Países conhecidos pela liberdade de que gozam os seus cidadãos colocaram as suas populações em prisão domiciliária. Ao contrário do que é habitual com sentenciados da justiça, dão-lhes licença para sair da prisão à semana, mas confinam-nos ao fim de semana. Impõem recolher obrigatório, algo que não conheciam desde que as bombas da segunda guerra mundial choviam sobre as suas cidades. Apropriadamente, os hospitais trabalham em cenário de guerra, de medicina de catástrofe. A crise social e económica que se anuncia, vai fazer a de 2008 parecer um soluço inconsequente.

A nação mais poderosa do mundo (até ver!) e democracia constitucional mais antiga, foi governada durante 4 anos por um personagem, cuja profundidade de pensamento, valores éticos e motivações, só costumávamos encontrar nos protagonistas dos reality shows (onde, de facto, apurou as suas competências). Pior, 71 milhões dos seus concidadãos queriam-no a governar durante mais 4 anos.

É difícil não desesperar!

A história abunda em exemplos de civilizações prósperas e gloriosas, que colapsaram ao fim de séculos de existência, às vezes em tempos muito curtos. Os regimes democráticos ocidentais, cujas origens próximas, com grandes avanços e ainda maiores recuos, encontramos nas revoluções americana e francesa do século XVIII, partilham um conjunto de valores e processos — igualdade dos cidadãos perante a lei, separação de poderes, uma pessoa um voto, eleições livres, direitos humanos, obrigação de proteção dos mais vulneráveis, liberdade de expressão, liberdade religiosa, direito de privacidade, etc. — que, ainda que muito imperfeitamente realizados, ou mesmo professados com enorme hipocrisia por tantos grupos e mesmo por nações, norteiam os nossos juízos de valor e tornam possível debater ideias, confrontar projetos políticos distintos, e conviver com a diversidade. Na realidade estes valores não foram criados por estas democracias, mas brotaram de conceções da Humanidade, da pessoa singular e do seu papel no mundo professadas (mas nem sempre praticadas) pelas grandes confissões religiosas do mundo. No que nos tornaremos se perdermos estes valores de referência? O que fizemos, que caminhos seguimos, para vermos números crescentes dos nossos concidadãos, descrentes, desiludidos, ou até antagonizados a este substrato comum da democracia liberal? Ao fim ao cabo, este vírus não veio mostrar que ou vencemos juntos ou somos todos derrotados?

Por isso, quando vi a fotografia do astronauta Bruce MacCandless II, a voar sem amarras, a 100 metros do Vaivém Challenger, 300 km acima da superfície da Terra, pareceu-me que estava a olhar para mim, a olhar para todos nós, a dizer:

“libertem-se, venham voar, venham sonhar comigo. Vejam o líndíssimo planeta que habitam, que merece melhor de todos nós. Cortem as amarras que vos prendem ao preconceito, ao privilégio, ao egoísmo, para poderem ser solidariamente livres”.