Ciência e Crime
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- Faculdade de Ciências da Universidade do Porto
Referência Magalhães, A.L., (2019) Ciência e Crime, Rev. Ciência Elem., V7(4):065
DOI http://doi.org/10.24927/rce2019.065
Palavras-chave Verdade, Justiça, doping, desporto, veneno, homicídio
Resumo
A Justiça e a Ciência partilham um desígnio comum que é a busca da Verdade. O conceito de Verdade levar-nos-ia para uma discussão filosófica que extravasa o âmbito desta revista, mas para estas duas áreas da atividade humana a Verdade é interpretada como a descrição de factos construída sobre princípios e vias metodológicas cuja coerência é irrefutável. No entanto, a aplicação dessa verdade, uma vez apurada, tem propósitos distintos. Assim, a Justiça utiliza-a para punir culpados ou absolver inocentes, enquanto a Ciência dela necessita para prever e controlar eventos e também para satisfazer a nossa insaciável vontade de conhecimento. A racionalidade do método científico moderno e os benefícios societais das suas aplicações tecnológicas foram elevando a Ciência a um estatuto de Lei Universal ao longo dos últimos séculos. Não é pois de estranhar que muitas outras áreas de intervenção humana instrumentalizem a Ciência, honesta ou desonestamente, para aumentar a eficácia do discurso como acontece muitas vezes com o poder político e o judicial.
Um dos exemplos mais paradigmáticos e antigos do uso da Ciência ao serviço da Justiça é o de Arquimedes de Siracusa (287 a.C.-212 a.C.), o caso da coroa do Rei. Mesmo que muitos dos factos estejam já envoltos numa aura de lenda, relata-se que o Rei Hierão II teria encomendado uma coroa votiva em ouro puro a um artesão local. Desconfiando da pureza do material utilizado, o monarca pediu auxílio ao reputado cientista para deslindar o caso. Reza também a lenda que, enquanto mergulhava na sua banheira e sentia o impulso que lhe daria fama, Arquimedes concebeu um método para responder ao desafio sem necessidade de danificar a coroa. Perante a força do argumento científico o rei não teve dúvidas em condenar o desonesto artífice.
Desde o uso oficial de impressões digitais na China do séc. VIII para revelar a autenticidade de documentos e esculturas de argila, até às atuais técnicas de análise de DNA que revolucionaram o campo da ciência forense, variadas ferramentas de base científica foram sendo adicionadas ao arsenal do poder judicial no combate ao crime. Porém, o primeiro exemplo da aceitação de um relatório científico como elemento de prova em tribunal ocorreu na Inglaterra, em 1832, quando o químico James Marsh (1794-1846) desenvolveu um método que lhe permitiu detetar arsénio nas paredes do estômago de uma vítima de envenenamento, tendo sido desse modo possível apresentar uma prova pericial inequívoca da causa de morte e chegar à identificação do criminoso.
Por cá, em finais do séc. XIX, a Ciência dava os seus primeiros passos na área da Justiça com o famoso Crime da Rua das Flores. Vicente Urbino de Freitas, abastado portuense e médico formado em Coimbra e professor da Escola Médico-Cirúrgica do Porto, fora acusado de envenenar o cunhado e um jovem sobrinho por motivos financeiros e patrimoniais. Uma equipa do Laboratório Químico Municipal do Porto, que incluía o insuspeito António Joaquim Ferreira da Silva, lente da Escola Politécnica do Porto e fundador da Sociedade Portuguesa de Química, foi chamada a efetuar perícias aos corpos das vítimas. O relatório forense divulgado em outubro de 1890, revelava que as vísceras e a urina da criança apresentavam níveis de morfina, delfinina e narceína suficientemente elevados para causar a morte. Porém, a defesa do réu contestou o relatório e requereu uma nova perícia a cargo de investigadores ligados à Universidade de Coimbra. Assim, numa jogada inteligente, a defesa conseguiu passar a polémica para a esfera das Instituições e o julgamento prolongou-se por mais de 3 anos. Finalmente, em 1 de Dezembro de 1893 o veredicto foi proferido e Vicente de Freitas foi condenado a 8 anos de prisão e 20 de degredo. Apesar do contributo da Ciência, a Verdade deste caso permaneceu frágil ao longo dos tempos, havendo ainda hoje quem considere o réu inocente1.
A Verdade é uma construção humana que ganha força com o argumento científico; não é pois de estranhar que ele seja muitas vezes manipulado e usado em narrativas com propósitos distintos. De facto, a História é fértil em exemplos de utilização da Ciência pelos poderes instituídos. Por vezes, é difícil avaliar se a Ciência está ao serviço do Bem ou do Mal, se é legal ou criminosa. Quando há interesses que se sobrepõem à Lei e Ética vigentes, a Ciência passa a ser usada de modo clandestino; é o fenómeno do Breaking Bad. Lançada em 2008, a série televisiva norte-americana que popularizou esta expressão conta a história de Walter White, um pacato professor de química do ensino secundário que, devido a dramáticos acontecimentos na sua vida pessoal, decide mergulhar no sub-mundo da droga onde obtém sucesso empresarial devido aos seus vastos conhecimentos de química.
De igual modo, sempre que se assiste a uma evolução de princípios éticos e legais há práticas científicas que deixam de ser toleradas. Inúmeros exemplos poderiam ser dados de práticas científicas que tendo sido legais no passado o deixaram de ser, ou que são admitidas em certos regimes e noutros não.
Um dos casos mais antigos e interessantes desta dualidade surge na Roma do séc. I onde o assassinato por envenenamento atingiu elevados níveis de sofisticação.
De entre os especialistas destacava-se Locusta que foi acusada de vários crimes e condenada à morte no tempo de Cláudio. Porém, não tendo sido imediatamente executada, foi contratada pela esposa do próprio imperador, Agripina - a Jovem, para preparar um veneno para o seu marido. Após o sucesso desse empreendimento, o novo imperador Nero, filho de Agripina, requisitou de imediato os serviços de Locusta para eliminar o seu meio-irmão mais novo Britannicus. Nero apreciou tanto a eficácia com que Locusta lhe resolveu esse enorme problema que decidiu anular a sentença capital que sobre ela pendia e promovê-la a sua conselheira para as questões “venenosas”. Mais tarde criou ainda uma escola dedicada ao tema onde Locusta podia transmitir o seu saber aos mais novos e efetuar experiências em animais e até em prisioneiros. Com a morte de Nero a sorte de Locusta tornou a mudar; o novo imperador, Galba, não reconheceu as suas serventias e mandou executá-la.
Um outro campo onde a fronteira da legalidade está continuamente em redefinição e em que a Ciência é usada por duas forças antagónicas que se digladiam é o doping no desporto. Desde os primeiros Jogos Olímpicos da antiguidade, realizados na Grécia em 776 a.C., que a vontade de vencer estimula a procura de novas formas de aumentar o desempenho desportivo quer pela inócua adoção de treinos físicos inovadores e de dietas adequadas quer pela administração de substâncias químicas manipuladas. Aliás, o próprio termo doping deriva provavelmente da palavra holandesa dop que designa um sumo viscoso à base de ópio semelhante ao que os antigos desportistas gregos usariam2. Nos dias de hoje, por um lado há uma contínua pesquisa de novas substâncias que aumentem o desempenho dos atletas e que não sejam detetadas em análises de controlo e, por outro lado, procura-se combater esse movimento desenvolvendo métodos mais eficientes de deteção de substâncias consideradas ilegais. Nas sociedades modernas, o impacto do fenómeno desportivo, a nível social e económico, é de tal maneira elevado que se compreende o envolvimento de vários grupos e dos próprios governos no seu controlo e/ou exploração.
A Agência Mundial Antidoping (WADA - World Anti-Doping Agency) foi fundada em 10 de novembro de 1999 por iniciativa do Comité Olímpico Internacional como reação ao explosivo fenómeno do doping no desporto. Este organismo tem tido como missão monitorizar, regulamentar e combater o uso de substâncias e métodos ilícitos que destroem o espírito do desporto e prejudicam a saúde dos atletas3. No entanto, os interesses organizados do lado oposto travam uma luta furtiva mas feroz para iludir os mecanismos de controlo antidoping também com a ajuda da Ciência. Não é pois de estranhar que a lista das proibições esteja continuamente a ser revista pela WADA. Por exemplo, a pseudoefedrina e a norefedrina foram retiradas da lista de substâncias proibidas em 2003 assim como a cafeína em 2004. Porém, a primeira foi reintroduzida em 2010, mas com o nível máximo permitido de \(25\mu g\cdot ml^{-1}\) em vez do valor anterior de \(25\mu g\cdot ml^{-1}\)4. Neste momento a lista atualizada das proibições decretadas por esta agência contém mais de duzentas substâncias químicas e três métodos de manipulação de amostras, sangue e seus constituintes e ainda modernas técnicas de manipulação genética e/ou celular. Um caso recente ganhou projeção mediática porque envolveu a estrela russa do ténis profissional Maria Sharapova que chegou a ser número 1 do ranking da WTA. Testes antidoping efetuados à atleta no Open da Austrália de 2016 deram resultados positivos para a substância meldonium, introduzida na lista de proibições da WADA em 1 de Janeiro de 2016, e sentenciaram o seu afastamento da modalidade por um período de 2 anos. Sintetizado pelo químico letão Ivars Kalvins em 1970, este fármaco aprovado nas antigas repúblicas soviéticas mas nunca pelas agências americana e europeia, aumenta o desempenho dos atletas e diminui o período de recuperação após esforço físico. O meldonium foi sendo administrado aos atletas com algum secretismo, como aconteceu com Maria Sharapova desde 2006, com a justificação de que protegia a saúde do atleta em muitos aspetos nomeadamente a nível cardíaco, o que sempre foi negado por especialistas ocidentais5.
Porventura, o caso mais paradigmático de investigação e implementação de métodos científicos por parte de um Estado na área do doping desporto é o da antiga República Democrática Alemã. Após a queda do Muro de Berlim, foi possível revelar o sinistro e criminoso projeto de larga escala arquitetado pelos dirigentes socialistas desse antigo estado durante as décadas de 1970 e 1980. O plano resultou no “sucesso desportivo” traduzido em mais de 500 medalhas conquistadas nesse período que serviu os intentos de propaganda de um regime decrépito e totalitário. Muitos dos estudos deram origem a teses de doutoramento em instituições como o Research Institute for Physical Culture and Sports, em Leipzig, e o Central Doping Control Laboratory, em Kreischa, seguindo rigorosas metodologias científicas mas violando princípios básicos de Ética. Estima-se que cerca de 10000 atletas terão entrado neste programa de doping estatal sem o seu próprio consentimento ou dos seus pais. Muitos deles começaram com a tenra idade de 8 anos, sendo administradas substâncias, em particular esteróides androgénicos anabolizantes, que lhes aumentavam a força muscular, a agressividade e o desempenho desportivo. As consequências foram devastadoras para a saúde dos atletas envolvidos, principalmente nos do sexo feminino; depressão, doenças cardíacas, doenças degenerativas ósseas, abuso de drogas e álcool, infertilidade e malformação em fetos são algumas das complicações que muitos vieram a sofrer ao longo da vida6. Recentemente, o governo alemão reconheceu este drama e, em março de 2016, aprovou uma lei para compensar monetariamente essas vítimas.
Estes acontecimentos poderiam levar-nos a pensar que, atualmente, o fenómeno de doping no desporto se encontraria confinado à atuação isolada de pequenos grupos, mas notícias recentes revelaram um outro caso de larga escala na Rússia de Putin. Grigory Mikhailovich Rodchenkov, um químico russo e especialista em substâncias dopantes, nomeado em 2005 diretor do Laboratório antidoping de Moscovo, viu a sua atividade suspensa pela WADA em 2015. Entre 2005 e 2015 desenvolveu e distribuiu substâncias para aumentar o desempenho dos atletas olímpicos russos num programa de larga escala patrocinado pelo governo de Vladimir Putin. Em 2016 decidiu denunciar esse esquema do governo russo, que levou ao afastamento da delegação russa dos Jogos Olímpicos de Verão do Rio de Janeiro - Brasil, em 2016 e dos Jogos de Inverno de Pyeongchang – Coreia do Sul, em 2018 e ainda à perda de várias medalhas atribuídas nos Jogos de Inverno de Sochi - Rússia, em 2014. Encontrando-se neste momento ao abrigo de um programa de proteção de testemunhas nos Estados Unidos da América, após várias mortes “inexplicadas” na estrutura antidoping russa, Rodchenkov concedeu uma entrevista ao jornalista Scott Pelley no programa 60 minutes da CBS News. Quando questionado sobre o seu papel no laboratório antidoping, apanhar atletas dopados ou protegê-los, ele respondeu claramente: “Claro que estando à frente de um laboratório acreditado, teria de reportar 1% a 2% de resultados positivos; mas, por outro lado, tinha de proteger a equipa nacional russa porque o objetivo final era ganhar a todo o custo os campeonatos mundiais e jogos olímpicos (Sochi - Rússia)”7.
Muitos são os exemplos que poderiam ser apresentados para ilustrar as contradições morais da Humanidade ao longo da História. A Ciência exclui-se desses dilemas pois não passa de um instrumento ao serviço dos interesses humanos. Contudo, por se mostrar tão eficaz e poderosa, é e será sempre utilizada como arma pelas duas barricadas no eterno combate entre o Bem e o Mal.
Referências
- 1 MARQUES, N. Crime da Rua das Flores, Jornal Expresso-Revista E, 12-1-2019.
- 2 ZIMMER, B. The Straight Dope on “Doping, in Word Routes exploring the Pathways of Our Lexicon, 19 August 2013.
- 3 World Anti-Dopin Agency.
- 4 STRANO, S. & BOTRÈ, F. “Prevalence of illicit drug use among the Italian athlete population with special attention on drugs of abuse: A -10 year review”. J. Sports Sci, 29 (5): 471-6. 2011.
- 5 STUART, M. et al. Meldonium use by athletes at the Baku 2015 European Games, British Journal of Sports Medicine, 50(11), 694-698. 2016.
- 6 FRANKE, W. & BERENDONK, B. Hormonal doping and androgenization of athletes: a secret program of the German Democratic Republic government, Clinical Chemistry, 43(7), 1262–1279. 1997
- 7 PELLEY, S. The Russian doping mastermind on the run, CBS News. 11 Feb 2018.
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