Quantas vezes já ouvimos e lemos notícias sobre praias ou piscinas que foram interditas a banhos devido à contaminação bacteriana? Ou, então, daquela vez que fomos de férias e ficamos doentes porque bebemos água contaminada? A segurança da água potável é essencial para a saúde pública10, 18, 19, mas a presença de bactérias na mesma pode levar a diversos problemas indesejáveis e, em alguns casos (por exemplo, países em desenvolvimento), à morte20. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), em 2020, 5,8 mil milhões de pessoas já utilizavam serviços de água potável geridos de forma segura, enquanto 2 mil milhões recorriam a serviços básicos20. No entanto, cerca de 771 milhões de pessoas ainda não tinham acesso sequer a um nível básico de serviço, destacando-se os 122 milhões que continuavam a recolher água diretamente de rios, lagos e outras fontes superficiais. Estas situações não ocorrem apenas em zonas rurais, mas também em áreas urbanas, especialmente em bairros informais ou ilegais, de baixos rendimentos21.

As bactérias, tal como outras formas de vida, gostam de viver em comunidade, em estruturas designadas por biofilmes. Biofilmes são comunidades complexas de microrganismos que aderem a superfícies e que estão envolvidas por uma matriz polimérica extracelular (EPS) de aspeto gelatinoso. Estas comunidades, além de abrigarem muitas vezes bactérias patogénicas, são ainda resistentes à desinfeção, devido à presença desta capa protetora gelatinosa e à existência de uma dinâmica de sobrevivência comunitária7, 8. Células em biofilmes podem ter uma resistência a antibióticos 1000 vezes superior às das mesmas células em estado planctónico15.

Os biofilmes bacterianos estão presentes em diferentes ecossistemas, incluindo nos sistemas de distribuição de água, onde continuam a ser um desafio16. Os biofilmes formam-se quando bactérias aderem a superfícies, em particular as tubagens e reservatórios de água, protegendo os microrganismos colonizadores de condições adversas e dos tratamentos de desinfeção convencionais. Estes biofilmes não só dificultam a eliminação de bactérias indesejadas como também podem deteriorar o sistema de distribuição (por exemplo, corrosão induzida pela presença de microrganismos) e a qualidade da água (por exemplo, sabor, odor, aspeto, etc.), representando um risco para a saúde pública16.


FIGURA 1. Formação de biofilme e problemas associados. A formação de biofilmes começa com adesão inicial à superfície da tubagem e ao estabelecimento da colonização primária, seguida do transporte de células planctónicas para a superfície. Os microrganismos aderidos começam a crescer, formam microcolónias e excretam substâncias poliméricas extracelulares, iniciando a formação da matriz do biofilme. A produção dessa matriz permite que a comunidade bacteriana desenvolva uma estrutura tridimensional complexa, que leva à maturação do biofilme e consequente crescimento dinâmico (contrabalançado com fenómenos de dispersão de porções de biofilme). Alguns dos problemas associados à formação de biofilmes nos sistemas de distribuição de água incluem a redução da qualidade da água, alterando o seu sabor, odor e cor, e conferem os microrganismos colonizadores uma elevada tolerância a desinfetantes, dificultando a eliminação de patógenos que possam existir nesse ecossistema. Outro problema é a obstrução das tubagens, reduzindo o escoamento da água e comprometendo a resiliência do sistema distribuição.

Os microrganismos foram as primeiras formas de vida coletiva a surgir na Terra e desempenham um papel fundamental na saúde humana, animal e ambiental. São responsáveis por regular processos vitais, como os ciclos biogeoquímicos, a dinâmica do carbono e a emissão de gases com efeito de estufa. Além disso, contribuem para a nutrição e para a proteção contra agentes patogénicos. Assim, tendo em conta a importância destas funções, a utilização consciente de bactérias poderá beneficiar significativamente a vida no planeta14. De facto, os microrganismos têm sido apontados como uma abordagem promissora no combate à crise climática nas suas diversas formas (por exemplo, captura de carbono, biorremediação, produção de bioenergia, etc.)6, 12.

E se pudéssemos controlar os biofilmes formados em sistemas de distribuição de água potável usando (outras) bactérias? Esta abordagem inovadora, baseada na coagregação bacteriana, surge como uma solução promissora para manter a água potável segura2. A coagregação bacteriana é o processo pelo qual estirpes geneticamente diferentes interagem para formar agregados2, 9. Essa interação acontece por meio de estruturas específicas na superfície celular, como proteínas de adesão e polissacarídeos, que funcionam como “chaves e fechaduras” moleculares9 (FIGURA 2). Diferente da auto-agregação, onde células geneticamente idênticas se juntam entre si, na coagregação há uma espécie de “cooperação táctica” entre estirpes, muitas vezes com funções complementares dentro de um biofilme. Este processo é comum na natureza – por exemplo, na cavidade oral, algumas bactérias como Fusobacterium nucleatum são conhecidas por formar parcerias com outras espécies, ajudando a organizar os complexos biofilmes orais9.


FIGURA 2. Coagregação como um processo “chave-fechadura” entre espécies microbianas. A bactéria Fusobacterium nucleatum atua como uma ponte central na formação de biofilmes orais, estabelecendo ligações com múltiplos microrganismos, incluindo bactérias e fungos. Essa interação é mediada por proteínas adesinas específicas (como RadD, Fap2, CmpA, entre outras), que funcionam como “chaves moleculares” capazes de reconhecer “fechaduras” específicas na superfície de outras espécies. Este mecanismo seletivo permite que F. nucleatum coagregue com microrganismos muito distintos, como Streptococcus spp., Porphyromonas gingivalis, Candida albicans ou Treponema denticola, promovendo a organização estrutural e funcional do biofilme4.

Algumas bactérias têm a capacidade de coagregar com outras espécies, influenciando diretamente a formação, composição e estabilidade dos biofilmes1, 3, 13, 17. Em certos casos, atuam como pontes biológicas, permitindo a adesão de espécies que, isoladamente, não conseguiriam integrar o biofilme. Um exemplo bem documentado é o da bactéria Acinetobacter calcoaceticus, que funciona como “bactéria ponte”, facilitando a integração de outras bactérias em biofilmes de água potável17. Esta capacidade pode ser explorada estrategicamente na introdução de bactérias benéficas que competem por espaço e nutrientes, impedindo a fixação de microrganismos indesejados por competição espacial. No entanto, a coagregação também pode ter efeitos opostos: estudos recentes demonstraram que Delftia acidovorans facilitou a inclusão da bactéria patogénica Stenotrophomonas maltophilia em biofilmes mais tolerantes à desinfeção com cloro1. Estes resultados mostram que, embora a coagregação tenha grande potencial como ferramenta biotecnológica, a sua aplicação requer escolha cuidadosa das estirpes envolvidas. Ao manipular estas interações naturais com base em conhecimento científico, é possível promover consórcios microbianos desejáveis, complementando métodos tradicionais de desinfeção e tornando os sistemas mais eficazes e sustentáveis (FIGURA 3).

A coagregação já tem vindo a ser estudada como potencial de aplicação biotecnológico. No tratamento de águas residuais, as bactérias coagregantes podem ser introduzidas para acelerar a formação de grânulos aeróbios e biofilmes, aumentando a eficiência na remoção de poluentes orgânicos e inorgânicos; na biorremediação, a coagregação facilita a integração de microrganismos com capacidades metabólicas complementares, promovendo a degradação eficiente de contaminantes em ambientes aquáticos e terrestres; na bioaumentação foi estudado que a utilização de bactérias com alta capacidade de coagregação ajudam a aumentar a estabilidade e a eficácia de consórcios microbianos introduzidos em sistemas de tratamento, reduzindo a necessidade de imobilização artificial5, 11, 22.


FIGURA 3. Coagregação e formação de biofilmes. A coagregação permite a inclusão de diferentes espécies bacterianas nos biofilmes. Na ausência da bactéria coagregante, outras espécies que dependem de interações específicas com ela não seriam incorporadas no biofilme. A coagregação como técnica biotecnológica pode ser explorada de várias maneiras: (A) se a coagregação facilitar a inclusão de patogénicos no biofilme, a interferência específica nessa interação pode ser uma estratégia para remover os patogénicos; (B) a bactéria coagregante pode estabelecer interações específicas com membros benéficos da microbiota aquática, sem incluir patogénicos.

O controlo biológico de biofilmes através da coagregação bacteriana poderá oferecer várias vantagens, incluindo a redução da necessidade de produtos químicos agressivos e a preservação da microbiota benéfica do sistema de água. Contudo, a aplicação prática desta estratégia exige uma compreensão profunda das interações microbianas e da ecologia do sistema, além de estudos adicionais para garantir a segurança e a eficácia em larga escala. Em suma, o uso de bactérias para controlar outras bactérias é uma abordagem biotecnológica inovadora com grande potencial na proteção da água potável. Embora ainda em fase de desenvolvimento, esta estratégia pode representar uma solução eficaz e sustentável para o problema persistente dos biofilmes nos sistemas de água. No futuro, esta abordagem biotecnológica poderá desempenhar um papel crucial na garantia da segurança da nossa água.


Agradecimentos

Este trabalho foi financiado por: LEPABE, UIDB/00511/2020 (DOI: 10.54499/ UIDB/00511/2020) e UIDP/00511/2020 (DOI: 10.54499/UIDP/00511/2020), e ALi- CE, LA/P/0045/2020 (DOI: 10.54499/LA/P/0045/2020), projeto HCAI_Disinfect (ref. COMPETE2030-FEDER-00752300; N.º 16360); financiados por fundos nacionais através da FCT/MCTES (PIDDAC) e CITAB, UIDB/04033/2025 (DOI: 10.54499/UIDB/04033/2025).