Completam-se este ano, as duas primeiras décadas desde a comercialização das primeiras plantas geneticamente modificadas (PGMs). Foi em 1994 que, depois de obter autorização pelas entidades reguladoras dos Estados Unidos da América, a empresa Calgene lançou no mercado a primeira variedade de PGMs, um tomateiro, designada Flavr-SavrTM, e que tinha como característica principal um atraso na maturação dos frutos, permitindo assim alargar o período de colheita. No entanto, tudo começou, alguns anos antes, quando em 1983, quatro grupos de investigação independentes mostraram que era possível manipular o genoma das células vegetais da planta do tabaco e de petúnia introduzindo genes de outros organismos que conferiam às plantas novas capacidades. Nasciam assim as primeiras plantas modificadas por técnicas de biologia molecular, uma metodologia que já vinha sendo aplicada à manipulação de microrganismos.


A modificação genética de plantas é praticada desde há milhares de anos, provavelmente desde o início das práticas agrícolas, que segundo dados biológicos e arqueológicos, ter-se-ão iniciado há cerca de 10.000 anos, numa região denominada Crescente Fértil, que engloba os vales do rio Tigre e Eufrates.


Desde esses tempos até à atualidade tem-se assistido a uma alteração profunda das plantas, em particular daquelas que são mais utilizadas na agricultura, aquilo a que Darwin chamou seleção artificial. No entanto, até meados dos anos 80, a modificação genética das plantas ocorreu sem que se verificasse uma manipulação direta do DNA. O conceito é simples e baseia-se no cruzamento entre duas plantas e ulterior seleção das características mais interessantes. Até ao conhecimento dos princípios básicos da hereditariedade, revelados por Mendel em meados dos anos 60 do século XIX, e depois consolidados por vários cientistas, esta prática era puramente empírica. Com a descoberta das leis da hereditariedade tornou-se possível realizar programas de melhoramento com base na genética, o que permitiu aplicar as técnicas convencionais de cruzamento e seleção de acordo com princípios científicos bem definidos. Deve referir-se que estas técnicas são, ainda hoje, a principal metodologia para a obtenção de novas variedades e transferência de genes entre plantas que todos os anos são produzidas em grande número por empresas ou por institutos de investigação.


A necessidade de produção de plantas com novas características não é um capricho dos melhoradores. As novas variedades são necessárias porque as necessidades e os gostos dos consumidores vão evoluindo. Quem, há 50 anos atrás, estaria interessado em plantas com elevados teores de anti-oxidantes? Ou quem pensaria em rosas azuis? No entanto, a principal razão para a obtenção de plantas com novas características reside na necessidade de aumentar a produção. Os dados são muito claros. Em 2050 estima-se que a população do planeta atinja os 9 mil milhões de habitantes, cerca de mais 2 mil milhões do que a população atual. Para além disso, a esperança média de vida tem vindo a aumentar e, nos países mais populosos, como a China e a Índia, tende a aproximar-se dos valores dos países ocidentais. Por outro lado, a terra disponível para as práticas agrícolas é cada vez mais reduzida devido à erosão dos solos, atividades antropogénicas e aumento da salinidade. Esta situação significa que vai ser necessário produzir cada vez mais em menos área. Para que isso se verifique é necessário ter variedades cada vez mais produtivas, quer através de alteração de características relacionadas com a própria produção (e.g. aumento do tamanho da semente, níveis mais elevados de nutrientes…) quer com a resistência a fatores bióticos e abióticos que, todos os anos, causam perdas consideráveis nas culturas, com o consequente prejuízo para os agricultores e os inúmeros efeitos nefastos em termos ambientais.


As técnicas convencionais de melhoramento genético têm algumas limitações. Como se baseiam em cruzamentos, estes só podem ser realizados entre espécies filogeneticamente muito próximas. Como exemplo, pode referir-se o triticale, uma nova espécie de cereal híbrido criado artificialmente e que resulta do cruzamento entre o trigo (Triticum aestivum) e o centeio (Secale cereale). No entanto, é impossível obter descendentes viáveis entre, por exemplo, um sobreiro e uma couve, ou mesmo entre um tomateiro e uma alface. As barreiras de incompatibilidade impedem estes tipos de cruzamentos e, em consequência disso, a transferência de genes entre espécies distantes do ponto de vista evolutivo não pode ser realizada.

O surgimento de técnicas de biologia molecular para isolamento, caracterização e transferência de genes permitiu ultrapassar o problema das barreiras de incompatibilidade e facilitar a transferência de genes entre espécies filogeneticamente distantes. Esta situação verifica-se porque a molécula da hereditariedade é a mesma em todos os organismos e porque os mecanismos de controlo da expressão de genes são também semelhantes nos diferentes organismos. Torna-se assim possível transferir genes entre organismos tão diferentes como uma bactéria e uma planta. Outra vantagem desta metodologia é que se pode introduzir no organismo alvo apenas o gene de interesse, situação que não se verifica nos casos de cruzamentos em que, para além do gene desejado, podem ser transferidos outros menos interessantes.


No caso das plantas, a transferência de genes é normalmente feita utilizando uma bactéria (Agrobacterium tumefaciens) que, em condições naturais, infeta algumas espécies, e causa o aparecimento de uma doença chamada galha-do-colo. A doença caracteriza-se pelo aparecimento de um tumor na zona entre o caule e a raiz (colo da planta) e que resulta da transferência de um segmento de DNA da bactéria para as células vegetais. Trata-se de um mecanismo de transferência horizontal de genes que os cientistas aproveitaram para transferir para as plantas genes de interesse. Tendo em consideração este potencial da bactéria, os cientistas conseguem isolar os oncogenes responsáveis pelo tumor e substituí-los por genes que interessa transferir para as plantas de forma a conferir-lhes novas características. Uma vez as bactérias manipuladas e o gene de interesse introduzido num plasmídeo bacteriano, procede-se à infeção em condições laboratoriais, seguida de uma seleção das células geneticamente transformadas e subsequente regeneração in vitro de plantas. No entanto, algumas espécies não são suscetíveis à infeção por A. tumefaciens, como acontece com os cereais. Nestas espécies, são vulgarmente usados métodos alternativos de transferência de genes, como acontece com a chamada biolística, em que os tecidos vegetais são bombardeados com micropartículas revestidas com o DNA que se quer transferir.


Esta tecnologia veio revolucionar a forma como se podem modificar as plantas e permitiu a obtenção de variedades que não seria possível conseguir pelos métodos convencionais de melhoramento. Existem atualmente milhares de publicações em que está descrita a transformação genética das mais variadas espécies. É claro que aquelas onde os ensaios incidem em maior número são as mais importantes sob o ponto de vista alimentar ou industrial. Muitas destas novas variedades estão em fase de experimentação ou aguardam autorização para serem cultivadas e chegarem aos mercados. Desde 1994, a área global de cultura com PGMs tem vindo consistentemente a aumentar, atingindo em 2012 (último ano com dados conhecidos) um valor próximo dos 170 milhões de hectares (figura 1), estimando-se que, em 2013, o valor tenha chegado aos 190 milhões. De referir o facto de, em 2012, a produção em países em desenvolvimento ter, pela primeira vez, ultrapassado a produção dos países mais industrializados. Para se ter uma ideia, este valor representa uma área equivalente à de um país como a Líbia. De acordo com dados da ISAAA (International Service for the Acquisition of Agri-Biotech Applications, www.isaaa.org), em 2012, cerca de 17,5 milhões de agricultores em 28 países (Portugal incluído) cultivaram plantas PGMs sem que um único problema ambiental ou de saúde pública tenha ocorrido.


Figura 1. Evolução da área de cultura com PGMs desde 1996 até 2012. Adaptado de Clive James, 2012 (ISAAA; www.isaaa.org).

As culturas de PGMs têm incidido em quatro espécies, a saber a soja, o milho, o algodoeiro e a canola, uma variedade de Brassica napus, utilizada para a produção de um óleo industrial. Destas quatro espécies, as maiores áreas de cultura são de milho e soja, correspondentes a mais de dois terços da área total cultivada com PGMs. Em termos de características, as PGMs atualmente cultivadas pertencem a dois grandes grupos que se caracterizam pela resistência a insetos ou a herbicidas. Algumas variedades apresentam quer resistência a herbicidas quer a insetos. Como referido, muitas outras variedades aguardam autorização, sendo a mais conhecida em termos mediáticos o arroz dourado. Neste caso, trata-se de um projeto humanitário (www.goldenrice.org) que visa disponibilizar às populações de alguns países orientais em que a dieta alimentar é excessivamente dependente do arroz, uma variedade enriquecida em β–caroteno (pró-vitamina A), que devido à tonalidade amarelada do grão foi designada arroz dourado. A carência em vitamina A afeta mihões de pessoas causando graves problemas de cegueira e, em casos extremos, pode causar a morte, em particular entre crianças.


Em Portugal, à semelhança de outros países europeus, e contrastando com o que se passa na América (Argentina, Brasil, EUA) e em países orientais, a área de cultura de PGMs é ainda muito limitada. A esta situação não é estranha a apertada regulação que controla a cultura e comercialização de variedades de PGMs no espaço europeu. A consequência desta legislação absurda é uma acentuada diminuição dos investimentos nesta área por parte das empresas do sector agroalimentar devido aos elevados custos resultantes dos inúmeros testes que as empresas são obrigadas a realizar. Por outro lado, os laboratórios públicos de institutos de investigação e de universidades estão também financeiramente limitados pelo mesmo tipo de custos. Esta contexto tem levado a que a Europa se torne cada vez menos competitiva em comparação com os seus parceiros comerciais, em particular os Estados Unidos da América e a China. A manter-se esta situação, e em resultado do novo acordo de comércio mundial que irá regular as trocas comerciais, perspetiva-se, num futuro próximo, a entrada no espaço europeu de variedades geneticamente modificadas provenientes de outros países e um acelerar da deslocalização das empresas do sector-agroalimentar para outros locais.


Apesar destas limitações, e de acordo com dados da ISAAA e do CIB (Centro de Informação de Biotecnologia, www.cibpt.org), existem vários agricultores em Portugal a apostar neste tipo de culturas em particular de milho, nas regiões do Alentejo, Centro e Lisboa e Vale do Tejo. Trata-se do chamado milho Bt resistente à broca-do-milho (figura 2) uma larva de inseto que causa perdas acentuadas nas culturas. Este milho tem incorporado no genoma um gene de uma bactéria chamada Bacillus thuringiensis que codifica uma toxina capaz de matar as larvas de alguns insetos. De acordo com informações recolhidas junto dos agricultores estas variedades permitem um aumento de produção entre 1 e 1,3 toneladas por ha, dependendo da zona do país e da taxa de incidência da praga.



Figura 2. Espigas de milho. A – Espiga de uma planta sensível à broca-do-milho onde se pode observar uma larva (seta) do inseto causador da praga. B – Espiga de milho Bt resistente à mesma praga. Fotos gentilmente cedidas pelo Eng. João Grilo, agricultor que semeia milho geneticamente modificado na região do Baixo-Mondego.

A transformação genética de plantas é apenas mais uma técnica que os melhoradores têm ao seu dispôr. Não veio substituir as técnicas convencionais de melhoramento, mas sim complementá-las e potenciar a criação de variedades até aqui impossíveis de obter. Apesar do sucesso desta tecnologia, muitos continuam a ver fantasmas. Quando esses luditas do século XXI são só pseudoecologistas, com uma agenda política bem definida, o problema não é muito grave. Mais difícil de compreender é a dificuldade dos governantes em adotar, para as plantas geneticamente modificadas, uma legislação que as coloque em pé de igualdade com as plantas obtidas por outros métodos, centrando o controlo no produto final e não na tecnologia utilizada na sua obtenção.


Para aqueles que ainda desconfiam das plantas geneticamente modificadas e que consideram que o seu consumo pode causar prejuízos para a saúde, fica esta frase de G. Bernard Shaw: “statistics show that of those who contract the habit of eating, very few survive”.


Jorge M. Canhoto
Centro de Ecologia Funcional
Departamento de Ciências da Vida
Faculdade de Ciências e Tecnologia
da Universidade de Coimbra

* O autor deste texto não escreve segundo o Novo Acordo Ortográfico.