Da nanociência à nanotecnologia
A realidade do futuro
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- Faculdade de Ciências da Universidade do Porto
Referência Marques, E.F., (2014) Da nanociência à nanotecnologia, Rev. Ciência Elem., V2(3):058
DOI http://doi.org/10.24927/rce2014.058
Palavras-chave nanotecnologia; futuro;
Resumo
Quando em 29 de dezembro de 1959, numa reunião de físicos no campus do Caltech, Richard Feynman — um dos nomes cimeiros da Física do século XX — proferiu uma célebre palestra intitulada “There’s plenty of room at the bottom” (numa tradução livre: “Há imenso espaço no fundo”!...), estava lançado de forma genial, provocatória e visionária um repto científico que iria ecoar por décadas… Feynman não conhecia limites para a curiosidade e o desafio científicos, e a sua visão de ciência, partindo de uma formação física fundamental, era genuinamente holística e integrada. Os dados estavam lançados não só para físicos como para químicos, biólogos, cientistas e engenheiros da área dos materiais das gerações seguintes.
Mas de que falava afinal Feynman? Dizia ele que num futuro não muito distante seria possível desenhar e construir materiais átomo-a-átomo, molécula-a-molécula por manipulação controlada e organizada (o que exigiria naturalmente o desenvolvimento de tecnologia adequada, por ex. microscopia eletrónica), sem que tal implicasse a violação de qualquer lei científica fundamental. Ficção científica? É preciso não esquecer que por essa altura, o computador mais avançado do mundo, o UNIVAC 1, ocupava uma sala inteira. Mais: Feynman previa que seria possível escrever os 24 volumes da Encyclopedia Brittanica na cabeça de um alfinete! Em 1990, cerca de 30 anos mais tarde, engenheiros da IBM em Zurique conseguiam depositar átomos de Xe numa superfície Ni de forma tão rigorosamente ordenada que o nome da empresa emergia de modo espetacular (Figura 1). Um triunfo da ciência e da técnica: o futuro tornara-se realidade. A nanociência e a nanotecnologia tinham assim dado um salto quântico irreversível.
O que são então a nanociência, a nanotecnologia e os nanomateriais, designações científicas que extravasaram há muito o domínio académico e surgem com alguma regularidade nas notícias do quotidiano, por boas razões (muitas) ou por más razões (algumas)?... Aproximemos, com alguma dose de imaginação, uma molécula de água a uma esfera. Tal esfera terá um diâmetro aproximado de 0.18 nm, sendo que 1 nm = 1 x 10-9 m. Quando o tamanho de qualquer tipo de partícula (no sentido lato do termo) se situa abaixo de 1 nm estamos claramente no domínio atómico-molecular. Acima desta escala, entramos no domínio da nanociência e, como se verá, Feynman estava correto: há muito espaço no fundo para arrumar coisas... Os nanomateriais, ou materiais organizados à nano-escala, são materiais que, independentemente da sua composição química e estrutura fina detalhada, apresentam distâncias características compreendidas tipicamente entre 1-100 nm (embora aqui o limite máximo não seja rígido, podendo ir a poucas centenas de nm).
Estamos, assim, no limite inferior do domínio coloidal (1-1000 µm). A ciência que se dedica à conceção, caraterização estrutural e estudo das propriedades destes sistemas e materiais é a nanociência. Ainda mais disseminado e popular que nanociência é o termo nanotecnologia, que pode ser definido como a capacidade para construir materiais e dispositivos funcionais com base na manipulação controlada de matéria à escala nanoscópica (1-100 nm) para aplicações tecnológicas específicas, explorando fenómenos físicos, químicos ou biológicos a essa escala. É preciso notar que os objetos à nano-escala de que aqui se trata são conjuntos de átomos, moléculas gigantes, conjunto de moléculas, ou partículas que os contêm em número razoável (dezenas, centenas ou uns poucos milhares).
Embora os nanomateriais tenham ganho um enorme protagonismo no domínio da investigação científica e tecnológica, o mistério deles é não terem mistério algum: a sua utilização remonta a tempos ancestrais e para uma variedade de utilizações! Assim, os Maias usavam argilas de silicato de alumínio e magnésio que continham canais nanoporosos preenchidos por água. As civilizações da Mesopotâmia usavam vidro colorido para fins decorativos que continham nanopartículas metálicas impregnadas. No entanto, a primeira utilização do termo nanotecnologia surge apenas numa conferência de engenharia em 1974, na qual Norio Taniguchi, professor da Tokyo University of Science, descreveu o seu trabalho de investigação em semiconductores por uso de técnicas de deposição de filme e feixes de energia de elevada precisão, com controle nanométrico das dimensões. Deste modo, para que a nanociência e nanotecnologia se constituíssem como verdadeiras áreas científicas, com um corpo de conhecimento organizado e sistematizado, radicado essencialmente na química e na física, foi necessário chegarmos ao final dos anos 70 do século passado. Se pensarmos nas disciplinas básicas estabelecidas em termos de diagramas de Venn, a nanotecnologia não é um círculo independente isolado, mas é aquele que se sobrepõe a todos os existentes e que continuará a crescer à medida que se desenvolve (Figura 2). Na nanociência cabem a nanofísica, a nanoquímica, a nanobiologia e a ciência dos materiais - é um verdadeiro “albergue espanhol” multidisciplinar para as ciências fundamentais. À nano-escala, as fronteiras científicas diluem-se: há apenas o detalhe da abordagem, do ângulo de visão ou do sistema concreto em estudo. Porém, a necessidade de conhecimento transdisciplinar é imperiosa para a compreensão dos fenómenos e para a verdadeira inovação.
Mas o que têm afinal de especial os nanomateriais, que os tornam tão únicos e promissores no plano científico e técnico? Em primeiro lugar, há que reconhecer que no regime de tamanho nanoscópico, os sistemas e materiais apresentam uma elevada razão área/volume. Tal facto traduz-se numa enorme área superficial disponível para fenómenos de adsorção (física ou química) e reatividade química para com o meio envolvente, essencial por exemplo para processos de catálise, para sensores e para reconhecimento molecular em geral. Há um mundo de oportunidades para controlar e funcionalizar os nanomateriais!
Em segundo lugar, uma dada substância quando miniaturizada para uma escala sub-100 nm apresenta propriedades novas quer relativamente ao material macroscópico (i.e., estruturado em domínios de dimensão igual ou superior ao micrómetro, 1 µm = 1 x 10-6 m), quer relativamente aos átomos ou moléculas individuais. Este efeito está intimamente relacionado com o anterior, já que é a elevada proporção de átomos ou moléculas existentes à superfície relativamente aos do interior de fase que está na base das novas propriedades. As propriedades óticas, elétricas, mecânicas, magnéticas e químicas podem ser manipuladas de forma controlada e sistemática ajustando o tamanho, a forma e a composição química destes materiais. As nanopartículas de metais nobres e de semicondutores ilustram este princípio de forma espetacular (Figura 3)!
Finalmente, como os sistemas biológicos apresentam frequentemente a matéria organizada à nano-escala – por exemplo, proteínas com diâmetros da ordem de 1-20 nm, vesículas lipídicas de 5-100 nm de diâmetro, membranas celulares com espessura de 3-5 nm — o fabrico de materiais neste regime de tamanhos possibilita a introdução de componentes artificiais no interior das células para diagnosticar ou combater doenças (entre outras aplicações). Acresce que a Natureza é fértil em adaptações funcionais dos seres vivos ao meio baseados em processos e estruturas à nano-escala. Dois exemplos fascinantes: o efeito lótus associado à superhidrofobicidade e autolimpeza das folhas da planta de lótus e que inspira o desenvolvimento de superfícies sintéticas com propriedades semelhantes; o efeito gecko (uma espécie de lagarto) de superadesão a superfícies devido a forças de van der Waals muito intensas e que inspira o desenvolvimento de super-adesivos. Na biomimética (um ramo da bionanotecnologia), o Homem está sempre um passo atrás da Natureza…
Podemos assim, sem exagero, afirmar que estamos a assistir nas últimas duas décadas a uma evolução científica e tecnológica rápida e sem precedentes devido à versatilidade funcional dos materiais auto-organizados ou estruturados à nano-escala. Os nanomateriais constituem pela sua diversidade química e estrutural um verdadeiro jardim zoológico (e também um jardim de delícias para quem os investiga e manipula!). A chave para a conceção de inúmeros destes materiais radica num conhecimento profundo da química a nível fundamental e na manipulação das suas ferramentas. Em termos genéricos, os blocos de construção deste tipo de materiais são partículas inorgânicas (por ex., metálicas ou de compostos iónicos), moléculas orgânicas (por ex. polímeros, lípidos ou tensioativos) ou estruturas híbridas (orgânicas/inorgânicas). Estas unidades são organizadas para poderem realizar tarefas tão distintas como catálise, transporte e cedência controlada de biomoléculas, funcionar como sensores e repórteres do meio ambiente, ou como semicondutores em circuitos eletrónicos. Os materiais nano-estruturados podem ser duros — tais como as nanopartículas e os nanotubos de carbono — ou moles — tais como as micelas, bicamadas e cristais líquidos.
Em termos de estruturação, podemos distinguir os nanomateriais como estando organizados em várias dimensões (Figura 4). Para 0D (comprimento = largura), tal como o ponto final desta frase, surgem as nanopartículas e os nanocristais, que podem ser gerados com formas geométricas muito distintas e surpreendentes. Os pontos quânticos (quantum dots) são nanocristais muito particulares (1-30 nm), constituídos por compostos semicondutores e que apresentam propriedades óticas e elétricas altamente controláveis. Atualmente apresentam aplicações importantes como em sensores, marcadores biológicos e lasers. Por exemplo, os discos de alta densidade (tais como os HD-DVD e blue-ray DVD) só podem ser lidos por lasers azuis fabricados a partir de pontos quânticos.
De entre os nanomateriais 1D (comprimento > largura), tal como um “l” neste texto, temos os nanotubos, os nanofios e as nanofibras. Os nanotubos de carbono – uma das (inúmeras) formas alotrópicas deste elemento, para além do diamante e da grafite – constituem o material mais duro e resistente conhecido até ao momento. A 2D podemos ter como exemplos os dendrímeros — macromoléculas ramificadas como árvores, com elevada simetria e com importantes aplicações como agentes de imagem, sensores e transportadores de fármacos — e o grafeno. Este último (outro alótropo cristalino de carbono), consiste numa folha de carbono com a espessura de uma camada de átomos, os quais se encontram num arranjo covalente hexagonal. O grafeno é basicamente uma folha de grafite individualizada com a sua estrutura de favos de colmeia. Desde que isolado pela primeira vez em 2004, este material tem suscitado um enorme interesse científico devido às suas propriedades diferenciadas (100 vezes mais resistente que o aço e condutividades térmica e elétrica muito elevadas). Os nanomateriais 2D e 3D podem incluir arranjos espaciais organizados dos blocos 0D e 1D já referidos. As superfícies funcionalizadas por via química e física à nano-escala, as quais apresentam aplicações relevantes como sensores e em processos de molhagem (hidrofobicidade e hidrofilicidade) e adesão, são também exemplos de nanomateriais 2D, frequentemente de composição híbrida e hierárquica.
Para os materiais 3D, encontramos também os materiais coloidais auto-organizados, resultantes da agregação (não covalente) de moléculas anfifílicas tais como os tensioativos, lípidos e os copolímeros de bloco. Incluem as micelas, os lipossomas, as estruturas em bicamadas, nanotubos e cristais líquidos liotrópicos. Por si só, constituem um mundo de estruturas fluidas fascinantes, facilmente convertíveis umas nas outras por manipulação de variáveis intensivas tais como a concentração, a temperatura, a força iónica e o pH. A utilização destas estruturas como nano-transportadores de fármacos e material genético para o interior das células constitui um dos grandes temas atuais de investigação na química-física aplicada, biofísica e biomedicina. A combinação de nanomateriais com biomoléculas tem aberto e seguramente continuará a abrir novos caminhos nos diagnósticos médicos e na cedência controlada de fármacos específicos em células-alvo. Isso abrirá a oportunidade para estudar e contribuir para o tratamento de doenças debilitantes ou letais como Alzheimer, HIV-SIDA, e muitas formas de cancro.
Mais aplicações, sem dúvida, irão ser descobertas à medida que as nanociências se consolidam e amadurecem. Uma possibilidade excitante é a da construção de nano-circuitos a partir de pontos quânticos, nanofios e outros blocos, organizados numa matriz montada numa superfície. Outra possibilidade é a criação de dispositivos capazes de trazer compostos químicos em quantidades minúsculas e levá-los a reagir por forma a produzir um sinal registável. Estes dispositivos conhecidos como LOC (lab-on-a-chip) poderão vir a tornar-se a base para sensores químicos mais exatos e fiáveis do que aqueles atualmente conhecidos e suficientemente pequenos para serem injetáveis no sangue.
A nível tecnológico, dado que vivemos num mundo macroscópico, as próximas gerações de materiais terão dimensões físicas semelhantes aos atuais produtos de consumo. Ou seja, teremos já encolhido o tamanho de telemóveis e computadores portáteis praticamente aos seus limites funcionalmente úteis. No entanto, embora o tamanho dos dispositivos eletrónicos tenda a permanecer constante, a velocidade e capacidade computacional destes dispositivos irá continuar a aumentar. Isso traduz-se em materiais que são construídos a partir do zero, com cada nano-bloco de construção a ser posicionado de cada vez, num processo designado por bottom-up (baixo para cima). No entanto, torna-se sinteticamente muito dispendioso, e não escalável em termos industriais, proceder à montagem de tais pequenas unidades nas suas posições desejadas de modo operado manualmente. Consequentemente, químicos e físicos da área dos materiais estão em grande parte focados em desenvolver e aperfeiçoar técnicas de bottom-up que sejam rentáveis para a automontagem das pequenas unidades de nano-escala que compõem o material final desejado. Além disso, esforços paralelos estão a ser dirigidos para processamentos top-down (cima para baixo) por engenheiros de materiais, por forma a produzir nanomateriais e nanodispositivos através de técnicas ultrassofisticadas de litografia, ablação e gravura.
Estamos assim numa verdadeira explosão de aplicações a partir destes blocos de construção à nano-escala, sejam elas na área da eletrónica, fotónica e miniaturização, da biomedicina e da robótica, dos biossensores altamente seletivos e sensíveis, da energia solar e das baterias, e da prospetiva computação quântica. No entanto, apesar de todos os avanços, falhanços, promessas e especulações da nanotecnologia, é preciso não esquecer outro tipo de questões emergentes. O que irá acontecer com a introdução em larga escala de nanomateriais no nosso quotidiano? Será que a sua introdução perturba o equilíbrio natural da biosfera de formas não previstas e dificilmente controláveis? Haverá problemas toxicológicos e ambientais relacionados com a utilização disseminada de materiais nano-estruturados em produtos do quotidiano, produtos médico-farmacêuticos e processos técnicos? Poderá desenvolver-se “nano-armamento” invisível? E quanto a questões éticas e filosóficas sobre a relação máquina-Homem?
Sem dúvida que serão os próprios investigadores das nanociências, entre outros agentes do conhecimento, os primeiros interessados em trazer respostas a estas interrogações e dúvidas, como sempre o fez a ciência ao longo da sua história. Certo é que a nanociência e a nanotecnologia há muito que saíram da sua infância e estão trilhando o seu percurso para aplicações tecnológicas cada vez mais inovadoras. A constante evolução no plano das metodologias e técnicas experimentais — de que são exemplos as microscopias de sonda de varrimento, como STM e AFM, e técnicas de pinças óticas (optical tweezers) — oferece novas dimensões a este campo a cada ano que passa, num efeito de retroação positiva. Embora muitas questões suscitem debate na comunidade académica e fora dela, o interesse geral em nanociência e nanotecnologia seguramente crescerá durante as próximas décadas.
Eduardo F. Marques
Departamento de Química e Bioquímica
Faculdade de Ciências da Universidade do Porto
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