A espectroscopia de difusão inelástica de neutrões (INS, do inglês inelastic neutron scattering) é uma forma complementar de espectroscopia vibracional, a par das espectroscopias de infravermelho e de Raman, onde a ideia base é a obtenção do espectro vibracional de um sistema químico, comparando a diferença de energias de um neutrão incidente e outro difundido.

Esta variante da espectroscopia vibracional é especialmente útil no estudo de modos de baixas frequências, sensivelmente no intervalo entre 20 e 2000 cm-1, embora os espectros sejam medidos até 4000 cm-1 ou mais. Além disso, é bastante sensível a modos vibracionais em que os isótopos 1H do hidrogénio (a forma abundante deste elemento) estão envolvidos, por estes possuírem uma elevada secção eficaz de colisão. A FIGURA 1 evidencia a variação das secções eficazes para a interação átomo neutrão para alguns elementos da Tabela Periódica e a comparação com a secção eficaz equivalente para raios-X. Conforme mostra a FIGURA 1, as secções eficazes variam não só entre elementos, mas também entre isótopos de um mesmo elemento.


FIGURA 1. Secções eficazes para a interação com neutrões de alguns elementos da Tabela Periódica (D = 2H) e comparação com as homólogas para raios-X.

Neutrões são entidades subatómicas com características únicas para o estudo de deslocamentos atómicos na matéria condensada, sendo partículas não carregadas, de massa 1.009 u.m.a. (1.675 x 10-27 kg) contendo, no entanto, um momento magnético. Como os núcleos atómicos representam apenas cerca de 1/1000 do diâmetro atómico, tal significa que os neutrões interagem fracamente com a matéria e são extremamente penetrantes. A difusão de neutrões só pode ser descrita recorrendo à mecânica quântica, exibindo os neutrões propriedades ondulatórias e corpusculares. As propriedades ondulatórias servem para a seleção de energias, enquanto que as corpusculares permitem descrever o processo de difusão. A diferença mais marcante entre a espectroscopia de neutrões e a de Raman, é que devido ao facto de os neutrões apresentarem massa, resulta que o processo de difusão é acompanhado de transferências de energia (\(E\), \(cm^{-1}\)) e de momento (\(Q\), \(Å^{-1}\)), respetivamente, dadas pelas expressões


\(E_T=E_f-E_i\)            (1)


e

\(Q=k_f-k_i\), em que \(k\equiv \frac{2\pi}{\lambda}\)            (2)


em que os índices \(i\) e \(f\) representam os estados inicial e final, \(k\) o vetor de onda e \(λ\) o comprimento de onda do neutrão, estando o processo de difusão inelástica representado na FIGURA 2


FIGURA 2. Esquema do processo de difusão inelástica em que os neutrões sofrem perda (A) ou ganho (B) de energia.

De notar que o momento dos neutrões difundidos, descrito pelos vetores de onda \(k_i\) e \(k_f\), difere em módulo e direção, o que define um processo inelástico.

A espectroscopia Raman é também um processo inelástico e como tal este esquema é igualmente aplicável. A diferença reside na fonte utilizada para provocar a excitação, pois no caso da espectroscopia de Raman são utilizados fotões provenientes de um laser. Devido ao facto de a interação ser feita com fotões, cujo \(Q\) é muito pequeno, a espectroscopia de Raman está sujeita a regras de seleção em que apenas se observam transições com vetor de onda nulo. Em contraste, na espectroscopia INS todos os modos são ativos para qualquer vetor de onda, não estando por isso sujeita a regras de seleção.

Como \(Q\) e \(E\) estão ambos acessíveis, tal faz da espectroscopia INS uma forma de espectroscopia intrinsecamente bidimensional, podendo ser coerente ou incoerente. O espectro de INS é sempre uma mistura de ambas as componentes, estando dependente da relação das secções eficazes de difusão coerente e incoerente dos núcleos difusores.

No entanto na espectroscopia INS a difusão relevante é a incoerente. Neste caso, a intensidade da banda i do espectro de INS é dada por


\(S(Q,E_i)\approx\frac{1}{3}Q^2\cdot\sigma_n^{inc}\cdot exp(-\gamma\cdot Q^2)\cdot ∑_n \ ^nU_i^2\)            (3)


onde \(\sigma_n^{inc}\) é a secção eficaz incoerente do átomo e \(γ\) é uma média do quadrado da amplitude média dos movimentos dos átomos. O termo exponencial é o fator de Debye-Waler, \(^nU_i^2\), definido como o quadrado do deslocamento médio do átomo \(n\) no modo \(i\), sendo a sua magnitude determinada pelo movimento térmico da molécula. Este termo pode ser reduzido através de arrefecimento, razão pela qual os espectros de INS são geralmente medidos a temperaturas abaixo de 30 K. Em moléculas que contêm átomos de hidrogénio, a difusão é dominada pela difusão daqueles núcleos, pois o átomo de hidrogénio (isótopo 1H) tem uma enorme secção eficaz incoerente (FIGURA 1), ao contrário da maioria dos restantes elementos, que apresentam uma pequena secção eficaz incoerente (embora apresentem uma maior secção eficaz coerente).

Para a obtenção de espectros de INS é necessário um requisito essencial – uma fonte de neutrões. Para os gerar, podem utilizar-se dois métodos: a fissão de 235U num reator nuclear ou um processo de cascata. Este último processo envolve a aceleração de um feixe de protões até perto da velocidade da luz, provocando em seguida o impacto num alvo constituído por um metal pesado e denso, geralmente urânio empobrecido, tungsténio ou tântalo. Os átomos alvo absorvem os protões gerando núcleos altamente excitados, que decaem em parte por evaporação de neutrões. Se os alvos forem de urânio, este sofre fissão aumentando assim o rendimento de neutrões produzidos. Enquanto que num reator cada fissão produz um neutrão, sendo uma fonte contínua, num processo de cascata em que há absorção de protões, formam-se cerca de 30 neutrões por cada protão absorvido, sendo um processo pulsado. Neste último processo, como os neutrões são produzidos por pulsos, significa que são usadas técnicas de “tempo-de-voo”. Como a massa \(m\), do neutrão e as distâncias, \(d\), de voo são conhecidas, então num processo de difusão inelástica o tempo de voo total, \(T\), é determinado pela soma dos tempos de voo incidente (antes da difusão) e final (após a difusão), de acordo com a expressão


\( T=t_i+t_f=\left(\frac{d_i}{\sqrt{^m⁄_{2\cdot E_i}}}\right)+\left(\frac{d_f}{\sqrt{^m⁄_{2\cdot E_f}}}\right)\)            (4)


sendo então necessário conhecer a distância entre a fonte e a amostra, \(d_i\) , a distância entre a amostra e o detetor, \(d_f\) , e ainda uma das energias incidente, \(E_i\) , ou final, \(E_f\) , bem como o tempo total de voo, \(T\). O espectro de INS é a representação gráfica das contagens de neutrões obtidas nos detetores em função da diferença de energias \(E_f - E_i\) . Os instrumentos que fixam a energia incidente são denominados como instrumentos de geometria direta e os que fixam a energia final são conhecidos como instrumentos de geometria indireta.

Este tipo de espectroscopia não está, por razões óbvias, disponível em laboratórios comuns. A utilização de neutrões apenas pode ser realizada em grandes instalações centrais como o Institut Laue-Langevin em Grenoble, França, que produz neutrões num reator, e o ISIS no Rutherford Appleton Laboratory (RAL) em Chilton no Reino Unido, que usa uma fonte pulsada.

O facto de os elementos químicos (e mesmo entre isótopos do mesmo elemento) apresentarem diferentes secções eficazes entre si é uma vantagem, permitindo variar o contraste e, com isso suprimir/evidenciar seletivamente determinados sinais. A título de exemplo considere-se o caso do tolueno. O espectro de INS da molécula “normal” em que todos os átomos de hidrogénio são isótopos 1H, está representado na FIGURA 3.

O tolueno pode ser deuterado (isótopos 2H) seletivamente no anel aromático com a substituição de 5 átomos de hidrogénio. Ambos os espectros mostram claramente diferentes perfis globais, permitindo associar determinadas bandas observadas às diferentes partes da molécula. No caso do composto deuterado sobressaem as bandas associadas às vibrações dos grupos metilo. Esta vantagem permite um estudo mais facilitado dos modos vibracionais em moléculas complexas. Na FIGURA 3, é ainda mostrada um representação pictórica de como as moléculas são “vistas” pelos neutrões evidenciando a grande secção eficaz de colisão dos átomos de 1H comparativamente à dos átomos de 2H ou de C.


FIGURA 3. Espectros (A) de INS do tolueno e tolueno-D5. É também mostrada uma representação pictórica de como as moléculas de tolueno (B) e tolueno-D5 (C) são “vistas” pelos neutrões, baseada na magnitude das secções eficazes de colisão.

O ISIS no Rutherford Appleton Laboratory (RAL) mantém uma base de dados com espectros de INS que é mantida atualizada e de livre acesso.