Acidentes ofídicos

O veneno é popularmente definido como qualquer substância tóxica capaz de causar alguma lesão em contato com o organismo, seja interna ou externamente. Os venenos podem ser de origem natural, como no caso de toxinas produzidas e liberadas por animais como serpentes e aranhas, ou de origem sintética, produzidos em laboratórios ou pela indústria. As serpentes que são capazes de inocular substâncias tóxicas (veneno), devido ao grau de especialização do aparelho venenífero compondo um complexo sistema de produção, estocagem e inoculação de veneno, são chamadas de peçonhentas1. Em relação à capacidade de injetar a peçonha, as serpentes são classificadas como: 1) áglifas, sem presa inoculadora, dentes sem sulco ou canal; 2) opistóglifas, possui dentes posteriores com sulco na parte anterior ou lateral (dentes inoculadores se encontram na parte posterior do maxilar, e por isso o risco de acidente é extremamente reduzido); 3) proteróglifas, presa anterior, bem desenvolvida e com canal central (característico da Família Elapidae), apresentam dois dentes na parte anterior do maxilar, porém não retráteis; e 4) solenóglifas, maxilar bem móvel, com canal funcional no centro (característico da Família Viperidae), apresentam aparelho inoculador da peçonha completo. As glândulas de veneno estão geralmente situadas em ambos os lados da cabeça e ao longo do maxilar2.

A principal função do veneno é a imobilização e digestão da presa. A peçonha é uma mistura complexa de proteínas (cerca de 90-95% do peso seco), incluindo diversas enzimas como metaloproteinases, serino proteases, fosfolipases A2, acetilcolinesterase, L-aminoácidos-oxidases, nucleotidases, hialuronidases, catalases e peptídeos biologicamente ativos (citotóxicos, cardiotóxicos, desintegrinas, neurotóxicos e potenciadores de bradicinina1, 3). Verificam-se diferenças na composição química entre as diferentes espécies e entre indivíduos1, e estas diferenças também podem ser observadas em relação a alimentação, idade da serpente, época do ano.

As alterações clínicas decorrentes dos acidentes por serpentes vão de complicações no local da picada até alterações sistêmicas. Dentre os principais efeitos causados pelo veneno estão incluídos danos teciduais, necrose, hemorragia, edema, alterações cardiovasculares, renais e no sistema da coagulação, ação neurotóxica, dentre outros3. Por exemplo, para espécies do gênero Bothrops (Família Viperidae), que são responsáveis pela maioria dos acidentes ofídicos causados por serpentes no Brasil (90%), o veneno afeta principalmente tecido muscular causando destruição deste tecido, e, em casos de complicações, pode haver formação de bolhas, necrose gangrenosa, choque e insuficiência renal aguda podendo levar à morte4. O veneno deste gênero é composto principalmente por metaloproteinases, serinoproteases, fosfolipases A2, desintegrinas e miotoxinas1. Por outro lado, o veneno das espécies do gênero Crotalus (Família Viperidae) apresenta um efeito no sistema nervoso (neurotóxico), que juntamente com outros efeitos pode levar a uma insuficiência renal aguda e morte4.

Os acidentes ofídicos são aqueles causados por picadas de serpentes peçonhentas e são considerados, desde 2009, como uma doença tropical negligenciada (DNT)3 que afeta milhares de pessoas todos os anos e que chega a causar de 25 000 a 125 000 mortes e deixa mais de 40 000 indivíduos mutilados por ano4, 5. A frequência dos acidentes ofídicos é precariamente documentada pelo sistema de saúde, gerando subnotificações, o que torna o número total de acidentes desconhecidos. Dentre as espécies responsáveis por causar esses acidentes, destacam-se as da família Elapidae (como as cobras africanas e asiáticas, cobras coral americanas) e Viperidae (víboras do velho mundo, cascavéis americanas, víboras asiáticas, dentre outras)3.

Os envenenamentos por serpentes venenosas são geralmente mais frequentes em países em desenvolvimento, áreas rurais e pobres e o único tratamento (soroterapia) é a administração do soro antiofídico (antiveneno). A soroterapia consiste na utilização do soro com imunoglobulinas provenientes de animais hiperimunizados3, em geral equinos capazes de neutralizar o veneno após inoculação por um animal peçonhento6. Em casos de ofidismo, a aplicação do soro é por via intravenosa e deve ser realizado o mais precocemente possível. Além disso, a identificação da serpente é de extrema importância para a aplicação do soro mais adequado, considerando que há diferentes componentes no veneno de cada espécie1, 6. Entretanto, esse tratamento possui algumas desvantagens já que pode provocar na vítima hipersensibilidade ao soro, reações imunológicas (choque anafilático), febre, possui baixa eficiência na capacidade de neutralização dos danos teciduais (necrose) locais, e dessa forma, por ser necessário que o paciente deve ser seja tratado em um tempo estimado relativamente curto para que seja garantida a eficácia do tratamento3. Outro problema é o acesso ao soro, que nem sempre é possível e está dependente da localidade e da qualidade do serviço de saúde, o que também justifica imprecisão das estatísticas e falta de notificação dos casos. Apesar disso, a soroterapia é extremamente eficaz no tratamento de acidentes ofídicos, pois impede as mortes causadas por envenenamento e por isso não deve ser descartada.

Diversas pesquisas vêm sendo desenvolvidas na busca de terapias alternativas para complementar a soroterapia. As plantas apresentam um grande potencial para o desenvolvimento de fármacos e muitas espécies têm sido alvo de estudos para esta finalidade. Existem registros que curandeiros que habitavam as civilizações mesoamericanas e pré- -colombianas utilizavam toda classe de ritos para o tratamento das picadas de serpentes, como o canto, a dança, sucção, cataplasmas, bebidas e banhos preparados com decocção das raízes e partes aéreas de diversas plantas. Desde o século XVII se sabia que estas práticas eram comuns a todos os povos indígenas das Américas do Norte, do Sul e Central. Entre os gêneros de plantas destacavam-se: Agave, Alisma, Aristolochia, Ascelpias, Astragalus, Bidens, Bothrychium, Caucalis, Crotalaria, Daucus, Eryngium, Euphorbia, Fraxinus, Hieracum, Ipomoea, Liatris, Lilium, Osmorhiza, Podophyllum, Polygala, Polygonatum, Plantago, Silene, Spilanthes7.

Os extratos e substâncias isoladas de diversas espécies vegetais com atividade antiveneno vêm sendo descritas na literatura. Compostos ativos isolados ou presentes em extratos de plantas como flavonoides e terpenos, por exemplo, possuem ação contra os efeitos causados pelos venenos de serpentes4, 8, 9, 10. Dentre as espécies vegetais, podem ser destacadas as das famílias Fabaceae e Asteraceae3. Além disso, trabalhos comprovaram potencial antiveneno para a espécie Clusia fluminensis9, 10. Em trabalho publicado em 2019, os extratos aquosos de folha, caule e fruto de C. fluminensis foram capazes de inibir as atividades coagulante e proteolítica (in vitro) e atividade hemorrágica, miotóxica e edematogênica (in vivo) causadas pelo veneno de Bothrops jararaca e B. jararacussu, sendo o extrato do fruto o mais ativo. Além disso, uma formulação em gel do fruto desta planta foi desenvolvida, na qual se obteve uma inibição da hemorragia causada pelo veneno9. Acredita- se que os componentes químicos presentes nesta parte do vegetal (taninos, flavonoides, saponinas, esteroides e terpenoides) são capazes de inibir as proteases envolvidas na hemorragia, seja através da interação direta com esta classe de enzimas dos venenos ou pela inibição da hemorragia em função destas substâncias químicas atuarem como quelantes de íons metálicos, como cálcio e zinco, que funcionam como cofatores às enzimas dos venenos9. Da mesma forma, outros trabalhos já descreveram potencial antiveneno para outras espécies, como por exemplo, a Garcinia lucida (Clusiaceae) e Hypericum brasiliense (Hypericaceae)3, 5, 11, 12. Estes dados mostram que o uso de plantas pode ser eficaz no tratamento das vítimas de acidentes ofídicos juntamente com a soroterapia. Ressalta- se a importância da preservação da flora, pois as plantas representam importante fonte para a descoberta de novas moléculas com potencial de uso no tratamento de várias enfermidades, inclusive os acidentes ofídicos. Evidencia-se o conhecimento tradicional e cultural dos povos indígenas e/ou comunidades que usam as plantas como primeiro, e às vezes o único recurso no tratamento dos acidentes ofídicos3, 4, 5.