onde as ginkgos e os bordos fazem as delícias dos viajantes e das populações locais. Também em Portugal, em zonas onde as espécies folhosas autóctones predominam e em muitos parques e jardins, é possível maravilharmo-nos com estas alterações outonais. A capa desta edição da revista mostra a beleza de uma ginkgo coberta pelas suas folhas douradas.
Nos climas temperados, o outono é também a época dos frutos. Nas plantas que florescem na primavera e no início do Verão, chamadas plantas de dia-longo (ou de noite-curta), os frutos amadurecem normalmente no outono. É o que acontece com as castanhas, as laranjas e as nozes, só para citar alguns exemplos. Quando o período de luz diário (fotoperíodo) se reduz, as plantas evitam florir, impedindo que as flores sejam danificadas pelas baixas temperaturas e, possivelmente, evitando que o menor número de insetos disponíveis comprometa o sucesso da polinização. No entanto, há exceções. O medronheiro floresce no outono, quando o fotoperíodo é mais reduzido, sendo por isso designado como uma planta de dia-curto (ou de noite- -longa). Outras plantas, como as magnólias e as espécies do género Prunus (amendoeiras, cerejeiras, ginjeiras...), necessitam de um período de frio (vernalização) que estimule a floração.
E falta o vinho, claro. Embora cada vez se realizem mais cedo, as vindimas são, nos países com uma forte tradição vinícola, a fronteira entre o verão, em que chega o pintor (veraison – estas coisas ficam sempre mais bonitas em francês), e o outono, em que Dionísio e Baco fazem o seu trabalho: pelo São Martinho, prova o teu vinho.
Em mais um número da Revista de Ciência Elementar, fazemos uma viagem à Patagónia, onde o outono chega mais cedo; falamos de vinho e plantas (medronheiros incluídos), de bactérias e antibióticos; abordamos problemas ambientais, mostramos como a matemática pode simplificar a química e desvendamos a computação quântica.
Termino com um soneto de Florbela Espanca, apropriadamente chamado...Outonal.
Caem as folhas mortas sobre o lago;
Na penumbra outonal, não sei quem tece
As rendas do silêncio... Olha, anoitece!
– Brumas longínquas do País do Vago...
Veludos a ondear... Mistério mago...
Encantamento... A hora que não esquece,
A luz que a pouco e pouco desfalece,
Que lança em mim a bênção dum afago...
Outono dos crepúsculos doirados,
De púrpuras, damascos e brocados!
– Vestes a terra inteira de esplendor!
Outono das tardinhas silenciosas,
Das magníficas noites voluptuosas
Em que eu soluço a delirar de amor...
Outoneçamos, então.
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