Deambulando pela Austrália Ocidental II
Do Paleozoico do Rio Murchison à mítica Shark Bay
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- MARE — Departamento de Ciências da Terra, Faculdade de Ciências e Tecnologia, Universidade de Coimbra
Referência Duarte, L.V., (2019) Deambulando pela Austrália Ocidental II, Rev. Ciência Elem., V7(3):056
DOI http://doi.org/10.24927/rce2019.056
Palavras-chave Geologia; Estromatólitos; Nature's Window; Hamelin Pool; Austrália
Resumo
O sonho convertido em realidade continua por solo australiano e ainda na vizinhança do Oceano Índico. Convém lembrar que a Austrália Ocidental é cerca de um terço de todo o país, sendo só este Estado quase trinta vezes maior que o território português. A ideia é chegar a Shark Bay, por terras cada vez mais ”hostis”, mesmo as que são habitadas. Deixámos o Lago rosa de Hutt, em direção a Norte, fazendo a aproximação a Kalbarri e ao canal fluvial que aí desagua, o rio Murchison. O plano é observar as falésias paleozoicas que bordejam a zona costeira e o rio mencionado, que emprestam o cenário ao Kalbarri National Park (Figuras 1 e 2). Aqui, e pelos antecedentes de Cervantes e do lago Thetis, do capítulo anterior, não existem só coincidências. O rio, que irá ser o motivo principal das nossas próximas observações e contemplações, transporta mesmo o nome de Sir Roderick Murchison. O célebre geólogo britânico do século XIX, antigo presidente da prestigiadíssima Sociedade Geológica de Londres, uma referência no estudo da estratigrafia do Paleozoico, e ao qual está associada a definição do Período Silúrico1. Estávamos longe deste upgrade, que não constava do nosso roteiro inicial, embora o nome do rio suscitasse uma curiosidade acrescida, tendo em conta o enquadramento. A geologia, e esta parece ser uma constatação óbvia, é mesmo importante na sociedade australiana. E é levada a sério, muito para além do parque natural que lhe é inteiramente dedicado.
A criação do Parque Nacional Kalbarri deve-se às características litológicas e estratigráficas da unidade Tumblagooda Sandstone e, acima de tudo, aos efeitos geomorfológicos desta unidade tabular - disposta de modo sub-horizontal -, quando recortada pela forte sinuosidade do rio Murchison. O que confere à paisagem cenários simplesmente arrebatadores, a começar pelos seus meandros e gargantas (Figura 2). Bem como pelo Nature’s Window, um dos lugares mais emblemáticos de todo o parque (Figura 1). A Formação de Tumblagooda é composta por uma sucessão tão espessa que não existe consenso quanto ao seu efetivo valor, de estratos de rochas siliciclásticas, mais ou menos grosseiras.
De cor dominantemente avermelhada, esta unidade mostra um conjunto de fácies tipicamente de origem fluvial, localmente com evidências de influência eólica e marinha2, 3. A abundância de estruturas sedimentares é marcante em toda a sucessão, entre marcas de ondulação (ripple marks), estratificação oblíqua, acunhamentos e icnofósseis (Figura 3). Considerando os tipos de fácies siliciclásticas de origem continental, não existem quaisquer tipos de fósseis capazes de datar a unidade, com elevada fiabilidade. A bibliografia disponível, que não é assim tão abundante, subdivide-se entre os períodos Ordovícico e o Silúrico4. Significa que há ainda muito por investigar, a começar pela espessura real desta unidade.
Fica claro que o percurso ao longo da porção terminal do rio Murchison, o segundo maior de toda a Austrália Ocidental, está cheio de boas surpresas. Desde logo, a começar pela origem do próprio nome. Mas as menções a motivos geológicos não ficam por aqui. Mais para jusante do rio, ou seja, para oriente, já na North West Coastal Way, que nos levará até Shark Bay, deparamo-nos com a Galena Bridge! Sim, o mesmo que “galena” em português. Ou seja, o de um nome de um mineral, um sulfureto de chumbo, de particular importância económica! Sendo um lugar bem referenciado em qualquer mapa da região, a Galena Bridge não tem um único habitante, servindo apenas de área de repouso e de camping para quem se aventura a cruzar o “deserto” da cumprida e inóspita North West Coastal Way. Mas não foi preciso muito para perceber que a zona está preenchida de antigas minas de chumbo e também de cobre. Ficou a lembrança geológica agora fixada no Google Maps. No entanto, um “pouco” antes de se chegar a Shark Bay, um outro lugar de culto, agora gastronómico. Talvez o único em mais de uma centena de quilómetros, a estação de serviço de Billabong. Com claras semelhanças às imagens fílmicas que temos dos Estados Unidos
profundo, onde não faltam os tradicionais trucks. Paragem obrigatória, já que a efeméride é digna de vivência e do competente registo fotográfico (Figura 4A).
Finalmente, a chegada a Shark Bay! Facilmente identificada no mapa mundo, com o necessário efeito de zoom, uma espécie de península “bifurcada”, através das duas reentrâncias principais de areia, que se desenvolvem paralelamente à costa, e que delimitam duas massas de água, pouco profundas e “atufadas” de sal. Numa área que parece pequena, mas que é imensa. É uma questão de escala. Um lugar que à escala global levou a chancela da UNESCO como Património Mundial, tal como é lembrado logo à entrada (Figura 4B). Entre os motivos geológicos principais, sobressaem a legendária Hamelin Pool e a infinita e excessiva Shell Beach! Hamelin Pool é só o lugar mais cobiçado do mundo, relativamente a estromatólitos atuais (Figuras 5 e 6).
Do mesmo tipo – existem compêndios sobre as diversas tipologias destas estruturas - dos observados no Lago Tethis, mas agora confinados ao meio marinho. Na interface entre os ambientes intermareal e submareal, o trabalho das cianobactérias na construção das cúpulas carbonatadas é favorecido pela hipersalinidade da água do mar, que condiciona igualmente a ocorrência de predadores, ajudando assim na preservação destas estruturas biosedimentares5, 6, 7. Há que enfatizar que estes estromatólitos atuais são os que melhor exemplificam os primeiros registos em rocha da vida na Terra!
Segundo a literatura especializada recente, os estromatólitos mais antigos remontam aos 3,7 mil milhões de anos, em rochas metamórficas da Gronelândia8, o que é assombroso! Cerca de 220 milhões de anos - quase a duração conjunta do Mesozoico e Cenozoico juntos - mais antigos do que os registos do cratão Pilbara (Formação de Dresser9, 10), anteriormente e unanimemente admitidos como tal – há que dizer, e as coincidências continuam a subsistir, estes registos observam-se na mesma Austrália Ocidental por onde andamos, embora a algumas centenas de quilómetros de Shark Bay. Uma descoberta, a da Gronelândia, que tem um significado até aqui muito difícil de alcançar e de admitir e que permite concluir que 900 milhões de anos depois da sua origem já existiria vida no Planeta Terra! Uma vida que terá começado do modo mais simples, através de organismos unicelulares, e que com o (muito) tempo, através da fotossíntese, ajudaram a converter a atmosfera redutora numa ambiência oxigenada. Um processo que terá levado centenas de milhões de anos, conforme atestam as estruturas microbianas fossilizadas durante os longos Arcaico e Proterozoico, como os estromatólitos da serra da Leba11.
E que têm no modelo deposicional de Hamelin Pool, sempre com as devidas diferenças na aplicação do Uniformitarismo, um muito plausível análogo.
De entre todos os locais percorridos em busca do conhecimento geológico, in situ, os estromatólitos de Shark Bay estarão, inevitavelmente, em lugar cimeiro. Por tudo o que as palavras já ditas significam e representam. Um registo nos confins do planeta, aliás, como convém. Mas a pequeníssima civilização que subsiste junto aos estromatólitos, e à semelhança de Billabong, merece igualmente o seu destaque pela originalidade. A antiga estação de telégrafo existente neste lugar tão remoto (e como se compreende), é exemplo disso. Assim como as pequenas construções feitas a partir de calcário conquífero, bem selecionado (Figura 7A), mais frequentes na cidade de Denham, que fica no coração de Shark Bay (Figura 7B). Estes calcários, aqui cimentados por força do carbonato de cálcio que ajudou a consolidar as rochas e, com isso, a erguer construções, serve de introito ao último sítio geológico selecionado para este capítulo: a Shell Beach (Figura 7C). Uma praia cuja originalidade é o facto, e tal como o nome sugere, de ser integralmente composta por pequenas conchas de molusco bivalve, da espécie Fragum erugatum (Figura 7D)12. Esta acumulação de conchas estende-se lateralmente por vários quilómetros e em profundidade (alguns metros), sendo muito difícil de estimar a sua expressão quantitativa. Certamente, serão muitos milhões de milhões de conchas, algo inimaginável, sendo a sua abundância explicada, desde logo, pela capacidade de este molusco suportar a grande salinidade existente no ambiente marinho. Os sedimentos conquíferos que se foram soterrando pelo efeito da acumulação de sedimentos mais recentes foram litificando (devido à cimentação acima referida) e terão originado as rochas compactas, as mesmas usadas na construção civil. O mais interessante de tudo é que este processo de génese do calcário conquífero consolidado terá sido, à escala geológica, extremamente rápido, tendo ocupado apenas uma parte (a superior) do Holocénico. Ou seja, não mais do que uns poucos milhares de anos, constituindo mais um ótimo exemplo sobre a compreensão do processo deposicional em ambiente carbonatado, e de uma parte do chamado ciclo sedimentar. Sedimentologia pura e ao mais alto nível!
Em Shark Bay, as imagens conjugadas com as palavras, são de facto a demonstração de um lugar incomum e de exceção. No lookout de Eagle Bluff, já perto de Denham, foi possível observar e constatar que a Formação quaternária de Tamala persiste no horizonte, depois de muitas centenas de quilómetros (Figura 8A). Neste local, tentamos a sorte de avistar alguma fauna marinha, como os tubarões que emprestam o nome à região. Missão gorada, até porque o tempo destinado à contemplação não terá sido o desejável. Em compensação, em plena estrada, em vez do canguru, ansiado ao longo da rodagem dos cerca de 1000 quilómetros, a objetiva fotográfica encantou-se com um belo exemplar de equidna australiano, também conhecido como tamanduá espinhoso, um dos símbolos da fauna australiana (Figura 8B). De tal forma que a imagem do mamífero consta na moeda nacional de ‘5 centavos’. As surpresas ficam mesmo por aqui. Seguramente, para mais tarde recordar, já que há que fazer o caminho de volta a Perth (…). E com paragem obrigatória em Billabong.
Nota: este artigo é procedido pelo artigo da referência 13.13
Referências
- 1 Davidson, J.P., Patrons of paleontology: how government support shaped a science, Indiana University Press, Series: Life of the past. ISBN: 978-0-253-02571-5. 2017.
- 2 Kettanah, Y.A. et al. Provenance of the Ordovician–lower Silurian Tumblagooda Sandstone, Western Australia. Australian Journal of Earth Sciencies, 62 (7), 817-830. 2015
- 3 McNamara, K.J. Early Paleozoic colonisation of the land: evidence from the Tumblagooda Sandstone, Southern Carnarvon Basin, Western Australia. WA Science—Journal of the Royal Society of Western Australia, 97, 111–132. 2014
- 4 Schmidt P. W. & Hamilton P. J. Palaeomagnetism and the age of the Tumblagooda Sandstone, Western Australia. . Australian Journal of Earth Sciences, 37, 381–385. 1990
- 5 Reid, R. P. et al., Shark Bay Stromatolites: Microfabrics and Reinterpretation of Origin, Facies, 49, 299-324. 2003
- 6 Jahnert, R. J. & Collins, L.B. Characteristics, distribution and morphogenesis of subtidal microbial systems in Shark Bay, Australia. Marine Geology, 303–306, 115–136. 2012
- 7 Suosaari, E. P. et al. New multi-scale perspectives on the stromatolites of Shark Bay, Western Australia. Scientific Reports, 6:20557. 2016. DOI: 10.1038/srep20557
- 8 Nutman, A.P. et al. Rapid emergence of life shown by discovery of 3,700-million-year-old microbial structures. Nature, 537, 535–538. 2016
- 9 Allwood, A. C. et al. 3.43 billion-year-old stromatolite reef from the Pilbara Craton of Western Australia: Ecosystem-scale insights to early life on Earth. Precambrian Research, 158, 198-227. 2007
- 10 Djokic, T. et al. Earliest signs of life on land preserved in ca. 3.5 Ga hot spring deposits. Nature Communications, 8, 15263. 2017
- 11 Duarte, L.V. et al. Do Proterozoico da Serra da Leba (Planalto da Humpata) ao Cretácico da Bacia de Benguela (Angola). A geologia de lugares com elevado valor paisagístico. Comunicações Geológicas, 101, Especial III, 1255-1259. 2014
- 12 Berry, P.F. & Playford, P. E. Biology of modern Fragum erugatum (Mollusca, Bivalvia, Cardiidae) in relation to deposition of the Hamelin Coquina, Shark Bay, Western Australia. Marine and Freshwater Research, 48, 415-420. 1997
- 13 Duarte et al. Deambulando pela Austrália Ocidental. Curiosidades do Quaternário da região de Perth. Rev. Ciência Elem., V7(03):053. 2019
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