Em 1859, Kirchhoff verificou que as riscas D, escuras, do espectro solar, ainda se tornam mais escuras por interposição de uma chama de vapores de sódio. Ficava, assim, evidente que, se o sódio, no laboratório, absorve energia da radiação solar, então deveria, também, haver sódio na atmosfera do Sol para originar aquelas riscas escuras, as quais já denotam existir absorção destas frequências. Esta observação por Kirchhoff marca o início da Astrofísica, mas, mais importante para o que se segue, tê-lo-á levado a inquirir sobre a natureza e caracterização da radiação originada por um corpo a uma certa temperatura. Estas questões tornavam-se, ainda, mais pertinentes quando havia sido Kirchhoff que, pouco tempo antes, havia verificado experimentalmente que as riscas escuras (absorção) do sódio coincidiam com as brilhantes riscas amarelas do seu espectro de emissão.

Kirchhoff imaginou uma cavidade, onde se fez o vazio, rodeada por paredes que refletem totalmente qualquer radiação que nelas incida. No interior da cavidade, coloque-se um corpo qualquer, a uma certa temperatura inicial. Ao fim de algum tempo, atingir-se-á o equilíbrio termodinâmico, ficando o corpo com uma temperatura final inferior à inicial. O corpo arrefece e perde, portanto, energia. Para onde foi essa energia?

Nada mais havendo no interior da cavidade, é evidente que a energia perdida pelo corpo aparecerá como radiação e, não podendo esta sair através das paredes (totalmente refletoras), então esta mesma radiação estará em equilíbrio térmico com o corpo que a originou. Como se caracteriza esta radiação? Kirchhoff introduziu vários conceitos fundamentais que auxiliam esta caracterização – o leitor notará que, em 1860, ainda não se sabia que o campo de radiação é um campo electromagnético. Só em 1864, James Clerk Maxwell estabeleceria as equações básicas deste campo, que levam o seu nome, e só no ano seguinte mostraria que a luz é radiação electromagnética. Esta observações servem para melhor apreciarmos a intuição física de Kirchhoff – os conceitos que introduziu viriam a receber uma interpretação electromagnética precisa, mas a sua utilidade e generalidade permanecem válidas. A este facto não será estranho que Kirchhoff se tenha socorrido sistematicamente da Termodinâmica a qual, em 1860, estava, praticamente, formulada na sua forma atual.


FIGURA 1. Gustav Robert Kirchhoff (1824-1887) (fonte: Wikipedia).

Voltemos ao nosso sistema constituído pelo corpo e pela radiação em equilíbrio térmico. Admitamos que o corpo é homogéneo e isotrópico (não distingue direções); assim, é de esperar que também a radiação seja isotrópica. Kirchhoff vai caracterizar o estado da radiação – ele considera, em analogia com o que já se sabia para a luz visível, que a radiação é constituída por ondas (não se sabia, ainda, de quê!) com várias frequências \(\left ( \nu \right )\), que se propagam com a velocidade da luz no vazio \((c)\). Introduz, então, um conceito fundamental- –a intensidade espectral \(\left ( I_{\nu } \right )\), \(i.e.\), \(I_{\nu }d\nu \) é a energia que, na unidade de tempo, atravessa a unidade de área (colocada perpendicularmente à propagação da radiação) e transportada por ondas de frequências no intervalo \(\left [ \nu ,\nu +d\nu \right ]\). Em termos simples, é a intensidade de um raio luminoso com uma dada cor.

O equilíbrio térmico do sistema vai ter uma consequência importante: não podendo haver qualquer transporte de energia e comportando-se, no vácuo, as radiações de frequências diferentes de forma independente, então \(I_{\nu }\) não pode depender nem da direção de propagação (isotropia) nem do ponto, no vácuo, onde é definida (homogeneidade). Consideremos, agora, um elemento de área na superfície do corpo: que se passa, neste elemento, durante um curto intervalo de tempo? Seguramente, há incidência de radiação, a qual é parcialmente refletida e parcialmente absorvida. Designando por \(a_{\nu }\) a fração de energia absorvida, então \(a_{\nu }I_{\nu }d\nu \) é a energia absorvida pela unidade de área, na unidade de tempo, para radiações com frequências no intervalo atrás definido. A quantidade \(a_{\nu }\), designada por absorvidade (ou poder absorvente) da superfície, depende da natureza do corpo e da forma e tipo de superfície – mas, por definição, é sempre um número entre 0 e 1.

Mas a superfície também radia e definimos o seu poder emissivo \(\left ( p_{\nu } \right ):p_{\nu }d\nu \) é a energia emitida por unidade de área e por unidade de tempo, transportada pelas radiações com frequência no intervalo referido. No equilíbrio, cada elemento de área absorve, por segundo, tanta energia quanto a que emite, pelo que:


\(a_{\nu }I_{\nu }d\nu =p_{\nu }d\nu \rightarrow I_{\nu }=\frac{p_{\nu }}{a_{\nu }}\)


Esta é a lei de Kirchhoff e é tal a sua importância que vale a pena analisarmos um pouco melhor alguns detalhes mais relevantes.

Em primeiro lugar, o leitor sabe que a absorção de radiação não é um fenómeno de superfície – ela ocorre em todo o volume atravessado pelo feixe de radiação. Mas se o corpo for suficientemente extenso, essa radiação acaba por ser toda absorvida no seu interior. Assim, para corpos extensos, podemos atribuir a absorção – que se dá em volume – à superfície, onde penetra a radiação. Esta análise mostra-nos, também, que não temos de nos preocupar com uma possível fração da energia incidente que, não sendo absorvida nem refletida, tivesse atravessado o corpo e saído pela superfície oposta. Para corpos absorventes suficientemente extensos, esta energia transmitida através do corpo é nula – toda é absorvida. O corpo é opaco!

Em segundo lugar, o leitor poderá interrogar-se sobre o que acontece com um meio transparente (pelo menos, numa certa gama de frequências da radiação). Se é transparente, então \(a_{\nu }=0\). Tem sentido a lei de Kirchhoff? Ela diz-nos que, neste caso, deverá ser \(p_{\nu }=0\), isto é, um corpo que não absorve uma dada radiação, também não a emite – dito de outro modo, só absorve o que pode emitir, o que traduz bem a observação experimental de Kirchhoff atrás referida.

Em terceiro lugar, e de forma análoga à absorção, também a emissão de energia ocorre em qualquer parte do corpo. Parte desta energia é absorvida pelo próprio corpo e, da que chega à superfície, parte é refletida para o interior. Mas se estivermos interessados, apenas, na parcela que sai para o exterior, então podemos definir, como o fizemos, a emissão como uma propriedade da superfície. Afinal é esta que é “visível”!

Uma última conclusão importante é obtida, agora, considerando vários corpos diferentes em equilíbrio com a radiação. Apesar de cada corpo apresentar um poder emissivo e uma absorvidade que dependem da sua natureza e, até, da forma e tipo da sua superfície, a razão \(\frac{p_{\nu }}{a_{\nu }}\) é sempre a mesma, pois caracteriza a intensidade da radiação no vazio. Assim, \(I_{\nu }\) é independente da natureza dos corpos que produzem a radiação. Existindo equilíbrio térmico, então \(I_{\nu }\) só pode depender, para além da frequência, da temperatura do sistema. Daí o desafio proposto por Kirchhoff em 1860– qual a forma da função \(I_{\nu }\left ( T \right )\)?

A intensidade espectral no vazio, \(I_{\nu }\left ( T \right )\), é independente da natureza ou forma do corpo que a produziu. A lei de Kirchhoff apenas exige que tal corpo absorva a radiação, para a poder emitir. O corpo é, assim, um catalisador que, por absorção e emissão, redistribui a energia das diferentes radiações que, no vazio, se comportam independentemente umas das outras. Atingido o equilíbrio térmico, essa distribuição de energia fica estacionária e o corpo pode, mesmo, ser removido, se se desejar. Deste modo, somos livres de escolher o corpo que mais facilmente nos permita calcular a intensidade espectral. Imaginemos, então, um corpo tal que \(a_{\nu }=1\) para todas as frequências. Tal corpo absorve completamente toda e qualquer radiação que nele incida. No equilíbrio térmico, esse mesmo corpo emite exatamente a mesma energia que absorve – assim o exige a lei de Kirchhoff. A um tal corpo damos o nome de corpo negro (Kirchhoff, 1860), designação infeliz pela seguinte razão. Considere-se um outro corpo com absorvidade \(a_{\nu }<1\), em equilíbrio térmico com o corpo negro. O campo de radiação que se estabelece é caracterizado pela intensidade espectral \(I_{\nu }\) (no vazio) – ora a lei de Kirchhoff, aplicada aos dois corpos, mostra que o corpo negro emite mais energia radiante que este segundo corpo. Isto é, de todos os corpos à mesma temperatura, o corpo negro é aquele que mais radiação emite. O corpo negro é o mais brilhante de todos os corpos, a uma dada temperatura. Porque se designa, então, por corpo negro? Porque à temperatura ambiente (\(T = 300K\)), a maior parte dessa radiação situa-se, como veremos, no infravermelho – tal corpo aparecer-nos-ia como negro. Mas existe um corpo negro? Como o podemos construir? Uma última intervenção de Kirchhoff: “Dado um espaço rodeado por corpos a igual temperatura, através dos quais nenhuma radiação pode penetrar, então qualquer feixe de radiação neste espaço (Hohlraumstrahlung) é constituído, no que respeita à sua qualidade e intensidade, como se se originasse num corpo perfeitamente negro à mesma temperatura”.

A resposta final à questão colocada por Kirchhoff só seria encontrada quarenta anos depois, um período de tempo durante o qual grandes progressos foram obtidos, mas que acabavam por esbarrar em dificuldades intransponíveis para a Física Clássica.