Educar para as alterações climáticas
Através de ciência didadã
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- * MUHNAC/ Universidade de Lisboa
- ɫ CIUHCT/ Universidade de Lisboa
- ‡ MARE/ Faculdade de Ciências
- + MARE/ Faculdade de Ciências
- # UIDEF/ IEUL
- § CIEJD/ ESEJD
- ★ CIEJD/ ESEJD
- ✩ CIEJD/ ESEJD
- ☼ CIEJD/ ESEJD
Referência Monteiro, A. J., Luís, C., Cartaxana, A., Boaventura, D., Neves, A. T., Santos, J., Pereira, P. C., Caldeira, F., Carvalho, A. P., (2021) Educar para as alterações climáticas, Rev. Ciência Elem., V9(4):071
DOI http://doi.org/10.24927/rce2021.071
Palavras-chave Ciência Cidadã, mar, IPBES, biodiversidade marinha, zona entremarés, monitorização, investigação científica
Resumo
Face à aparente incapacidade de inverter o atual panorama de perda de biodiversidade, é fundamental investir em ferramentas capazes de promover a consciencialização dos cidadãos para a necessidade urgente de adotar medidas e comportamentos que protejam essa biodiversidade e assegurem a sustentabilidade dos ecossistemas. A ciência didadã, uma prática de participação pública na atividade científica, cresce a passos largos com novos projetos e iniciativas a surgir um pouco por todo o mundo, gerando dados de elevado valor, nomeadamente no que se refere ao potencial de monitorização da biodiversidade. Enquanto ferramenta de aprendizagem, a ciência didadã promove a interdisciplinaridade no desenvolvimento de conhecimentos e educa para a cidadania, devendo, por isso, ser encorajada através dos currículos escolares. Em Portugal, um exemplo relevante de ciência cidadã aplicada ao ensino formal das ciências é o kit EduMarEduMar – Educar para o Mar. Este recurso educativo é destinado ao ensino básico, a partir do 4.o ano de escolaridade, e pretende avaliar o impacto das alterações climáticas através da monitorização da biodiversidade marinha na zona entremarés da costa portuguesa.
O impacto das alterações climáticas na biodiversidade marinha
Cerca de um milhão de espécies estão em risco de desaparecer nas próximas décadas segundo o relatório apresentado em maio de 2019 pela Plataforma Intergovernamental de Política de ciência sobre Biodiversidade e Serviços do Ecossistema (IPBES) e que envolveu contributos de 145 especialistas de 50 países1. Os resultados deste relatório alertam para uma importante crise ambiental, com mais de um terço dos mamíferos marinhos e cerca de um terço dos tubarões e corais de recife em risco de extinção. Este relatório aponta ainda as alterações climáticas como a terceira maior causa de perda de biodiversidade, depois das alterações no uso da terra e do mar e da exploração direta de recursos naturais, podendo vir a assumir a primeira posição com a intensificação do aquecimento global causado pelas emissões de gases com efeito de estufa, que duplicou desde a década de 1980. As alterações climáticas, definidas como mudanças a longo prazo no padrão das características meteorológicas do planeta, referem-se a uma ampla gama de fenómenos globais com impacto na fauna e flora, como são exemplo o aumento de fenómenos atmosféricos extremos, o aumento do nível médio do mar, a desertificação de áreas naturais e a acidificação dos oceanos. A atividade humana é identificada como a causa dominante do agravamento das alterações climáticas desde meados do século XX2. Na Europa, são já várias as populações de espécies marinhas presentes nas zonas rochosas entremarés (zonas intertidais) que apresentam alterações na sua abundância e distribuição ao longo da costa. São exemplos a lapa-comum (Patella vulgata) e o búzio (Nucella lapilus), cuja abundância e área de distribuição parecem estar a diminuir, e por outro lado a lapa-falsa (Siphonaria pectinata) e a alga-pavão (Padina pavonica), mais resistentes às alterações climáticas e cuja abundância e área de distribuição parecem estar a aumentar3, 4, 5. Estas variações modificam a dinâmica das comunidades que, por sua vez, alteram o funcionamento dos ecossistemas. Os ecossistemas são estruturas ecológicas essenciais à vida humana pelo vasto conjunto de serviços que prestam e pelo equilíbrio químico e físico que asseguram6, sendo, por isso, fundamental monitorizar as alterações na biodiversidade aí existente. Existem, nos ecossistemas costeiros, milhões de espécies que importa preservar, pelo que a sua monitorização e salvaguarda constitui uma tarefa demasiado árdua para ser assegurada exclusivamente pela comunidade científica.
Mobilizar para a monitorização da biodiversidade marinha através de ciência cidadã
Apesar do profundo e detalhado conhecimento científico existente e dos atuais esforços de consciencialização ambiental junto da sociedade, as alterações climáticas continuam a intensificar-se sem que uma grande parte dos cidadãos pareça compreender a magnitude das consequências deste fenómeno ou o papel que pode desempenhar no seu combate. É, pois, urgente criar estratégias inovadoras que fomentem uma maior aproximação dos cidadãos à biodiversidade, apresentando ferramentas que lhes permitam contribuir para a sua preservação. Partindo da ideia de que a criação de uma sociedade mais ativa na resolução de problemas requer que lhe seja atribuído um papel a desempenhar, a ciência cidadã apresenta-se enquanto forma de participação pública na investigação científica, convidando, numa das suas vertentes, qualquer um a ser parte ativa na recolha de dados científicos e interpretação de resultados7. Assente nesta prática têm surgido inúmeros projetos de monitorização da biodiversidade, nomeadamente costeira, uma vez que a ciência didadã pode ser usada enquanto ferramenta para a recolha de dados em projetos de preservação e monitorização de espécies8, 9. A nível internacional, são vários os exemplos de projetos de ciência didadã que propõem monitorizar o impacto das alterações climáticas na biodiversidade marinha. No Reino Unido, projetos como The Shore Thing ou o Big Sea Survey são algumas das iniciativas que contam com a ajuda de cidadãos no registo de espécies marinhas costeiras. Na Austrália, o projeto ClimateWatch, baseado na recolha de dados sobre a presença, ausência e abundância de espécies marinhas, gera dados que alimentam o programa de monitorização nacional da biodiversidade em resposta à mudança climática. Nos Estados Unidos da América, o projeto Climate Change: Seas to Trees at Acadia National Park recorre à ciência cidadã para estudar o impacto das alterações climáticas e da acidificação dos oceanos no Parque Nacional de Acadia, no Maine. À escala global, o projeto Dive Into Science desafia mergulhadores amadores e profissionais a registar a temperatura das águas para gerar modelos oceânicos e estudar o impacto das alterações climáticas10. Em Portugal, a plataforma Biodiversity4All (www.biodiversity4all.org), que se encontra atualmente associada à plataforma internacional iNaturalist, é uma das principais que se dedica à congregação de registos de avistamentos de espécies. Com mais de 700 000 observações registadas em território nacional por utilizadores amadores e profissionais (dados de novembro de 2021), esta plataforma reúne, desde 2010, registos de mais de 10 000 espécies, com indicação do local onde foram vistas, a data da observação, o nome da espécie e, na maioria dos casos, a respetiva fotografia. Recorrendo às atuais tecnologias de informação, os registos podem ser feitos por qualquer indivíduo com um smartphone ou tablet através de uma aplicação móvel, associada à plataforma, que convida à exploração da natureza, seguindo uma espécie de colecionismo digital do mundo natural que nos recorda os costumes dos antigos naturalistas amadores. A aplicação Biodiversity4All/iNaturalist permite o registo de observações de uma forma automática, rápida e intuitiva. Essas observações são posteriormente validadas por especialistas registados na plataforma.
Os dados recolhidos são de acesso aberto, estão disponíveis na plataforma Biodiversity4All e podem, como tal, ser usados para inventariar a biodiversidade, incluindo a costeira, inferir sobre o impacto das alterações climáticas e produzir documentos orientadores que ajudem a comunidade científica e os decisores políticos a tomar medidas fundamentadas em prol da conservação da natureza e do bem-estar dos cidadãos.
A ciência cidadã enquanto ferramenta educacional
Aliada à tecnologia, inovação e criatividade, a ciência didadã abre portas a uma nova prática no ensino e comunicação das ciências. Baseados em problemáticas reais e estruturados de acordo com a metodologia científica11, os projetos de ciência didadã aproximam os alunos da esfera científica, envolvem-nos no processo de investigação e promovem o desenvolvimento de conhecimentos e competências num ambiente de aprendizagem motivador e estimulante. Uma das mais-valias desta prática está na utilização das Tecnologias da Informação e da Comunicação (TIC) que, por um lado, torna estes programas atrativos e, por outro, contribui para a criação de mecanismos que permitem assegurar a qualidade dos dados recolhidos. Sobre os projetos de ciência didadã que se dedicam à monitorização da biodiversidade, podemos ainda referir a mais-valia de incentivarem a aproximação dos alunos à natureza. Numa altura em que emerge uma preocupação face à desconexão das novas gerações com o mundo real e com as atuais problemáticas ambientais promovida pela tecnologia, a participação em projetos de ciência didadã pode ser uma solução para uma necessária reaproximação, por aliar a tecnologia à exploração da natureza. Vários estudos sugerem que a participação em programas educativos que promovam a exploração e o contacto com a natureza sensibiliza as crianças para as questões ambientais, gera uma maior vontade de aprender mais sobre a natureza e promove a adoção de comportamentos de responsabilidade ambiental12. Dentro dos objetivos do currículo nacional para os ensinos básico e secundário está a necessidade de cultivar uma consciência ambiental em prol da sustentabilidade através da exploração do meio, da interdisciplinaridade e com recurso às TIC. No ensino básico, até ao 8.o ano, o programa e as metas curriculares das disciplinas de estudo do meio (1.o ciclo) e de ciências naturais (2.o ciclo) procuram, cada uma à sua escala, promover a descoberta da biodiversidade e a forma como com ela nos relacionamos, recorrendo ao método científico e ao contacto com a natureza13, 14. No ensino secundário, os programas curriculares para a disciplina de biologia e geologia anunciam-se com o objetivo de contribuir para formar cidadãos com literacia científica, críticos em relação aos problemas da atualidade, tais como a perda de biodiversidade e as questões em torno da proteção ambiental, e capazes de decidir autonomamente sem recorrer a ideias feitas e a preconceitos15. É ainda de mencionar os esforços da Direção-Geral da Educação na promoção de uma estratégia nacional de educação para a cidadania, para a formação de cidadãos conscientes, pró-ativos, dinâmicos e informados face às atuais problemáticas ambientais e ao desenvolvimento sustentável, entre outras16. A ciência didadã é transversal a estas metas educativas e, por isso, apresenta um enorme potencial enquanto ferramenta de aprendizagem. É uma prática que envolve o aluno no processo de investigação de forma a responder aos desafios atuais, promove a aquisição de conhecimentos e competências através do contacto com a natureza, muitas vezes recorrendo às tecnologias, e fomenta, ainda, a adoção de comportamentos e atitudes relevantes ao exercício da cidadania. Desta forma, a criação de sinergias entre a educação em ciência e ciência cidadã poderá representar um importante contributo para o aumento da literacia científica dos alunos e para o desenvolvimento das capacidades necessárias para que estes respondam aos desafios da sociedade17.
Um desafio aos professores: implementar nas escolas o kit educacional EduMar
O kit EduMar (FIGURA 1) é um recurso educativo destinado a ser aplicado por professores do ensino básico, a partir do 4.o ano, e que foi desenvolvido no âmbito do projeto EduMar – Educar para o Mar, ref. SAICT-POL/23480/2016 – um projeto educacional com o intuito de consciencializar para a problemática das alterações climáticas envolvendo os alunos na monitorização da biodiversidade marinha da costa portuguesa, na zona entremarés, com recurso à prática da ciência cidadã.
Elaborado com base em atividades dinamizadas durante o ano letivo de 2017/18 e que envolveram cerca de 300 alunos de diversos Jardins-Escolas João de Deus e do Agrupamento de Escolas Padre Bartolomeu de Gusmão, o kit EduMar está estruturado em 4 partes. Cada kit disponibiliza materiais em suporte físico e digital que possibilitam ao professor a implementação autónoma das atividades sugeridas em turmas com até 30 alunos. A primeira atividade proposta consiste numa sessão teórico-prática para discutir as alterações climáticas e o seu impacto na biodiversidade marinha. Os alunos, com o apoio de réplicas à escala (FIGURAS 2 e 3), entre outros materiais, aprendem a identificar e registar um conjunto de espécies marinhas da zona entremarés, que podem ser encontradas na costa portuguesa, e tomam contacto com a aplicação móvel Biodiversity4All/iNaturalist.
Como segunda atividade é proposta uma saída de campo que visa colocar em prática os conhecimentos desenvolvidos no decorrer da primeira atividade. Os alunos são envolvidos ativamente na monitorização da biodiversidade costeira através da identificação e registo de espécies-alvo na plataforma de ciência cidadã Biodiversity4All com o auxílio de um smartphone ou tablet e de um guia que auxilia a identificação das espécies. É ainda proposta uma terceira atividade prática que visa explorar os parâmetros físico-químicos da água e a importância da sua monitorização no contexto das alterações climáticas recorrendo a materiais de medição simples, como tiras de pH e termómetros. O kit inclui também um conjunto de instrumentos de avaliação que permite ao professor identificar não só o desempenho dos alunos ao longo das várias atividades, no que diz respeito à suas aprendizagens e capacidades, atitudes e valores, como também avaliar o próprio kit. O kit EduMar traduz-se, assim, numa ferramenta que leva a ciência didadã às escolas pelas mãos dos professores. A sua requisição gratuita pode ser feita através do e-mail kitedumar@escolasjoaodedeus.pt.
Agradecimentos
Este estudo foi desenvolvido no âmbito do Projeto EDUcar para o MAR - EDUMAR, SAICT- POL/23480/2016, cofinanciado pela Fundação para a ciência e a Tecnologia I.P. (PIDDAC) e pelo Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional - FEDER, através Programa Operacional Regional do Centro e Programa Operacional Regional de Lisboa (LISBOA- -01-0145-FEDER-023480/CENTRO-01-0145-FEDER-023480). Agradecemos à Fundação para a ciência e a Tecnologia as bolsas de investigação atribuídas a António José Monteiro (SFRH/BGCT/106026/2015), Cristina Luís (SFRH/BPD/100511/2014) e Ana Teresa Neves (BIM/ESEJD/23480/2017) que permitiram desenvolver o trabalho durante o período do projeto.
Por fim, deixamos um agradecimento especial aos colegas Ana Campos e Pedro Andrade, do MUHNAC/Universidade de Lisboa pelo belíssimo trabalho desenvolvido na produção dos modelos de espécies que compõem o kit EduMar.
Referências
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- 4 HERBERT, R. et al., The calcareous brown alga Padina pavonica in southern Britain: population change and tenacity over 300 years, Marine Biology, 163. 2016.
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- 17 QUEIRUGA, M., & SAIZ-MANZANARES, M., Citizen Science in School, Hands-on Science, Advancing Science, Improving Education, 194-198. 2018.
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