História da Cultura Oceânica

O movimento conhecido como ocean literacy, traduzido no Brasil como cultura oceânica (em Portugal é conhecido como literacia do oceano), teve início nos Estados Unidos em 2002, quando cientistas e educadores começaram a discutir a ausência de conteúdos relacionados aos oceanos nos currículos escolares daquele país. Dois relatórios sobre o oceano, publicados, também, nos Estados Unidos, foram muito importantes no avanço deste movimento: o America’s Living Oceans, da Pew Oceans Comission1 publicado em 2003 e o An Ocean Blueprint for the 21st Century publicado em 2004 pela US Comission on Ocean Policy2. Estes relatórios ressaltaram a importância do oceano no dia-a-dia das pessoas, as preocupações com a saúde deste ambiente, valorizando a educação como ferramenta para motivar comportamentos que permitam manter a sua integridade e seu uso sustentável, bem como de seus recursos.

A definição do termo cultura oceânica ocorreu em 2004, a partir de um workshop on line nos Estados Unidos, que durou duas semanas e reuniu cerca de 100 pesquisadores, professores e outros profissionais envolvidos com os ambientes oceânicos. A partir das discussões ocorridas neste workshop, a cultura oceânica foi definida como “a compreensão da influência do oceano nos seres humanos, bem como a influência dos seres humanos no oceano”3. Deste modo, espera-se que uma pessoa que seja alfabetizada em relação ao oceano compreenda conceitos fundamentais sobre o seu funcionamento e possa falar sobre ele de maneira informada, sendo capaz, assim, de tomar decisões conscientes e responsáveis em relação a sua conservação e manejo. Neste evento também foi discutido o que todas as pessoas deveriam saber sobre o oceano ao final da educação escolar básica, o que foi sintetizado em sete princípios essenciais (FIGURA 1), divididos em 44 conceitos fundamentais da cultura oceânica.


FIGURA 1. Diagrama dos princípios da cultura oceânica (Adaptado4).

Nos Estados Unidos onde a campanha da cultura oceânica teve início, ocorreu um esforço para adaptar o currículo escolar aos princípios e conceitos da cultura oceânica, de forma que esse conhecimento fosse construído de forma contínua, desde as séries iniciais até o último ano escolar, documento que ficou conhecido como Ocean Literacy Sequence and Scope for Grade K-125. Este documento serviu como base para que o Ciência Viva, de Portugal, através do projeto Conhecer o Oceano, também adaptasse o currículo escolar português a esses princípios e conceitos. Portugal foi um dos primeiros países, depois dos Estados Unidos, a aderir à campanha da cultura oceânica, mas o movimento se estabeleceu na Europa como um todo e, em 2012, foi criada a Associação de Educadores em Ciências Marinhas da Europa (EMSEA, da sigla em inglês European Marine Science Educators Association). A EMSEA visa promover uma cooperação internacional e conferir mais suporte e engajamento de educadores em tornar os cidadãos europeus alfabetizados nas questões oceânicas6. Outros países e continentes aderiram à cultura oceânica e criaram suas próprias associações voltadas para a promoção da cultura oceânica, como a Rede Canadense para a Educação Oceânica (CaNOE da sigla em inglês Canadian Network for Ocean Education) e a Associação de Educadores Marinhos da Ásia (AMEA da sigla em inglês Asia Marine Educators Association)

Com a adesão da UNESCO, através da Comissão Oceanográfica Intergovernamental (COI), a campanha da cultura oceânica ganhou ainda mais visibilidade internacional a partir de 2017. Foi lançado, então, o portal Cultura Oceânica para Todos e o livro, com o mesmo nome, que foi traduzido para cinco idiomas, incluindo o português7. O lançamento da versão do livro em português, em 2019, coincide com a chegada oficial do movimento ao Brasil.


Desembarcando no Brasil

Embora o movimento da cultura oceânica tenha demorado a chegar oficialmente no Brasil, aqui já existiam algumas iniciativas preocupadas em ampliar o conhecimento das pessoas em relação ao ambiente marinho. O termo usado para descrever ações com estes objetivos era mentalidade marítima, que expressava “a convicção ou crença, individual ou coletiva, da importância do mar para a nação brasileira e o desenvolvimento de hábitos, atitudes, comportamentos ou vontade de agir no sentido de utilizar, de forma sustentável, as potencialidades do mar”8.

Uma importante inciativa brasileira é o Programa de Mentalidade Marítima (PROMAR), da Comissão Interministerial para os Recursos do Mar (CIRM), criado em 1997. Dentre as metas do PROMAR temos: resgatar a mentalidade marítima da população brasileira e a inclusão de temas ligados ao mar nos currículos escolares da educação básica brasileira. Neste sentido, o PROMAR vem realizando exposições, palestras em escolas e o desenvolvimento de material relacionado aos ambientes marinhos.

Outra iniciativa que tem como finalidade aumentar o conhecimento sobre o oceano do público escolar é a Olimpíada Nacional de Oceanografia (ONO) projeto da Associação Brasileira de Oceanografia – (AOCEANO), com a colaboração da CIRM, do Fórum de Coordenadores de Cursos de Graduação em Oceanografia, e Programa de Educação em Tecnologia do Conselho Nacional do Desenvolvimento Técnico e Científico (CNPq), que teve três edições (2006, 2008 e 2012) e disponibilizou material de apoio com conteúdos relacionados ao ambiente marinho, tanto para os professores quanto para os alunos participantes.

Existem, ainda, projetos de extensão que apresentam propostas de ampliar a mentalidade marítima, como o Projeto Aprendendo com o Mar do Instituto Federal de Santa Catarina e a Fundação de Estudos e Pesquisas Aquáticas, ligada a Universidade de São Paulo, que desenvolvem trabalhos de educação ambiental marinha e formação continuada de professores. Também, é possível destacar o trabalho desenvolvido por algumas ONGs que apresentam projetos dedicados a educação ambiental marinha e contribuem para ampliar o conhecimento sobre o oceano do público formado especialmente por crianças e adolescentes, como o Núcleo de Educação e Monitoramento Ambiental e o Instituto Monitoramento Mirim Costeiro.

Apesar de existirem projetos envolvidos em ampliar o conhecimento sobre a temática oceânica no Brasil, eles não são oferecidos em quantidade suficiente para abranger grande parte das escolas do país. Esta lacuna também é observada em países que já promovem a cultura oceânica há mais tempo, como Portugal9. Neste sentindo, o Laboratório de Genética Marinha e Evolução (LGME) da Universidade Federal Fluminense vem desenvolvendo uma iniciativa que visa incentivar essa ligação entre os estudantes e o oceano. Neste trabalho, vamos descrever esta inciativa do LGME.


Universidade-Escola pela Cultura Oceânica

Desde 2012, o LGME vem desenvolvendo um projeto que integra alunos e pesquisadores da universidade com alunos e professores de escolas públicas, com objetivo de contribuir para o desenvolvimento de uma consciência ambiental e social, promovendo a cultura oceânica e a cidadania de estudantes no estado do Rio de Janeiro. As ações se baseiam no estabelecimento de uma parceria entre a Universidade e escolas públicas e são centradas no estudo do patrimônio cultural e natural para promover a atualização de professores, a criação de conteúdos baseados na relação dos alunos com seu entorno, bem como o desenvolvimento de atividades práticas, materiais e recursos didáticos.

O LGME, juntamente com professores e alunos de uma escola pública localizada em Cabo Frio, uma cidade costeira e turística, que dista cerca de 150 Km da capital, Rio de Janeiro, desenvolveu um conjunto de atividades baseadas em diferentes estratégias:

1) Organização do laboratório de ciências, excursões ao campo, construção de coleções didáticas junto com os alunos;

2) Oficinas didático-pedagógicas com os professores e alunos;

3) Uma exposição fotográfica, criação de um blog e a produção de um livro, todos realizados pelos alunos orientados pelos professores da escola e pela equipe do LGME.


Laboratório, excursões e coleções

O trabalho de organização do laboratório envolveu tanto a sua limpeza e organização (vidraria, reagentes, material anatômico, painéis, jogos didáticos, etc.) quanto a sua equipagem com armários, microscópios, lupas, computadores, impressora, máquinas fotográficas e filmadora (FIGURA 2A)). Tudo isso no sentido de revitalizá-lo e garantir que o registro das atividades de campo e as coleções produzidas com as coletas advindas destas excursões fossem sistematizadas e preservadas para sua utilização didática por todas as turmas da escola ao longo dos anos.

Foram realizadas cinco excursões (FIGURA 2B) e C)), que incluíram visitas aos monumentos históricos da cidade (igrejas, fortes, praças, teatros), aulas de campo nos ambientes marinho-costeiros (praia, restinga, costão rochoso, lagoa e manguezal), bem como uma visita a Universidade Federal Fluminense, para conhecer a universidade e o LGME. Nestas excursões os alunos conheceram a história de cada monumento visitado, observaram as características e a diversidade biológica de cada ecossistema visitado e, ainda, foram estimulados a refletirem sobre os processos histórico-evolutivos que levaram a diversificação destes ambientes e em como o ser humano intervém nos mesmos.

Como resultado dessas excursões os alunos construíram coleções de plantas (exsicatas), de rochas e de conchas (FIGURA 2D)). O trabalho envolveu a limpeza dos materiais coletados, a pesquisa em bancos de dados disponíveis na internet e em livros, o uso dos microscópios estereoscópicos para observar as estruturas anatômicas que caracterizam as espécies, para que os alunos identificassem e construíssem uma classificação biológica. Este trabalho se mostrou um facilitador da aprendizagem, atuando como um fator motivacional e tornando o ensino agradável e contextualizado. Além disso, as coleções estarão disponíveis no laboratório da escola e poderão ser utilizadas em outras turmas e disciplinas ao longo dos anos e até mesmo ampliadas, dando continuidade ao trabalho que foi iniciado.


FIGURA 2. Atividades desenvolvidas: A) Laboratório de ciências em fase final de arrumação. B) Excursão. C) Momento de coleta de material durante excursão. D) Conchas coletadas sendo identificadas no laboratório de ciências.

As oficinas

Oficinas didático-pedagógicas objetivaram tanto a incorporação de exemplos e atividades sobre o entorno aos conteúdos do currículo escolar, quanto à atualização dos professores. Por exemplo, foram desenvolvidas atividades práticas e investigativas com seres vivos marinhos que habitam ambientes próximos à escola, como peixes, crustáceos e moluscos, no sentido de conhecer a anatomia e as características destes seres vivos, bem como o estudo das relações que estabelecem entre si e o local em que vivem (FIGURA 3A), B) e C)). Também foram ministradas palestras sobre os ecossistemas do entorno da escola, como por exemplo, a Lagoa de Araruama, uma das poucas lagoas hipersalinas, sendo a maior laguna hipersalina em estado permanente do mundo (FIGURA 3D)).


FIGURA 3. Oficinas didático-pedagógicas ministradas pela equipe do LGME: A) Aula prática sobre peixes. B) Aula prática sobre crustáceos. C) Atividade sobre cadeia alimentar usando exemplos da biodiversidade marinha local. D) Palestra sobre um dos ecossistemas locais que foi visitado durante as excursões.

A Lagoa de Araruama tem grande importância para a região, tanto cultural, sendo usada como lazer e na prática de esporte, quanto econômica, sendo o sustento de uma comunidade de pescadores artesanais e pela atividade de turismo e importância ecológica, sustentando uma rica biodiversidade.


Levando informação para a comunidade

Essa etapa do trabalho teve como objetivo aproximar a escola de sua comunidade, bem como disseminar o conhecimento que estava sendo construído para o maior número de pessoas. Para tanto os alunos foram estimulados a fazer o registro escrito e fotográfico de todas as atividades desenvolvidas e que tiveram como culminância uma exposição fotográfica, a criação de um blog e a produção de um livro.

Para a exposição fotográfica, as fotografias foram selecionadas e impressas e a exposição foi montada nos corredores da escola, tornando-a um ambiente dinâmico e aberta a toda a comunidade, que foi convidada a participar do evento (FIGURA 4A) e B)).

Os registros escritos foram utilizados na construção de um blog (http://educacaopatrimonialcf. blogspot.com/), que serviu também como fonte de informação sobre todas as instituições envolvidas nesse trabalho (FIGURA 4C)). O blog se mostrou uma ferramenta importante na divulgação do trabalho, tendo sido acessado em diversos países, como Argentina, Estados Unidos, Chile, Uruguai e outros.

Além do blog e da exposição fotográfica, os registros escritos e fotográfico, somados a atividade de pesquisa bibliográfica, foram usados na produção do livro “Cabo Frio Bens Naturais e Culturais”10, que reúne informações sobre os principais ecossistemas e monumentos históricos da cidade de Cabo Frio, bem como da biodiversidade de moluscos da região, o que também ampliou a disseminação da cultura oceânica para além da escola (FIGURA 4D)).


FIGURA 4. Atividades de divulgação: A) e B) Exposição fotográfica realizada nos corredores da escola. C) Página do blog do projeto (http://educacaopatrimonialcf.blogspot.com/). D) Capa do livro produzido pelos alunos, professores e equipe do LGME (https://clubedeautores.com.br/livro/cabo-frio).

Avaliando o sucesso das atividades propostas

O sucesso das propostas desenvolvidas ao longo do projeto pode ser avaliado a partir de algumas fontes. Primeiro, os alunos participaram da elaboração do painel que foi apresentado no 4º Congresso Brasileiro de Biologia Marinha, ocorrido no ano de 2013 e que teve o resumo publicado nos anais do congresso11. O painel descreve um produto (coleção malacológica da escola) das ações de alunos, professores e pesquisadores no período em que o projeto esteve na escola. Ainda, o fato de que as imagens e os textos produzidos pelos alunos compuseram a exposição fotográfica e o blog, mostra o engajamento dos alunos nas atividades dos projetos. O blog teve quase cinco mil acessos, de dez países diferentes, durante o período em que o projeto esteve em vigor (2012 a 2013).

Além dos resultados concretos descritos (que “nunca tinham sido desenvolvidos antes na escola” segundo a voz da sua diretora à época), a fala dos alunos nos seus relatórios de atividades indicaram a importância para eles das atividades desenvolvidas. Por exemplo, um dos alunos escreveu no seu relatório para a agência financiadora do projeto: Gostei muito de participar do projeto... Cumpri meus objetivos e acho que ajudei nas atividades... O projeto me fez enxergar patrimônios naturais, culturais e históricos da cidade.


Desembarcando nas Escolas

Tomadas as diferentes atividades descritas como forma de avaliação, é possível afirmar que a iniciativa do LGME-UFF tem se mostrado capaz de despertar o interesse e entusiasmo de alunos e professores, pela sua própria cidade, o ambiente natural que está ao seu redor e os seres vivos que ali vivem. Em nenhum momento antes na vida da escola, dos professores e dos alunos houve a iniciativa de buscar conhecer os arredores da cidade, relacionar os ambientes naturais e culturais ali existentes e realizar atividades nesses ambientes.

Assim, patrimônios culturais e naturais, que sempre estiveram presentes no dia a dia de professores e alunos, foram usados como ferramentas para ampliar a noção de pertencimento à sua cidade, ao ambiente natural do qual todos fazem parte, bem como para promover uma cidadania responsável e ativa em relação à manutenção de um ambiente saudável. As atividades também se mostraram importantes para a promoção da integração entre os professores, funcionários e comunidade escolar e com os alunos e pesquisadores da universidade, uma vez que a exposição fotográfica promovida na escola promoveu o afluxo de pais amigos e vizinhos de alunos e professores tanto a escola quanto as atividades que ela vinha desenvolvendo no período. Acredita-se que tudo isto contribuindo para a melhoria das condições de ensino-aprendizagem.

Este trabalho se soma a outros, já publicados na Revista de Ciência Elementar9, 12 que têm demonstrado a importância de se levar atividades criativas, práticas, interativas à escola. Atividades estas que se mostrem motivadoras e que tornem o aprendizado prazeroso, estimulando nos alunos o interesse pelo ambiente natural e desenvolvendo a cultura oceânica. Mais do que isso, o trabalho não se encerra em si mesmo, uma vez que promove a difusão do conhecimento para a comunidade, capacita os professores e pode ser desenvolvido em outras escolas e munícipios, como atualmente vem sendo desenvolvido em escolas públicas da cidade de Niterói, Rio de Janeiro.

Por fim, a iniciativa demonstrou a importância da criação e manutenção do vínculo entre a universidade e as escolas públicas, no sentido de fortalecer a responsabilidade social da universidade com a difusão do conhecimento científico que produz para a comunidade. Esse vínculo tem sido estabelecido entre o LGME e escolas de ensino público, na promoção da cultura oceânica como uma forma de engajamento social com a preservação ambiental e conscientização social, ambiental e política da comunidade.