No ensino das ciências, o recurso aos relatos dos laureados com o Prémio Nobel da Física, da Química ou da Fisiologia ou Medicina, disponíveis na página oficial do Prémio Nobel com a designação de Nobel Lectures, possibilita a exploração de situações concretas de investigação científica. Estas narrativas, muitas vezes mediadas por episódios da vida pessoal, permitem abordar com os alunos a natureza da ciência1, 2, ou seja, o processo de construção da ciência, tendo em conta o trabalho que os cientistas realmente fizeram e a relação biunívoca entre ciência, tecnologia e sociedade (CTS).

Nos diversos relatos disponíveis, é possível explorar com os alunos diferentes dimensões da natureza da ciência, tendo em consideração a conceptualização multidimensional de ciência apresentada por Ziman3, 4. De acordo com este físico, a ciência deve ser analisada em função de quatro dimensões metacientíficas: filosófica, histórica, psicológica e sociológica.

A dimensão filosófica dá ênfase aos processos investigativos do trabalho desenvolvido pelos cientistas. A dimensão psicológica contempla as características psicológicas dos cientistas que influenciam a sua atividade científica, como a curiosidade e a persistência. A dimensão histórica realça o caráter de arquivo da ciência e confere-lhe uma perspetiva de atividade dinâmica que evolui ao longo do tempo. A dimensão sociológica refere-se às relações sociais que se estabelecem e desenvolvem dentro da comunidade científica (sociologia interna) e às inter-relações que os cientistas estabelecem com a sociedade em geral, incluindo a relação CTS (sociologia externa).

Os cientistas pertencem a uma determinada comunidade científica e estabelecem interações sociais uns com os outros. Comunicam entre si, partilhando dúvidas e angústias, êxitos e insucessos a par das perspetivas e resultados experimentais que os levam a reestruturar constantemente os seus trabalhos. A investigação científica é, cada vez mais, um processo colaborativo e não uma atividade isolada. Além disso, a ciência, a tecnologia e a sociedade estão intimamente ligadas. Por exemplo, se por um lado, as novas ideias e aplicações da ciência influenciam as inovações tecnológicas, por outro, a tecnologia fornece à ciência novos instrumentos e procedimentos que a fazem avançar.

Através do estudo de relatos dos laureados com o Prémio Nobel, é assim possível abordar as diferentes dimensões metacientíficas teorizadas por Ziman. Para tal, é fundamental que o processo de ensino e aprendizagem da natureza da ciência seja intencionalmente planeado pelo professor5 e que os conhecimentos metacientíficos sejam tornados explícitos durante a sua exploração. Além disso, e talvez mais importante, também é possível articular esse conhecimento com os conhecimentos científicos relacionados com a descoberta6.

De seguida, apresentam-se, de forma sintética, dois trabalhos que resultaram do estudo de relatos de descobertas realizadas por Marie Curie, laureada com os Prémios Nobel da Física de 1903 e da Química de 1911, e por John Robin Warren e Barry J. Marshall, laureados com o Prémio Nobel da Fisiologia ou Medicina de 2005.

O estudo de cada caso teve em consideração os seguintes aspetos: breve biografia do(as) cientista(s) envolvido(as) na descoberta, conhecimento científico que contribuiu para a descoberta e os seus impactos na sociedade. No final de cada exemplo, apresentam-se algumas sugestões de discussão com os estudantes, tendo em conta a exploração das dimensões da construção da ciência e da sua articulação com o conhecimento científico.


Marie Curie18

Nascida a 7 de novembro de 1867 em Varsóvia, na Polónia, Marie Curie tornou-se numa das mulheres mais importantes no mundo na investigação científica nas áreas da química e da física (FIGURA 1). Em 1891, foi para Paris para continuar os seus estudos na Universidade de Sorbonne e licenciou-se em Física e em Matemática7. Em 1985, casou-se com Pierre Curie, Professor na Escola de Física. Após a morte do seu marido, em 1906, Marie Curie ficou no seu lugar como Professora de Física Geral na Faculdade de Ciências, a primeira vez que uma mulher ocupou esta posição – o que para a época era inovador, tendo em conta que as mulheres não tinham acesso a uma carreira profissional e a investigação científica era essencialmente do domínio masculino8. Acaba por falecer com 66 anos em Savov, França, a 4 de julho de 1934, de leucemia, pela longa exposição às radiações. As suas cinzas encontram-se no Panteão de Paris, sendo a primeira mulher a receber essa honra pelos seus feitos.


FIGURA 1. Marie Curie no seu laboratório de química no Instituto de Rádio em França, 1921. (Fonte: Photo gallery. NobelPrize.org)

Maria Sklodovska (nome de nascimento) foi laureada com dois prémios Nobel: o Prémio Nobel da Física, em conjunto com o seu marido Pierre Curie, em 1903, pela descoberta da radioatividade natural; e o Prémio Nobel da Química, individual, em 1911, pela descoberta do rádio e do polónio e separação do rádio. Foi a primeira mulher a ganhar um prémio Nobel e foi a primeira pessoa a ganhar o Nobel duas vezes. É de salientar que a sua filha mais velha, Irène Joliot-Curie, também foi laureada com o Prémio Nobel da Química em 1935, como reconhecimento pela síntese de novos elementos radioativos. A filha mais nova, Eve Curie Labouisse, é autora de uma famosa biografia de sua mãe (Madame Curie, Gallimard, 1938, traduzida para várias línguas).

As descobertas de Marie Curie ocorreram aquando do estudo da radioatividade da pechblenda (minério de urânio), em colaboração com o seu marido. Os cientistas descobriram que a pechblenda é mais radioativa que o urânio, o que os levou a supor que existiriam outros elementos radioativos. Descobriram dois desses elementos, que denominaram de polónio (Po) e de rádio (Ra). O isolamento do rádio foi bem-sucedido, mas exigiu vários anos de investigação. No caso do polónio, a cientista não conseguiu isolá-lo, apesar do seu grande esforço, sobretudo devido ao facto da proporção de polónio no minério ser cerca de 5000 vezes menor que a do rádio9.

Marie Curie dedicou a sua vida ao desenvolvimento do trabalho científico impulsionado por si e pelo seu marido, ao estudo de substâncias radioativas e às aplicações na medicina dessas mesmas substâncias. Em 1914 inaugurou o Instituto de Rádio, mais tarde renomeado Instituto Curie, um laboratório destinado a continuar a investigação sobre as substâncias radioativas e um centro de investigação das aplicações do rádio nas áreas da biologia e da medicina. Na altura, os tratamentos com rádio faziam-se com aplicadores externos impregnados com rádio para aplicação direta sobre o tumor (radioterapia).

A aplicação do rádio em medicina levou à invenção da radioterapia que continua a ser essencial no tratamento do cancro, ainda que com a utilização de outros elementos radioativos8. Em Portugal, de acordo com a Associação Portuguesa de Radioterapeutas, o primeiro serviço de radioterapia foi realizado em 1958, no Instituto Português de Oncologia de Lisboa10. Contudo, só em 1974, após o aperfeiçoamento tecnológico referente a este tratamento, se observaram melhores resultados terapêuticos nos pacientes. Em 2015 existiam 25 serviços/unidades de radioterapia em Portugal11. Estima-se que a procura pela radioterapia continuará a aumentar, como efeito do envelhecimento da população, com o inerente aumento da incidência do cancro e do número de doentes com indicação de radioterapia.

A discussão deste exemplo com os estudantes permitiu explorar diferentes dimensões da construção da ciência, como a filosófica, a psicológica e a sociológica, e a sua articulação com o conhecimento científico sobre radioatividade. No caso da dimensão filosófica, foi possível discutir vários aspetos da construção da ciência, mais diretamente relacionados com os processos investigativos utilizados por Marie Curie, assim como os limites da ciência. Associado ao processo investigativo, este relato também permitiu discutir a dimensão psicológica, uma vez que se destaca a forma persistente e cuidadosa com que a cientista realizou a sua investigação. Além disso, foi também explorada a importância, para a ciência e para os cientistas, das relações de cooperação no seio da comunidade científica (dimensão sociológica interna) e da aplicação da ciência à sociedade (dimensão sociológica externa).


Descoberta da bactéria Helicobacter pylori19

O Prémio Nobel da Fisiologia ou Medicina de 2005 foi atribuído, em conjunto, aos médicos australianos John Robin Warren e Barry J. Marshall, pela descoberta da bactéria Helicobacter pylori e a sua relação com a gastrite e a doença da úlcera péptica.

John Robin Warren nasceu a 11 de junho de 1937, em Adelaide, Austrália Sul12. Formou- -se em medicina na Universidade de Adelaide em 1961. Começou a trabalhar como patologista no Instituto de Ciências Médicas e Veterinárias, passando depois pelo Royal Hospital de Melbourne e, em 1968, pelo Royal Hospital de Perth.

Em 1979, Warren observou bactérias a crescerem na superfície de uma biópsia gástrica. A partir dessa altura, dedicou-se ao estudo dessas bactérias, tendo sido incentivado pela sua esposa. Em 1981, conheceu Barry Marshall e concordaram em realizar um estudo mais completo. Publicaram alguns artigos científicos para divulgarem os seus resultados. Apenas a partir de 1990, as suas descobertas começaram a ser reconhecidas pela comunidade médica.

Barry J. Marshall nasceu a 30 de setembro de 1951, em Kalgoorlie, Austrália Ocidental13. Em 1975, formou-se em medicina na Universidade da Austrália Ocidental. Em 1979 vai trabalhar para o Royal Hospital de Perth, de modo a tornar-se mais experiente na área da cardiologia. Em 1981 integrou a divisão de gastroenterologia, onde conheceu Robin Warren e colaborou na sua investigação. Desde logo, Marshall mostrou interesse em estudar bactérias que eram desconhecidas e que viviam no meio ácido do estômago.

Warren e Marshall iniciaram o estudo de biópsias feitas a 100 pacientes14, 15. Depois de diversas tentativas, a partir dessas biópsias, Marshall conseguiu cultivar uma espécie de bactéria, até então desconhecida e mais tarde designada por Helicobacter pylori. Em conjunto, descobriram que essa bactéria estava presente em quase todos os pacientes com inflamação gástrica, úlcera duodenal ou úlcera gástrica. Com base nesses resultados, propuseram que H. pylori estava envolvida na origem dessas doenças (FIGURA 2). Contudo, em 1984, a maior parte do seu trabalho foi rejeitada para publicação e receberam críticas constantes da comunidade científica (por exemplo, que as bactérias encontradas eram contaminantes). Até então pensava-se que as úlceras eram causadas pelo aumento de ácido no estômago devido a stress, tabagismo e/ou tendência hereditária15.

De modo a provar que a sua hipótese estava correta, Marshall submeteu-se, em 1984, a um procedimento arriscado. Bebeu uma cultura de Helicobacter pylori e ficou doente. Submeteu- se a uma endoscopia com biópsia, cujo resultado acusou a presença da bactéria em causa. Deste modo, conseguiu mostrar que a bactéria poderia infetar uma pessoa saudável e causar gastrite.

Warren e Marshall continuaram a sua investigação, nomeadamente quanto ao tratamento para a erradicação de H. pylori. Estima-se que mais de metade da população mundial está ainda infetada com a bactéria e que cerca de 800 000 pessoas morrem de cancro do estômago relacionado com essa infeção15. Em Portugal, a infeção pela H. pylori é muito frequente, afetando cerca de 84% da população adulta16, 17.


FIGURA 2. Infeção e inflamação de Helicobacter pylori no estômago (adaptado de NobelPrize.org).

Através da discussão deste exemplo com os estudantes, foi possível explorar diferentes dimensões da construção da ciência, como a psicológica, a histórica e a sociológica, e a sua articulação com o conhecimento científico sobre aspetos do sistema digestivo. Destacou- se a ação de Barry J. Marshall, de ingerir uma cultura de Helicobacter pylori, que permitiu discutir características da personalidade desse cientista, assim como questões de natureza ética. No âmbito da dimensão histórica, este exemplo evidencia a evolução do conhecimento científico ao longo do tempo e em diferentes contextos, com a ocorrência de controvérsias. Além disso, foi também explorada a importância, para a ciência e para os cientistas, da divulgação e partilha dos resultados da investigação, quer à comunidade académica (dimensão sociológica interna) quer à sociedade (dimensão sociológica externa), destacando-se o reconhecimento da sociedade com a atribuição do Prémio Nobel.