Ciência cidadã ao longo do tempo
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- CIUHCT/ Universidade de Lisboa
Referência Luís, C., (2022) Ciência cidadã ao longo do tempo, Rev. Ciência Elem., V10(3):043
DOI http://doi.org/10.24927/rce2022.043
Palavras-chave participação pública, colaborativa, sociedade
Resumo
Tem-se assistido, durante a última década, ao enorme crescimento de uma prática conhecida como ciência cidadã. Por se tratar de uma forma de participação pública na investigação científica, esta prática potencia o avanço mais rápido do conhecimento científico, contribuindo para uma maior colaboração entre a ciência e a sociedade, daí o seu crescimento nos últimos tempos. No entanto, a ciência cidadã não é uma prática nova. Assim, apresenta-se aqui um breve resumo das principais características da ciência cidadã, um exemplo desta prática no passado e um breve panorama atual em Portugal.
O que é a ciência cidadã?
Apesar de ser uma prática cada vez mais conhecida, não existe uma definição única para o conceito de ciência cidadã, uma vez que pode assumir diversas vertentes. O termo tornou-se conhecido nos anos 90 do século XX, através de Alan Irwin (1995) e de Rick Bonney (1996)1, 2. Alan Irwin define a ciência cidadã como uma abordagem para apoiar uma ciência mais democrática e participativa, ao passo que Rick Bonney a descreve como uma ferramenta utilizada por cientistas profissionais, na qual cidadãos, voluntariamente, contribuem para a ciência através da recolha de dados. Mais tarde, no Livro Branco sobre a Ciência Cidadã na Europa3, o termo é definido como “o envolvimento do público em geral em atividades de investigação científica nas quais contribui ativamente para a ciência, com o seu esforço intelectual, com os seus conhecimentos ou com as suas ferramentas e recursos” (FIGURA 1).
Na prática, a ciência cidadã consiste essencialmente numa abordagem para responder a questões-chave da investigação contemporânea através do envolvimento voluntário de cidadãos nas várias etapas do processo científico, desde o desenho de projetos de investigação (através da definição das questões de investigação) até à disseminação dos principais resultados e conclusões, passando pela recolha, interpretação e discussão de resultados.
Os projetos e iniciativas de ciência cidadã podem ser concebidos de múltiplas formas, pelo que existe um esforço para os categorizar.
A maioria dos autores divide as tipologias de projetos de acordo com o grau de envolvimento e o tipo de tarefas científicas realizadas pelos voluntários que participam4, 5. Assim, de uma forma geral, os projetos podem classificar-se de acordo com as seguintes tipologias:
Contributivos — geralmente desenhados por cientistas e nos quais o público em geral contribui com dados;
Colaborativos — geralmente desenhados por cientistas e nos quais os membros do público contribuem com dados, mas também ajudam a aperfeiçoar o desenho do projeto, a analisar dados ou a disseminar resultados;
Co-criados — desenhados em conjunto por cientistas e membros do público em geral e nos quais alguns elementos do público estão ativamente envolvidos na maioria ou em todos os passos do processo científico.
A ciência cidadã assume, assim, diversas facetas, entre as quais o levantamento de novas questões de investigação e a co-criação de novos conhecimentos científicos. Os participantes voluntários adquirem novos saberes e competências e uma compreensão mais profunda do trabalho científico, o que permite novas formas de cultura científica.
O passado da ciência cidadã em Portugal
Graças à proliferação, nos últimos anos, de projetos de ciência cidadã a nível global, esta prática é muitas vezes referida como sendo recente. No entanto, o envolvimento de cidadãos sem formação especializada na ciência está longe de ser um fenómeno novo. A história da ciência revela diversos exemplos que mostram que os primeiros dados científicos modernos terão sido, em grande parte, obtidos por amadores, nomeadamente membros do clero ou aristocratas, que dispunham de tempo e meios financeiros para se dedicarem à recolha de informação sobre o mundo natural6. Há centenas de anos que grupos de pessoas sem formação científica fazem observações e registos sobre o mundo natural, incluindo a recolha de informação sobre distribuição de espécies de animais e plantas, a recolha de dados meteorológicos e observações de fenómenos astronómicos, registos esses que são, muitas vezes, centralizados por associações ou entidades governamentais7, 8, 9.
Assim, encontra-se em desenvolvimento um estudo que pretende ajudar a reconstruir alguma da história da ciência cidadã em Portugal, examinando a rede de colaboradores voluntários no registo da biodiversidade animal e a forma como a informação circulou entre colecionadores, naturalistas amadores e naturalistas especializados.
Dentro de vários exemplos já encontrados, destaca-se as Instrucções praticas sobre o modo de colligir, preparar e remetter productos zoologicos para o Museu de Lisboa (FIGURA 2) publicadas em 1862 por José Vicente Barbosa du Bocage (1823-1907), diretor do Museu de Lisboa (a instituição que deu origem ao atual Museu Nacional de História Natural e da Ciência)10. Com esta publicação, o diretor do museu apelou à colaboração de indivíduos para ajudar a expandir as suas coleções zoológicas.
Bocage menciona que:
“Para colligir os productos naturaes da localidade onde se reside; para entreter os ócios da vida do campo com occupações que fazem correr ligeiras as horas e elevam a intelligencia; para estudar a natureza, e procurar comprehender a grande obra da creação soletrando alguma das paginas da sua historia,—não é mister ser naturalista de profissão, nem sábio diplomado por universidades e academias. Para começar bastam algumas indicações sobre o modo por que se devem procurar e preparar os objectos que se pretende colligir; depois a repetição das excursões e pesquisas, a experiência de cada dia, os ensaios e observações próprias desenvolverão aptidões, diremos quasi instinctos, de verdadeiro naturalista”.
É muito interessante a forma como este documento aborda a população em geral e apela à colaboração de todos os interessados na recolha de espécimes zoológicos, ignorando qualquer experiência anterior como naturalista amador. Esta passagem das Instruções Práticas... é, pois, um testemunho daquilo a que poderíamos chamar um apelo do século XIX para todos se tornarem cientistas cidadãos!
O presente e o futuro da ciência cidadã em Portugal
Como vimos pelo exemplo anterior, a ciência cidadã em Portugal está longe de ser uma prática nova. No entanto, tem ainda pouca projeção comparativamente com o que acontece noutros países.
No caso português, como porventura em muitos outros contextos nacionais, é importante organizar e congregar esforços em torno da comunidade que promove iniciativas de ciência cidadã, bem como criar um plano mais alargado para divulgar o potencial da ciência cidadã, quer para um maior e mais rápido avanço na investigação científica, quer ainda para uma maior aproximação entre ciência e sociedade em geral. Assim, encontra-se em implementação a Rede Portuguesa de Ciência Cidadã que reúne regularmente com todos os membros interessados na temática, de dentro e fora da academia, e possui grupos de trabalho em funcionamento. A rede encontra-se a preparar o lançamento de uma plataforma na qual será possível visualizar os projetos e iniciativas de ciência cidadã a decorrer em Portugal.
Uma das tarefas, também em desenvolvimento por parte da rede, é o mapeamento das iniciativas de ciência cidadã em curso em Portugal. No entanto, num levantamento não exaustivo efetuado em 201511 e melhorado em 202012, é possível perceber que, em Portugal, os projetos de ciência cidadã parecem obedecer a um padrão global, ou seja, são maioritariamente contributivos e nas áreas do ambiente e biodiversidade (ex.: BioDiversity4All, Invasoras.pt, GelAvista, Lixo marinho), com alguns exemplos na área da saúde (ex.: Gripenet, MosquitoWeb) e da astronomia (ex.: Sun4All, Caçadores de Asteroides). Nas áreas das humanidades e ciências sociais, surgem também alguns projetos (ex.: Memória para Todos, Histórias de Vida, Novos Decisores Ciências), no entanto em número menor do que nas restantes áreas. É de realçar que uma parte dos projetos decorrem da colaboração com plataformas internacionais (ex.: Biodiversity4All, Portugal Aves, Gripenet). É ainda de referir que, apesar de muitos destes projetos serem adequados para a exploração em contexto escolar13, existem alguns projetos que se dirigem particularmente ao público escolar (ex.: Caçadores de Asteroides, MEDEA, EduMar). Ao permitir o envolvimento dos alunos em atividades de investigação científica, como é o caso do projeto EduMar14, este tipo de experiências familiariza-os com os procedimentos típicos da produção de Ciência, contribuindo, ao mesmo tempo, com dados para o avanço do conhecimento científico (FIGURA 3).
Considerações finais
Muito tem mudado ao longo do tempo no que toca à aproximação entre Ciência e sociedade, e Portugal não é exceção. Os projetos de ciência cidadã, não constituindo necessariamente uma novidade, são um dos mais interessantes desenvolvimentos neste movimento de aproximação, por permitirem a ativa participação da sociedade na prática científica e, em última análise, na exploração de novas formas de co-criação de conhecimento científico, num processo partilhado entre cientistas e não-cientistas.
Neste contexto, a comunidade escolar pode desempenhar um papel muito importante no sucesso de atividades de investigação científica que recorram à ciência cidadã. Pela sua própria natureza, a ciência cidadã envolve a participação numa ou mais etapas do processo científico oferecendo, portanto, oportunidades significativas para o ensino das ciências em ambientes formais e informais. A ciência cidadã aplicada à educação poderá assim contribuir para novas formas de aprendizagem através do envolvimento em atividades de investigação, transformando as salas de aula em laboratórios de investigação e os alunos em cientistas amadores.
Agradecimentos
Uma parte deste trabalho baseia-se em informação recolhida no âmbito do projeto Documenting Biodiversity. A time travel through Citizen Science in Portugal (2019-2025), Ref. CEECIND/02197/2017, apoiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (Portugal).
Referências
- 1 IRWIN, A., Citizen Science: A Study of People, Expertise and Sustainable Development, Oxon, UK: Routledge. 1995.
- 2 BONNEY, R., Citizen science: A lab tradition, Living Bird, 15, 4, 7–15. 1996.
- 3 SERRANO-SANZ, F. et al., White Paper on Citizen Science in Europe, Socientize Consortium. 2014.
- 4 BONNEY, R. et al., Public Participation in Scientific Research: Defining the Field and Assessing Its Potential for Informal Science Education, A CAISE Inquiry Group Report. 2009.
- 5 HAKLAY, M., Crowdsourcing Geographic Knowledge: Volunteered Geographic Information (VGI) in Theory and Practice, Berlin: Springer, 105-122. 2013.
- 6 SILVERTOWN, J., A new dawn for citizen science, Trends in Ecology & Evolution, 24, 9, 467-471. 2009.
- 7 ROY, D. B. et al., Celebrating 50 years of the Biological Records Centre, Wallingford, Oxfordshire: Centre for Ecology & Hydrology. 2014.
- 8 MACGREGOR, A., Naturalists in the Field: Collecting, recording and preserving the natural world from the fifteenth to the twenty-first century, Emergence of Natural History, Leiden and Boston: Brill Publishing, ISBN 978-90-04-32383-4. 2018.
- 9 CAROLINO, L. & SIMÕES, A., The Eclipse, the Astronomer and his Audience: Frederico Oom and the Total Solar Eclipse of 28 May 1900 in Portugal, Annals of Science, 69, 2, 215-238. 2011.
- 10 BOCAGE, J. V. B., Instrucções praticas sobre o modo de colligir, preparar e remetter productos zoologicos para o Museu de Lisboa, Lisboa: Imprensa Nacional. 1862.
- 11 CONCEIÇÃO, C. P. & LUÍS, C., Ciência, Tecnologia e Medicina na Construção de Portugal, 4, 561-591, ISBN: 9978-989- 671-599-1. 2021.
- 12 PILAND, N. et al., Citizen science from the Iberoamerican perspective: an overview, and insights by the RICAP network, ECSA Conference, 6–10. 2020.
- 13 LUÍS, C., Ciência Cidadã: Aprender através do envolvimento em atividades de investigação, Gazeta Valsassina, 64, 4-5. 2017.
- 14 MONTEIRO, A. J. et al., Educar para as alterações climáticas, Rev. Ciência Elem., V9(4):071. 2021.
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