Simbiose entre figueiras e vespas
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- * IHC/ CEHFCi-U. Nova de Lisboa
- ɫ IPB
- ‡ U. Évora
Referência Fernandes, F. M., Carvalho, L. M., Nunes, M. F., (2023) Simbiose entre figueiras e vespas, Rev. Ciência Elem., V11(1):008
DOI http://doi.org/10.24927/rce2023.008
Palavras-chave Ficus carica L. ; Blastophaga psenes L., Simbiose; Coevolução; Fluxo génico
Resumo
A relação simbiótica entre a figueira, Ficus carica L., e a sua vespa, polinizadora Blastophaga psenes L., é explicitada tendo como objetivos a divulgação científica deste exemplo notável de simbiose e a disponibilização de uma versão atualizada e facilitadora do ensino e aprendizagem de relações interespecíficas, coevolução e mecanismos de controlo pré-zigótico do fluxo génico entre espécies filogeneticamente próximas.
A relação interespecífica de mutualismo obrigatório entre figueiras e vespas ocorre há, aproximadamente, 40 milhões de anos1, com benefícios para as diversas espécies do género Ficus L., família Moraceae, e para as espécies de vespas da família Agaonidae, ordem Hymenoptera. As figueiras são polinizadas pelas vespas e estas recebem, no interior dos figos, proteção e alimento para a sua descendência. O género Ficus inclui cerca de 850 espécies monoicas de trepadeiras, arbustos e árvores2, e cada uma tem uma espécie de vespa que a poliniza. As figueiras produzem síconos — inflorescências que, por maturação, se transformam em infrutescências (FIGURA 1).
As inflorescências são constituídas por flores masculinas, com perianto de três peças, e por flores femininas, com perianto de cinco peças, que se dispõem na superfície de um recetáculo espesso, invaginado, piriforme e com uma abertura apical denominada ostíolo (FIGURA 2).
A inflorescência evolui para uma infrutescência carnuda e suculenta (FIGURA 3) constituída por aquénios — frutos secos, monospérmicos, nos quais a semente se une ao pericárpio por um só ponto3 (Flora Ibérica).
A espécie-tipo do género Ficus é a espécie Ficus carica L. — nativa da região Mediterrânea e da Ásia Ocidental. Nesta espécie, cultivada como frutícola e ornamental, as flores masculinas, com filetes mais longos do que o perianto e anteras dorsifixas, inserem-se no topo do sícono, junto ao ostíolo (FIGURA 4). As flores femininas inserem-se nas paredes do recetáculo, a maior distância do ostíolo, e, podem ser férteis, se os estiletes forem longos, ou estéreis, se os estiletes forem curtos (FIGURA 4).
A reprodução sexuada das figueiras está dependente das vespas que as polinizam. A espécie Ficus carica L. é polinizada pelas vespas fêmeas da espécie Blastophaga psenes L. (FIGURA 5).
Ao entrar pelo ostíolo, que se encontra protegido por escamas, a vespa fêmea, com o comprimento de cerca de dois milímetros, perde as asas e as antenas4. Esta dirige-se para as flores femininas, depositando nas de estilete curto, com o seu oviscapo, também ele curto, um ovo no ovário de cada flor. Os ovários destas flores transformam-se em pequenas zoocecídias (galhas), estruturas que protegem e alimentam as larvas. A vespa poliniza as flores femininas de estilete longo, com o pólen que trouxe do sícono de outra figueira, onde nasceu. No final deste processo, a vespa conclui o seu ciclo de vida, morre e é digerida pela ficina, enzima proteolítica existente no figo; os produtos resultantes desta digestão são absorvidos pelo sícono. Os seus descendentes machos haploides (n), provenientes de óvulos, tornam-se ativos antes das fêmeas diploides (2n) que se desenvolvem a partir de ovos (FIGURA 6).
Desprovidos de asas, os machos são mais pequenos do que as fêmeas, terminam a fase de pupa mais cedo, movem-se no interior do sícono até encontrarem as fêmeas, que inseminam, por vezes, ainda na fase de pupa. Cumprida esta função, os machos fazem uso das suas robustas mandíbulas para criarem túneis que terminam no ostíolo, o qual alargam em diâmetro. Nesta fase, os machos podem cair e morrer no solo ou morrer dentro do figo. Enquanto o corpo da sua progenitora foi absorvido ainda numa fase imatura do figo, os machos morrem numa fase avançada de maturação do figo; deste modo, os vertebrados que ingerirem os figos estão, simultaneamente, a ingerir os corpos dos machos mortos. As suas irmãs atingem a fase adulta quando as anteras das flores masculinas estão prontas para libertar o pólen. Em seguida, rastejam pelos túneis criados pelos machos, em direção ao ostíolo, encontrando, aí, as anteras com os grãos de pólen que aderem aos seus corpos e que são armazenados passivamente nas suas pregas intersegmentares. Isto ocorre porque da passagem do estado de pupa para o estado adulto, o corpo das vespas perde água, o que promove a invaginação das membranas intersegmentares, formando-se, assim, dobras estreitas onde o pólen previamente espalhado sobre as membranas fica aprisionado4. As fêmeas saem do sícono, pelo ostíolo alargado, com as asas e as antenas intactas. Nesta fase, despendem tempo e energia a remover os grãos de pólen que aderiram às restantes partes do seu corpo4. Subsequentemente procuram os compostos voláteis emanados pelos síconos de outras figueiras. Esta mensagem química é detetada a uma distância máxima de seis metros, dando-lhes a informação de que aqueles síconos têm flores femininas prontas para serem polinizadas. A vespa fêmea entra, perde asas e antenas, e, em condições favoráveis encontrará flores femininas de estilete curto; caso contrário, morrerá sem descendência, mas efetuará a polinização passiva, não intencional, com o pólen que trouxe do figo onde nasceu. Isto ocorre porque num figo recetivo à polinização, a humidade é mais elevada, a vespa fica intumescida o que em conjugação com as contorções que efetua, expõe o pólen aprisionado nas pregas intersegmentares ao contacto com os estigmas recetivos4. Esta última situação ocorre quando as vespas entram nos figos de figueiras da cultivar de Smyrma, cujas flores são todas de estilete longo. Caso a vespa efetue postura, as larvas morrem por falta de alimento porque a vespa não consegue ovipositar no ovário da flor de estilete longo5. Estas figueiras são funcionalmente fêmeas e os seus figos são muito apreciados pelos humanos. Contudo, para se desenvolverem, é necessário que a vespa os polinize, caso contrário os figos permanecem imaturos e caem. Se a vespa entrar em figos de Capri (Ficus carica var. silvestris), produzidos por figueiras funcionalmente machos, encontra flores masculinas e flores femininas de estilete curto onde pode depositar os seus óvulos e ovos. Para esta diferenciação sexual aparente contribuiu a simbiose reprodutora estabelecida entre a espécie Ficus carica L. e as vespas da espécie Blastophaga psenes. Ao longo de milhões de anos, no decurso da relação de interdependência entre as figueiras e as suas vespas polinizadoras, ocorreu coevolução, a qual se reflete na compatibilidade de tamanho entre o estilete de algumas flores e o oviscapo das vespas6. As espécies do género Ficus são acentuadamente seletivas, no que respeita ao seu polinizador, e exercem um mecanismo pré-zigótico de isolamento reprodutivo, controlando, assim, o pólen que recebem. Conseguem-no pelo diâmetro do ostíolo, que se relaciona com a largura da cabeça das vespas polinizadoras (FIGURA 5), impedindo, deste modo, que as vespas polinizadoras acasalem, dentro do figo, com vespas de espécies próximas, o que mantém a integridade da espécie e reduz o fluxo génico entre espécies filogeneticamente próximas7.
Quando a fêmea entra num figo apercebe-se se outras fêmeas da sua espécie estão presentes no mesmo. Se for a única, entre a sua descendência constará um só macho, filho, o qual inseminará as suas irmãs. Contudo, se outras vespas já tiverem depositado os seus óvulos no mesmo figo, fecundará menor número dos seus óvulos, dando assim origem a uma descendência de machos quase tão numerosa como a de fêmeas. Conhecem-se 700 espécies de vespas polinizadoras de figueiras, embora alguns especialistas afirmem que são cerca de 25001.
Segundo Ferguson et al. (1990), coexistem dois tipos de figueiras: (1) as figueiras baforeiras (bravas), com flores femininas e masculinas, produtoras de pólen e de figos não edíveis, onde a descendência das vespas se cria e (2) as figueiras domésticas, com flores femininas e masculinas (incapazes de produzir pólen), produtoras de figos, que dependendo da cultivar, poderão necessitar de polinização. Quando o figo se desenvolve sem que ocorra polinização o mesmo continua a ser uma inflorescência de tecidos vegetativos pedunculares8.
O grupo das figueiras domésticas inclui três tipos de cultivares distintas: as Comuns, que têm uma ou duas produções anuais sem polinização obrigatória (figos lampos e figos vindimos); as Smyrma que precisam de polinização e que só produzem figos vindimos; e as San Pedro que produzem os lampos sem necessidade de polinização e os vindimos que a requerem9. Os figos vindimos das cultivares Smyrma e San Pedro caem se não ocorrer a polinização10. Por ser necessária a polinização, a Ficus carica var. silvestris, nativa da Europa Meridional e da Ásia Menor, foi introduzida, conjuntamente com a vespa da espécie Blastophaga psenes, na maioria dos países onde se cultivam figueiras, da espécie Ficus carica L..
O desenvolvimento dos figos lampos inicia-se no outono, interrompe-se no inverno, devido ao decréscimo da temperatura e do número de horas de luz, recomeça em março e termina em junho5. Estes figos inserem-se nos ramos castanhos, formados no ano anterior, têm epiderme fina, reduzido teor de sólidos solúveis, são hidratados e consomem-se frescos. O desenvolvimento dos figos vindimos inicia-se em abril e termina no final de julho e durante o mês de agosto. Inserem-se nos ramos novos (FIGURA 1), e os de algumas cultivares, como a Lampa Preta, precisam da polinização, caso contrário caem. Os de outras cultivares, como a Pingo de Mel, não necessitam de polinização. Contudo, deseja-se que a polinização ocorra porque a formação de sementes aumenta o peso, o calibre, antecipa a maturação e melhora o sabor, tornando-o mais rico em ácido málico e cítrico11. Por outro lado, a produção de figos polinizados é condicionada por fatores climáticos como os ventos fortes, que arrastam as vespas e dissipam os compostos voláteis que as orientam, e a precipitação que as impede de sair do figo ou as faz cair12.
A Turquia, Egito, Marrocos e Argélia são os principais produtores e exportadores de figos13. Em Portugal, a produção de figo, maioritariamente para comercializar seco, ocorre, principalmente, nas seguintes regiões: Algarve, Moura, Torres Novas e Mirandela14.
A relação interespecífica entre vespas e figueiras pode decorrer paralelamente às estabelecidas entre as figueiras e outros insetos, ácaros e nemátodes, os quais, em geral, entram no figo para parasitar as figueiras15.
A dispersão das sementes é promovida pelos animais vertebrados que se alimentam dos figos. As sementes são transportadas no tubo digestivo destes animais e libertadas com as fezes, por vezes a quilómetros de distância da figueira-mãe, dando origem a novas figueiras.
O pressuposto de que a figueira foi domesticada há cerca de 6500 anos tem vindo a ser questionado, após a descoberta de figos nas ruínas de uma casa da aldeia Gilgal I — do início do neolítico — localizada no Vale do Baixo Jordão e que datam, aproximadamente, de 11400 a 11200 anos16. Os estudos efetuados a estes vestígios permitiram inferir que foram colhidos de árvores partenocárpicas, cultivadas por estaca, o que faz supor que o cultivo de figueiras precedeu, em cerca de 1000 anos, a domesticação dos cereais6.
Referências
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