Impacto do ruído de barcos em peixes
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- * DBA/ cE3c/ Universidade de Lisboa
- ɫ MARE/ ISPA - Instituto Universitário/ DBA/ Universidade de Lisboa
Referência Fonseca, P. J., Amorim, M. C. P., (2019) Impacto do ruído de barcos em peixes, Rev. Ciência Elem., V7(2):019
DOI http://doi.org/10.24927/rce2019.019
Palavras-chave ruído; peixes; animais; ambiente;
Resumo
Alterações significativas do ambiente em que os animais vivem, e para o qual se adaptaram por seleção natural ao longo do processo evolutivo, têm frequentemente impacto ao nível da fisiologia e do comportamento das espécies. Estas modificações do ambiente podem ser provocadas pela atividade humana (poluição antropogénica), através de descargas de efluentes nas águas ou emissão de gases para a atmosfera, ou por processos naturais, como a introdução nos ecossistemas de materiais associados a vulcanismo.
Enquanto os efeitos de poluição provocada por produtos químicos tóxicos são imediatamente reconhecidos pelo impacto agudo que causam nas espécies, outras alterações ao ambiente causam alterações mais subtis nos organismos e, por isso, passam mais facilmente despercebidas. Os efeitos nos organismos vivos causados pelo ruído gerado pela atividade humana, hoje considerada uma forma de poluição global legislada por leis nacionais e internacionais, enquadram-se nesta última categoria. Na realidade, a exposição prolongada a ruído pode causar alterações consideráveis nos animais, incluindo na espécie humana. Estas alterações podem ser fisiológicas, devidas a modificações nas hormonas responsáveis pelas reações dos animais ao meio, como seja o cortisol, conhecido como a hormona do stress, e à adrenalina. O ruído pode também provocar alterações comportamentais, por exemplo, dificultando a comunicação acústica entre animais. Ao mascarar sinais acústicos utilizados por muitas espécies para comunicarem entre si, o ruído pode dificultar a localização de parceiros sexuais e, dessa forma, interferir na reprodução, ou dificultar a deteção de ruídos provocados durante a aproximação de predadores, tornando a presa mais vulnerável.
Enquanto é fácil nos apercebermos dos efeitos nocivos do som em meio aéreo, por exemplo, ruídos gerados por maquinaria numa fábrica, por tráfego automóvel intenso ou por música excessivamente alta durante a noite, é muito menos evidente para nós o impacto que o ruído que geramos pode ter em animais aquáticos, como por exemplo, os peixes ou os cetáceos. Com efeito, muitas espécies de peixes comunicam entre si através de sons.
A nossa investigação sobre comunicação acústica no xarroco (Halobatrachus didactylus) mostrou que os machos produzem sons de elevada amplitude (FIGURA 1A) que atraem fêmeas recetivas para depositarem os seus ovos nos ninhos dos machos. Os sons dos machos para atração sexual e provavelmente marcação de território, conhecidos como sirenes (FIGURA 1A), podem ser ouvidos por uma fêmea a cerca de 10-14 m (com uma altura de água de 2 m). Contudo, quando adicionamos ruído de barcos, simulando a passagem de barcos de passageiros a cerca de 50 m ou de outros barcos com motor fora-de-bordo a distâncias menores, a distância de deteção do som do macho pela fêmea reduz-se para pouco mais de metade ou mesmo 1/3. Para além de dificultar a formação de pares sexuais, resultados preliminares apontam para alterações fisiológicas nos embriões sujeitos a ruído de barcos e um aumento de mortalidade.
No caso da corvina (Argyrosomus regius), os peixes produzem sons (FIGURA 1B) em cardumes, formando coros durante o período reprodutor e que são provavelmente importantes na sincronização da emissão de gâmetas pelos dois sexos. Neste caso, o som da passagem dos barcos parece dificultar menos a deteção pelos peixes dos sons da sua espécie utilizados nos coros (“long grunts”, FIGURA 1B). Contudo, o impacto da passagem de barcos de passageiros é assinalado por uma redução na intensidade dos coros, que poderá ser devida quer a um menor número de peixes a emitir sons quer a uma deslocação do cardume para mais longe dos hidrofones (i.e. microfones subaquáticos) que se encontram fixos ao fundo. A razão da redução da amplitude do som ainda está por esclarecer, mas esta observação mostra a existência clara de uma perturbação no comportamento das corvinas.
Noutras espécies ainda, como nalguns dos pequenos góbios de areia que encontramos nas nossas praias (a espécie estudada foi o góbio pintado, Pomatoschistus pictus), os machos cortejam as fêmeas utilizando uma “dança” composta por movimentos rápidos e outras exibições acompanhados com sons (FIGURA 1C) para atraírem a fêmea ao seu ninho para aí colocarem os seus ovos. Nesta espécie de góbios, o som produzido pelos machos durante a corte parece ser um elemento fundamental na decisão da fêmea na escolha de pareceiro sexual. Com efeito, quando o ruído ambiente é baixo, as fêmeas reproduzem-se maioritariamente com machos que produzem muitos sons conhecidos como “drums” (FIGURA 1C). Contudo, quando o ruído é artificialmente aumentado, a probabilidade de machos que produzem poucos “drums” se reproduzirem aumenta, o que mostra uma alteração no processo de seleção sexual de parceiro por parte das fêmeas.
Devemos, pois, estar atentos aos possíveis impactos que as nossas atividades possam causar no meio natural, mesmo aos mais subtis e difíceis de avaliar, como é o impacto do ruído antropogénico no meio aquático.
Agradecimentos
O estudo do impacto do ruído no xarroco e na corvina estão a ser financiados pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia, Portugal (projeto PTDC/BIA-BMA/30517/2017 e PTDC/BIA-BMA/29662/2017).
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