FIGURA 1. As principais unidades morfoestruturais do norte de Marrocos, bem como a localização dos principais pontos propostos de observação geológica ao longo do conhecido corte transversal do Alto Atlas, entre Midelt e Errachidia.

Numa pequena escala, e basta olhar para uma imagem do Google Earth, o Alto Atlas exibe uma orientação aproximada E-W, apresentando um conjunto de morfologias paralelas, alinhadas segundo a mesma direção da cordilheira. São as famosas cristas, ou “rides” - dos ex-colonos franceses -, e que é impossível passarem despercebidas na paisagem (FIGURA 2).


FIGURA 2. Exemplo de crista carbonatada junto a Foum Tillicht (a norte de Rich, Alto Atlas), cortada pela Estrada N13. A crista com rocha datada da base do Jurássico Inferior contacta, através de falha inversa, com unidades margo-calcárias mais recentes do Jurássico Médio.

Tais estruturas não são mais do que alinhamentos tectónicos que fizeram sobre-elevar rochas carbonatadas do Jurássico basal, particularmente competentes e resistentes à meteorização. A geologia destas estruturas constrasta com os sedimentos margo-calcários, particularmente espessos - com centenas de metros de espessura -, que se lhes sobrepõem do ponto de vista estratigráfico – o sempre Princípio da Sobreposição -, e que preenchem as contíguas depressões através de largas estruturas em sinclinal (FIGURA 3)3.


FIGURA 3. Exemplo de flanco da estrutura sinclinal, composta por sedimentos margo-calcários do Jurássico Inferior, que se desenvolve junto a Hamat Moulay Ali Sharif.

Estas rides são o resultado da reativação de falhas normais, pré-deposicionais, associadas à estruturação da bacia sedimentar - conhecida igualmente como do “Alto Atlas”, e que foi o recetáculo de todos estes sedimentos. E que, posteriormente, com os efeitos da mesma orogenia que originou os Alpes, jogaram - é mesmo o termo aplicado às falhas -, no sentido inverso, resultado da forte compressão que teve lugar durante o Cenozoico4. Fenómenos tectónicos semelhantes explicam as várias cristas, igualmente de rocha carbonatada (calcários e dolomias), que se observam no Médio Atlas5. Bem como a natureza paleoambiental da maioria dos sedimentos jurássicos, que se depositaram em ambiente marinho. Neste aspeto, e porque se tratam de locais muito sugestivos com vista a vários flashs fotográficos, é possível ir mais longe nesta visita ao Alto Atlas, e centrar-mo-nos em três sítios de particular interesse geológico. O exercício que se propõe é o da aplicação dos Princípios da Geologia, muito com base no conteúdo fossilífero das rochas carbonatadas. A perspetiva é olhar mais em detalhe para o registo sedimentar e fazer uso do conceito de fóssil de fácies e daí chegar ao (paleo)ambiente deposicional.

O primeiro dos geossítios é a crista de Foum Tillicht (FIGURA 2), onde podemos passar um bom par de horas e analisar outros aspetos interessantes da geologia sedimentar aqui aflorantes6. Mas, entre as centenas de estratos de calcário que aqui se observam, podemos concentrar- nos numas morfologias, tipo domo, que contrastam com a estratificação reinante (FIGURA 4A)), e onde ocorrem fósseis de esponjas siliciosas (bioconstruções) (FIGURA 4B)).


FIGURA 4. A) Porção norte da crista de Foum Tillicht com sedimentos carbonatados estratificados do Sinemuriano à base do Pliensbaquiano, sobressaindo na parte inferior da sucessão (lado direito da imagem) alguns montículos que correspondem a bioconstruções de espongiários siliciosos. B) Detalhe das fácies carbonatadas sinemurianas ricas em fósseis de esponjas siliciosas (estrutura circular), observadas nas imediações de Foum Tillich.

Embora estes fósseis não sejam facilmente discerníveis a vista menos preparada, as análises ao microscópio petrográfico confirmam isso mesmo, através do registo da rede espicular que caracteriza estes organismos. Sendo a evidência clara de que estes sedimentos, datados do Sinemuriano (cerca dos 190 milhões de anos) e à custa de fósseis de amonites, se terão gerado em ambiente marinho7. Um ambiente que se tornou bastante mais profundo, cerca de 10 milhões de anos depois e de mais umas centenas de camadas acumuladas. Isso é demonstrado seguindo o Princípio da Sobreposição, no sopé da vertente norte da crista de Foum Tillicht. Numa sucessão muito mais margosa e por isso mais apta à meteorização. Além de se poder constatar uma das mais importantes variações sedimentológicas do Jurássico Inferior do Alto Atlas, resultante de uma subida relativa do nível do mar (FIGURA 5A)), os fósseis de amonites, que ocorrem em grande abundância (FIGURA 5B)), permitem correlacionar estes estratos com os observados em Aït Moussa, no Médio Atlas5. Estamos na presença da transição Pliensbaquiano - Toarciano2, 6. Não esquecendo, sendo a mesma transição cronostratigráfica que tem Peniche, em Portugal, como referência à escala global8.


FIGURA 5. A) Em primeiro plano, a seguir ao leito do rio, transição entre as formações de Ouchbis (mais carbonatada, lado esquerdo da imagem) e de Tagoudite (mais margosa), na vertente norte da crista de Foum Tilicht. De notar, em segundo plano, a continuidade e a beleza das camadas fortemente inclinadas segundo a vertente. B) Ocorrência de dactylioceratídeo no topo da Formação de Ouchbis, fóssil de amonite marcador da base do Toarciano.

Ultrapassada a referida crista em direção a sul, onde é possível detetar os reais efeitos da tectónica, atravessa-se o imenso vale onde fica Rich. Um ícone populacional do Alto Atlas, localizado num dos seus pontos mais centrais, e rodeado de cristas por todos os lados (FIGURA 6).


FIGURA 6. A cidade de Rich no centro do Alto Atlas. Em segundo plano, entre rochas carbonatadas do Jurássico Inferior e Médio, a imponência da crista do Jbel Bou Hamid, resultante da atividade tectónica alpina.

Estamos no núcleo de uma grande estrutura em sinclinal, preenchida por uma espessa sucessão margo-calcária datada da parte inferior do Jurássico Médio. Onde também não faltam fósseis de amonites, que permitiram identificar nesta região o corte de referência marroquino para o limite Aaleniano - Bajociano9. É sobre esta sucessão de grande importância estratigráfica que a este de Rich, no Jbel Assameur N’Ait Fergane, se observa uma construção recifal coralífera, com vários quilómetros de extensão. Este registo aglutina um conjunto de bioconstruções lenticulares (pináculos), que se repetem lateralmente e são bem visíveis a grande distância (FIGURA 7). Dada a raridade, uma imagem que deixa qualquer sedimentólogo de “boca aberta”! Se há momentos em que faltam as palavras, a contemplação deste afloramento será um deles. Segundo o Princípio do Atualismo, estas rochas bioconstruídas, datadas do Bajociano superior, terão resultado de um ambiente de plataforma marinha de muito baixa profundidade e com águas particularmente quentes10. De repente, uma espécie de “mergulho” no mar das Caraíbas ou em qualquer outro ambiente marinho de água tropical, como algumas ilhas do Índico ou do Pacífico11, embora ainda algo distante da longínqua e muito Grande Barreira Recifal da Austrália.


FIGURA 7. O Jbel Assameur N’Ait Fergane, nas imediações da cidade de Rich, ilustrando no topo da sua sucessão sedimentar um impressionante registo de bioconstruções coralíferas a perder de vista. Sem grandes evidências de atividade tectónica.

Todavia, não ficamos por aqui, nesta narrativa tão sustentada do ponto de vista sedimentológico e paleontológico. Aproximamo-nos do bordo mais meridional do Alto Atlas, com a geologia a tornar-se cada vez mais variada e complexa, e tudo por culpa, está claro, da tectónica. A estrada serpenteia paralelamente ao cada vez mais encaixado Oued Ziz, que já nos acompanha desde Rich, com rochas carbonatadas cada vez menos margosas, rodeada de cristas, falhas, estratos horizontais e inclinados, dobras, estruturas sedimentares diversas e depósitos conglomeráticos de vertente com blocos métricos, etc… Um verdadeiro compêndio ou atlas macroscópico de geologia. Mas não abandonamos os terrenos jurássicos. Junto a Aït Athmane, bem perto das conhecidas Gorges do Ziz (FIGURA 8) - outro local a exigir visita obrigatória -, ocorrem uns fósseis de bivalves muito particulares e curiosos, de grandes dimensões, os Lithiotis (FIGURA 9A)). Um privilégio poder observar in situ estas autênticas relíquias paleontológicas que proliferaram especificamente no Pliensbaquiano superior desta porção mais meridional do Alto Atlas, bem como noutras plataformas marinhas do Mar de Tétis12, 13. O modo de vida colonial destes bivalves, à semelhança dos rudistas, seus parentes, também coloniais e do Cretácico, é facilmente entendido, já que estão profusamente associados, nos mesmos estratos, a fósseis de corais (FIGURA 9B)). Pelo posicionamento estratigráfico, semelhante ao observado em Foum Tillicht, pode concluir-se que o ambiente marinho entre estes dois locais terá sido bem diferente. Com as condições sedimentares do Pliensbaquino terminal de Aït Athmane mais próximas das ocorridas no Bajociano coralífero da vizinha Rich. Ótimo exercício de comparação.


FIGURA 8. As gargantas do Ziz, ligeiramente a sul de Aït Athmane, a cortar rochas carbonatadas do Jurássico Inferior (Pliensbaquiano). No topo da sucessão da arriba afloram níveis com grandes fósseis de bivalves (Lithiotis).


FIGURA 9. A) Detalhe da acumulação de Lithiotis em calcário da Formação de Aganane aflorante na região de Aït Athmane. B) Fóssil de coral colonial na mesma camada ilustrada na figura anterior.

Com a aproximação a Errachidia, descendo gradualmente na altitude, saímos do Alto Atlas e da sua complexidade tectónica, bem como dos terrenos jurássicos que sustentam toda a cordilheira. Com isto, subimos na série estratigráfica, para sedimentos do Cretácico e Cenozoico, muito mais tabulares, devido à sua estrutura sub-horizontal, as hamadas14. No vasto horizonte temos então o infindável Saara que se espraia para sul e contacta a ocidente com os terrenos mais antigos do Anti-Atlas. Em simultâneo, descobre-se uma África “mais negra”, com algumas variantes visíveis na própria cultura marroquina. Isto, sem perder de vista o Ziz, que continua a “sobreviver” neste lugar cada vez mais árido, até dissipar-se no deserto de areia. A paisagem, essa, continua soberba, através do oásis contínuo e bem verdejante, criado pelo fio de água que foi escavando os terrenos de idade cretácica (FIGURA 10).


FIGURA 10. O vale do Ziz a sul de Errachidia, a caminho de Erfoud e do Saara (Hamada de Meski), circulando entre uma sucessão tabular do Cretácico (o topo da sucessão observada corresponde a calcários de origem marinha do Cenomaniano - Turoniano). Com muito baixo caudal, a imponência da vegetação ao longo do curso do rio é demonstrativa de um solo onde não falta água.

Resta chegar a Erfoud, a conhecida e verdadeira “porta do deserto” e esperar pelo próximo capítulo marroquino, o mais diverso do ponto de vista geológico, cronostratigráfico e paisagístico.