FIGURA 1. O istmo do Panamá, a península da Flórida e as Bahamas no contexto do Caribe. Imagem do Google Earth.

Nesta crónica viajamos de sul para norte, e quase apetece que seja no sentido horário, de modo a passar pela Costa Rica e México, mas isso ficará para uma outra ocasião. Começamos, então, pelo Panamá, a menos de 10˚ acima da linha equatorial. E pelo lado meridional do canal artificial que dá nome ao país, que fica no estreito istmo, e que limita os dois maiores oceanos do planeta. Estes mares contrariam aqui a sua disposição geral, normalmente medidiana, com o Atlântico a sobrepor-se, latitudinalmente, ao Pacífico. Como é sabido e como veremos, muito por influência da tectónica de placas litosféricas. Estamos no país que deu nome a um chapéu, aos Panama papers, e onde foi rodado o filme Alfaiate do Panamá, com o inconfundível Geoffrey Rush, que, por coincidência, também já fez de Capitão Barbossa em Piratas das Caraíbas. Ótimos enquadramentos, num território de muito verde pois, por estas bandas, a pluviosidade é uma constante, com organismos voadores e rastejantes acima da média, símios curiosos e atrevidos, mas de muito bom trato, borboletas com todas as cores e padrões, e dos crocodilos que jamais “faltam à chamada”. De extrema abundância, já que é muito fácil conviver com esta panóplia de seres vivos, logo na primeira abordagem ao Canal do Panamá (FIGURA 2).


FIGURA 2. Particularidades do Canal do Panamá. A) Esclusa de Água Clara, na extremidade caribenha do canal, junto à cidade de Colón. B) O clássico comboio que liga as cidades de Colón e do Panamá, ou seja, entre os oceanos Atlântico e Pacífico, e que circula junto ao canal. C) Cebus capucinus, um dos muitos habitantes da região. D) Um dos outros habitantes do canal.

Não bastasse o contacto entre os dois oceanos, o Panamá desenha ainda a transição entre as duas opostas “Américas”, fazendo parte do que se convencionou, talvez sem grande sustentação geográfica, de América Central. Demasiados qualificativos para tão pequeno país. Geologicamente falando, a terra está cheia de vulcões e de evidências dessa atividade, bem adormecidos, cujo tempo de inatividade contribuiu para uma intensa cobertura vegetal. Mesmo assim, a geomorfologia pode dar uma boa ajuda no reconhecimento de alguns aparelhos vulcânicos (FIGURAS 3 e 4).

Do ponto de vista geodinâmico, estamos perante uma região de grande complexidade tectónica, onde confluem demasiadas placas litosféricas para tão exígua área do planeta. À volta do Panamá, identificam-se as placas da América do Sul, Caraíbas, Cocos e Nazca, e onde as zonas de subducção levam clara vantagem em relação aos limites distensivos de rifte.


FIGURA 3. Os ensinamentos da geomorfologia: a caldeira vulcânica do Valle de Antón (província de Coclé). Um antigo vulcão do Neogénico escondido entre a imensa vegetação.

Mas a complexidade não fica por aqui, já que são vários os blocos de tendência compressiva que se desenvolvem entre as placas da América do Sul e das Caraíbas e as restantes duas placas do Pacífico1, 2, responsáveis por grande parte do relevo desta estreita faixa continental. Por isso, não é de estranhar que as evidências de natureza vulcânica sejam as dominantes, remontando as mais antigas ao Cretácico terminal. De tal ordem, que grande parte do registo sedimentar é feito somente a partir do final do Paleogénico. E quase sempre acompanhado por litologias magmáticas extrusivas. Uma evolução geológica recente que conduziu à origem do istmo do Panamá. Não sendo exatamente consensual — e jamais o será, conhecendo os exercícios sustentados em fundamentos paleontológicos e isotópicos a que os geólogos são obrigados a fazer —, os vários estudos geológicos apontam para que a união por terra das duas américas se tenha concretizado, pelo menos nos últimos 3 milhões de anos3, 4, 5, 6. A ligação que proporcionou a migração dos organismos terrestres. E que nos permite chegar por terra à parte mais setentrional do Caribe.

Trespassado o canal, entre a capital do país e a muy latina ciudad de Colón — está bem de ver a origem do nome —, chegamos ao Caribe. Uma viagem que pode também ser realizada de comboio, seguramente das mais curtas de todas entre oceanos (FIGURA 2B)). A nordeste de Colón, banhada por águas bem mais quentes que as do Pacífico, encontra-se a cidade de Portobelo, rodeada de enseadas e de uma vegetação luxuriante. A paisagem é simplesmente fantástica. Neste pequeno povoado sobressaem alguns imóveis históricos como os Fortes de Santiago e de São Jerónimo, antigas praças espanholas, identificadas como Património Mundial pela UNESCO (FIGURA 5). Para manter o nível elevado, os espetaculares blocos de calcário recifal que se observam na construção destes fortes (FIGURA 6). Fácil de entender já que nas redondezas existem manchas cartográficas com recifes coralíferos de idade holocénica7.


FIGURA 4. Esboço geológico do aparelho vulcânico de Vale de Antón e composição química das suas águas termais (Poços termais do Vale de Antón).


FIGURA 5. O Forte de Santiago em Portobelo com vista privilegiada sobre o Mar das Caraíbas. Paisagem de piratas!

Damos então o salto até à Flórida. Curiosamente, uma viagem efetuada 9 anos antes da visita realizada ao Panamá.


FIGURA 6. Aspeto dos calcários coralíferos que compõem o Forte de São Jerónimo em Portobelo.

A uma espécie de paraíso dos Estados Unidos da América, devido a todo o contexto tropical que combina exposição solar, palmeiras e mar recifal. Apesar de ser um dos seus 50 estados, a ambiência não muda assim tanto relativamente à terra do General Noriega, a começar pelo idioma. Em especial, se andarmos pela Little Havana de Miami, sentiremos mesmo a atmosfera de Cuba, que até nem fica longe. Mas será só em espírito. Por essa razão, as memórias levam-nos a tantas películas de Hollywood centradas neste lugar que é, no mínimo, provocador. Mas, como o nosso foco é a geologia, a geomorfologia, a opção recai na série policial CSI Miami e, especificamente, no seu genérico. Onde se percebe que, para além da imensa zona costeira, uma das principais imagens de marca deste estado americano, grande parte da sua área é extraordinariamente rasa. Infinitamente rasa, se considerarmos que a Flórida apresenta uma área quase duas vezes superior à de Portugal, e o seu ponto mais elevado excede pouco mais de uma centena de metros. O que é aparentemente péssimo para a geologia e, em especial, para a análise estratigráfica, dada a limitação de afloramentos que possam ajudar a contar uma história geológica mais completa deste lado do planeta. Isto significa que a superfície dos terrenos da Flórida é ainda mais recente do que a do istmo do Panamá. Diríamos, um pouco mais, uma vez que as unidades mais antigas remontam ao Eocénico (~ 50 milhões de anos), sendo cada vez mais recentes à medida que migramos para sul8. A diferença está em que as unidades geológicas na Flórida são inteiramente de origem sedimentar, acumuladas unicamente pela ação combinada dos efeitos do clima e das variações do nível do mar. Os limites das placas litosféricas estão bem longe pelo que confere à geologia a “simplicidade” que o Panamá não tem na hora da sua análise.

A prova da “juventude” das rochas pode ser testemunhada na Tocha da Amizade, em plena downtown de Miami (FIGURA 7). Um monumento muito curioso, dedicado aos diferentes povos americanos que ajudaram a construir a América, e também ao célebre presidente americano John Fitzgerald Kennedy. Excelentes e merecidas razões. Mas, como “cereja no topo do bolo”, são as impressionantes rochas de calcário recifal que dão corpo ao monumento. Não tão diferentes das de Portobelo, mas mais “limpinhas” e cortadas a preceito. O monumento também é recente. Uma surpresa, pela espetacularidade da rocha ornamental, cuja variabilidade pode converter-se num belo atlas de fósseis de corais (FIGURA 8).

As rochas da Tocha da Amizade provêm de algumas pequenas pedreiras existentes na região, refletindo a sedimentação carbonatada, que ocorreu em grande parte da Flórida, durante a fase mais quente que antecedeu a última glaciação plistocénica. Reportamo-nos aos cerca de 125 mil anos9, registo resultante de uma fase de subida do nível do mar, que terá inundado uma parte significativa da atual Flórida, e que terá originado também as Florida Keys. Uma sucessão muito sui generis de ilhas coralíferas, que se dispõem paralelamente ao continente, em direção ao Golfo do México. São conhecidas pelas extensas pontes que as unem e que se sustentam sobre o Atlântico! Digno de ser visto para além da vasta lista de filmes aqui rodados. Convém lembrar, ainda, que o arquipélago das Bahamas está a curta distância. E que mereceu uma curta visita. Paradisíacas ilhas atlânticas e que constituem um dos melhores exemplos no estudo da sedimentação carbonatada atual (FIGURA 9)10, 11. À semelhança dos exemplos das ilhas do Índico, já visitadas12, 13.


FIGURA 7. A Tocha da Amizade, excelso monumento na cidade de Miami, construído de calcários recifais do Plistocénico.

Circulando pelo interior da Flórida, são inúmeros os lagos e as zonas húmidas, pois neste lado do mundo, a pluviosidade também é uma constante, e tudo resultado da dinâmica entre a atmosfera e o oceano. Tal como no Estado de Louisiana, as zonas pantanosas ocupam vastas áreas do território. O genérico de CSI Miami orienta-nos para uma visita obrigatória ao Parque Nacional Everglades, localizado no sul da Flórida, relativamente perto de Miami. Um espaço de grande relevância ecológica, cuja notoriedade foi distinguida pela UNESCO, com os seus swamps, alligators e os inesquecíveis tours de airboat, os barcos acionados por uma hélice gigante na popa (FIGURAS 10 e 11).


FIGURA 8. Detalhe dos belos recifes de coral fossilizados patentes na Tocha da Amizade. Uma magnífica aula prática de sedimentologia de carbonatos.


FIGURA 9. O icónico farol da pequena Ilha Paradise, a norte de Nassau, capital das Bahamas. Sob o farol observa-se pequena plataforma carbonatada datada do Plistocénico – Holocénico, como todas as rochas da Ilha Providence.

Dada a morfologia rasa e a ocorrência de muita água à superfície, as rochas mal se observam, estando garantidamente preservadas sob os solos pantanosos, naturalmente impermeáveis. Objetivamente, e comparando com a geologia das vizinhas Keys, a subsuperfície de Everglades será previsivelmente composta por litologias carbonatadas, bioclásticas e recifais, resultantes da elevada temperatura da água do mar e do jogo das variações do nível do mar, ocorridas ao longo da parte terminal do Cenozoico. Uma região de há muito tempo influenciada pelos caprichos da igualmente gigante Corrente do Golfo que passa bem ao largo de toda a costa oriental dos Estados Unidos e que confere clima relativamente ameno ao noroeste da Europa. Mas com os impactos atmosféricos destrutivos dos furacões, ampla e historicamente conhecidos no lado ocidental do Atlântico, quando a temperatura da água do mar excede determinados limites.


FIGURA 10. O imenso pântano do Parque Nacional de Everglades com o seu carismático airboat. Rochas, nem vê-las.


FIGURA 11. Crocodilo de Everglades: um ícone majestático. Tal como no Canal do Panamá.

Realmente, nem tudo é perfeito. À semelhança dos riscos nas Maldivas12, ilhas que exibem igualmente uma componente sedimentar de natureza coralífera, uma pequena subida do nível do mar de cerca de 1 metro provocará a submersão, efetiva, de grande parte do sul da Flórida14. A península ficará bem mais pequena, com todos os prejuízos inerentes à civilização antropocénica. Neste caso, ao contrário do canal do Panamá, que fez “unir” novamente os dois oceanos, não haverá obra de engenharia que possa contrariar as imposições da natureza.