Sexo & Género
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- Universidade do Porto
Referência Calafate, L., (2018) Sexo & Género, Rev. Ciência Elem., V6(3):059
DOI http://doi.org/10.24927/rce2018.059
Palavras-chave multiplicação, hereditariedade, sexo, reprodução, desenvolvimento, identidade, comportamento, orientação, cognição
Resumo
A melhor forma de transmitir conhecimentos e de estimular o raciocínio nas pessoas é abordar uma questão genérica, mostrando-lhes porque é importante e continuará a sê-lo ao longo das suas vidas. Tomemos, por exemplo, o sexo nos seres humanos: por que não se limitam as pessoas a praticar a partenogénese, desenvolvendo embriões a partir de óvulos não fertilizados? Como evoluiu a sexualidade humana? Porque é que os seres humanos têm dois sexos? Porque é que as pessoas não são hermafroditas?
Infelizmente, a compreensão da sexualidade tem sido perturbada pelo excesso de politização que atualmente a envolve. Se, por um lado, uma teoria do género que ignore a biologia é inaceitável, por outro lado, é impossível concordar com um determinismo biológico que tudo justifique.
Multiplicação & Hereditariedade
O significado da hereditariedade consiste em que, quando a multiplicação se verifica, o semelhante dá origem ao semelhante. Todavia, este processo não é perfeito e de tempos a tempos surgem variantes, conduzindo a diferenças na capacidade da descendência sobreviver e reproduzir-se5.
Alguns peixes e anfíbios e muitas plantas têm até seis conjuntos de cromossomas, mas nós só temos dois. Todavia, conhecem-se exceções como é o caso, por exemplo, da modelo americana de 34 anos, Taylor Muhl, que tem dois sistemas de ADN, resultantes da fusão de dois zigotos o seu e o da sua irmã gémea. A manequim é uma quimera genética com dois grupos sanguíneos e dois sistemas imunitários. Em certo sentido, é mais do que uma pessoa.
A maioria dos cromossomas é constantemente misturada através da recombinação, mas este processo não se aplica aos genes contidos no cromossoma Y e nas mitocôndrias. Os defeitos nos genes mitocondriais podem provocar doenças e os cientistas estudam o modo de os transplantar de óvulo para óvulo para impedir que estas perturbações sejam herdadas. Esta técnica é ainda um pouco controversa, porque qualquer criança assim gerada terá ADN de três progenitores. O ADN nuclear virá da mãe e do pai, mas o ADN mitocondrial será proveniente do dador do óvulo.
No mundo natural, tudo pode ser herdado, exceto a esterilidade. Todavia, a medicina permitiu a existência de algo que a natureza tornava impossível – a hereditariedade da infertilidade, pela técnica de Injeção Intracitosplamática de Espermatozoides (ICSI). Em mais de metade dos homens, que procuram tratamento para a infertilidade, o problema reside nos seus espermatozoides. Ou não os têm em número suficiente ou estes não conseguem nadar convenientemente. Com o tratamento ICSI os espermatozoides não têm de ser capazes de fertilizar um óvulo sozinhos. Se a infertilidade do homem for provocada por um cromossoma Y danificado, então a ICSI passará esse cromossoma Y a todos os filhos, transmitindo o problema à geração seguinte8. Ao contrário, na natureza os espermatozoides fracos ou passivos ficam parados e só é recompensada a energia e a determinação.
Sexo, Reprodução & Desenvolvimento
Nos seres humanos, o sexo genético é representado pelo par de cromossomas sexuais (XY no homem e XX na mulher) e a reprodução sexuada é a única maneira de terem bebés. No entanto, muitos seres vivos não têm sexo, ou têm-no numas gerações e não noutras. Por exemplo, o sexo não faz parte dos rotíferos bdelóides. Nunca foi visto um macho de rotífero bdelóide. Todos os membros das quinhentas espécies destes rotíferos conhecidas são fêmeas6.
Nas espécies com reprodução sexuada, a meiose e a recombinação fornecem a cada indivíduo um genótipo pessoal e esta variabilidade extra pode ser adaptativa (FIGURA 1). Na reprodução assexuada, as mutações são invariavelmente transmitidas à descendência, mesmo que sejam nocivas, provocando um efeito conhecido como a “roda dentada de Muller”, mecanismo pelo qual os genomas tendem a perder qualidade. Quando ocorre a divisão celular por meiose, os cromossomas emparelhados trocam fragmentos de ADN, tornando possível escapar à “roda dentada de Muller” – processo pelo qual as mutações prejudiciais se acumulariam em cada geração, causando a longo prazo, uma degeneração irreversível8.
Hoje, com Matt Ridley, autor da obra A Rainha de Copas, publicada em 1993, sabemos que precisamos do sexo para estarmos um passo sempre à frente dos parasitas que andam sempre atrás de nós. Como na obra Alice do Outro Lado do Espelho1, temos de continuar a correr para ficarmos no mesmo lugar. Um novo agente patogénico pode dizimar uma população suscetível como é o caso, por exemplo, da peste negra na Europa do século XIV que matou quase metade da população. Todas as criaturas da terra estão num torneio de xadrez do tipo Rainha de Copas com os seus parasitas (ou hospedeiros), com os seus predadores (ou presas) e, até mesmo, com o (a) seu (sua) parceiro (a).
Durante o desenvolvimento embrionário, por volta das 4.ª-6.ª semanas de gestação o embrião humano é um “saco oco” coberto externamente pela ectoderme e internamente pela mesoderme, sendo a parede formada pela endoderme. Nessa altura, na linha média surge uma protusão da endoderme coberta pela mesoderme, que é o intestino primitivo, e de cada lado uma outra protrusão de endoderme coberta por mesoderme, que é a prega urogenital. A parte interna dessa prega constitui a gónada primitiva. Nos dois sexos o desenvolvimento da prega urogenital e a colonização da mesma pelas células germinativas ocorre por volta da sexta semana de gestação. Num processo temporalmente preciso, são expressos primeiro os genes que determinam a diferenciação da gónada primitiva como testículo e que, simultaneamente, inibem a expressão dos genes que induziriam a diferenciação da gónada primitiva como ovário. Se a expressão destes genes não tiver ocorrido, ocorre a expressão de outros genes que determinam a diferenciação da gónada primitiva como ovário e que, simultaneamente, inibem a diferenciação da gónada primitiva como testículo. Este padrão tem sido designado de “guerra dos sexos”4. É de realçar que estes fenómenos são estritamente locais, ou seja, a expressão local nas células implicadas de genes sucessivos é que condiciona a diferenciação local da gónada primitiva como testículo ou ovário. Assim, pode haver perturbação em que ocorra a diferenciação da gónada primitiva como testículo num lado e ovário no outro, ou até diferenciação como testículo e ovário no mesmo lado – hermafroditismo ou doença ovotesticular.
Durante as seis primeiras semanas de gestação, os embriões masculinos e os femininos desenvolvem-se de forma idêntica e continuariam a fazê-lo, produzindo bebés de sexo feminino, se o gene único do cromossoma Y não entrasse em ação. O cromossoma X extra da mulher não envia sinais suplementares, determinando assim que será mulher. Os seres humanos seriam todos do sexo feminino se não houvesse intervenção de um gene chamado SRY, localizado no braço curto do cromossoma Y. Se este gene não entrar em ação às sete semanas de gestação, ou se as instruções não forem seguidas, o embrião continuará a desenvolver-se por predefinição como organismo feminino3. Nas palavras da escritora do século XX, Simone de Beauvoir, publicadas na obra O Segundo Sexo2, “Nascemos mulheres, tornamo-nos em homens”. Se o gene SRY de um embrião XY se mutar e não for funcional, ou no caso de outros problemas genéticos tornarem as células insensíveis às hormonas masculinas que o gene ordena às gónadas que produzam, esse embrião crescerá até ser uma rapariga (que, no entanto, será estéril). Em raras ocasiões, o gene SRY pode introduzir-se no cromossoma X através de um processo de translocação e, quando isso acontece, os indivíduos com cromossomas XX tornam-se homens. Por outro lado, as mulheres XY (aparentes homens de sexo invertido) têm todas um cromossoma Y, mas como o gene SRY não funcionou quando devia, os embriões desenvolveram-se como raparigas.
Durante a sétima semana de gestação, a proteína SRY ativa outros genes em vários cromossomas. Sob a influência destes genes ativados secundariamente, as gónadas unissexo do embrião começam a desenvolver-se em testículos que, pouco tempo depois, começam a produzir duas hormonas diferentes. A hormona antimulleriana ou AMH destrói o sistema de canais de Muller. A testosterona, outra hormona produzida pelos testículos embrionários, impede o outro sistema de tubos primitivo, os canais de Wolff, de serem destruídos como o são nas mulheres. À medida que o tempo passa, os canais de Muller desaparecem e os canais de Wolff começam a expandir-se para formar os componentes dos órgãos sexuais internos do homem – a glândula da próstata e as vesículas seminais e o vas deferens que as liga. Finalmente, alguma testosterona é convertida numa forma mais potente da hormona – chamada diidrotestosterona – e isto organiza o crescimento dos órgãos genitais externos. Pregas de tecido rodeiam a uretra e formam o pénis, enquanto ali perto outros tecidos incham e fundem-se para se transformarem no escroto, até ao qual os testículos acabam por descer.
Entre as 8.ª-12.ª semanas de gestação, no fim do período da organogénese, ocorre a diferenciação do sexo fenotípico ou anatómico, que tem como componentes principais as vias reprodutoras e os genitais externos. Após oito semanas, os recém-formados testículos começam a produzir hormonas masculinas e estes androgénios masculinizam o corpo. Os aglomerados de células que de outra maneira se tornariam no clitóris e nos lábios vaginais formam o pénis e o escroto e os órgãos genitais são interligados por meio de ductos que, no sexo feminino, se atrofiam.
Nos embriões femininos, por volta da décima segunda semana de gestação, as gónadas unissexo começam a transformar-se em ovários. Os canais de Wolff, sem o apoio da testosterona, desaparecem e os canais de Muller, não suprimidos pela hormona AMH e estimulados pelo estrogénio, começam a formar os canais femininos. As partes da frente formam as trompas de Falópio enquanto as restantes se desenvolvem no útero e vagina. No exterior, os mesmos tecidos que no homem se desenvolvem no pénis formam o clitóris, enquanto os tecidos circundantes incham e se transformam nos grandes e pequenos lábios, em vez do escroto. Todas estas alterações anatómicas estão concretizadas por volta da vigésima semana de gravidez, quando o sexo fenotípico da criança é visível através de uma ecografia.
Só na altura da puberdade se vai verificar o desenvolvimento do sexo secundário, ou seja, as caraterísticas sexuais secundárias. Nessa altura, no sexo masculino, na presença de elevadas concentrações de testosterona e da transformação desta em estradiol ou dehidrostestosterona, ocorrem as alterações próprias do sexo masculino. No sexo feminino, na ausência de testosterona e na presença de elevadas concentrações de estrogénios, surgem as alterações, em grande parte opostas.
Género: Identidade, Comportamento, Orientação & Cognição
Nos seres humanos, o ADN de cada célula do corpo humano é codificado inalteravelmente como masculino ou feminino, desde o nascimento até à morte. Se, por um lado, devemos respeitar e dar proteção legal a cada pessoa que, por qualquer razão, procure mudar o seu corpo, mudar de sexo genético é cientificamente impossível.
No âmbito do sexo neuro-psíquico distinguem-se vários componentes, oscilando entre uma vertente biológica até uma vertente social. O sexo hipotálamo-hipofisário que se expressa no padrão de secreção tónica mantido das gonadotrofinas do sexo masculino ou no padrão de secreção fásica ou oscilante das gonadotrofinas no sexo feminino. O sexo cortical, em que no sexo masculino há um predomínio dos talentos lateralizados à direita e no sexo feminino um predomínio dos talentos lateralizados à esquerda, o que poderá ter uma base evolutiva antropológica. A identidade de género, que corresponde à forma como nos consideramos a nós próprios homens ou mulheres, mas que se estabelece muito precocemente até ao fim do 1º ano ou do 2º ano de vida e que habitualmente requer concordância com o sexo anatómico ou fenotípico, que reforça essa identificação. O papel de género, que diz respeito a um comportamento masculino ou um comportamento feminino e que se estabelece cedo, durante a infância. Por último, a orientação de género, que significa a atração pelo sexo oposto ou pelo mesmo sexo ou por ambos os sexos, e se estabelece após a puberdade4.
Para uma compreensão da sexualidade humana
Inicialmente os cromossomas X e Y eram um único cromossoma, mas a evolução retirou-lhes a capacidade de trocar genes entre si. Alguns genes seriam perigosos se herdados por mulheres, e vice-versa. Por exemplo, se o SRY se entrecruzasse com o cromossoma X transformaria mulheres em homens. Alguns genes no cromossoma X são também fundamentais para o desenvolvimento saudável de qualquer dos sexos. A recombinação teria privado alguns homens destas partes essenciais do genoma.
Do ponto de vista médico, a existência isolada do cromossoma Y pode ser perigosa. Não tendo um parceiro com quem que se recombinar, este cromossoma degenerou mais ou menos do modo previsto pela “roda dentada e Muller”. Nas palavras do geneticista britânico Bryan Sykes, autor do livro A Maldição de Adão7, publicado em 2003, “O cromossoma humano Y está a desaparecer perante os nossos olhos, os homens estão em vias de extinção e, com eles, talvez também a Humanidade”. Eventualmente, a solução residirá na criação de um “cromossoma Adónis” artificial que transmitirá a masculinidade sem as fraquezas do cromossoma Y.
Referências
- 1 CARROLL, L., Alice do Outro Lado do Espelho. Mem Martins: Publicações Europa-América, 2010.
- 2 DE BEAUVOIR, S., O Segundo Sexo - Volume 1. Lisboa: Quetzal, 2015.
- 3 LEROI, A.M., Mutantes. Forma, Variações e Erros do Corpo Humano. Lisboa: Gradiva, 2009.
- 4 MARTIN MARTINS, J., Andrologia. Lisboa: Lidel, 2018.
- 5 MAYNARD-SMITH, J., Os Problemas da Biologia. Lisboa: Gradiva, 1994.
- 6 RIDLEY, M., A Rainha de Copas. O Sexo e a Evolução da Natureza Humana. Lisboa: Gradiva, 2004.
- 7 SYKES, B., A Maldição de Adão. Mem Martins: Publicações Europa-América, 2006.
- 8 HENDERSON, M., 50 Ideias de Genética. Alfragide: D. Quixote, 2008.
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