Incursões pelo Brasil II
Dos gnaisses aos encantos do litoral do Rio de Janeiro
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- U. Coimbra, DCT e MARE
Referência Duarte, L. V., (2024) Incursões pelo Brasil II, Rev. Ciência Elem., V12(1):009
DOI http://doi.org/10.24927/rce2024.009
Palavras-chave
Resumo
Já não cabem nos dedos das duas mãos as incursões realizadas na Cidade Maravilhosa. Desde o seu achamento, na perspetiva de quem escreve este relato, quando se cumpriam, precisamente, 500 anos da descoberta do Brasil. Ou seja, tudo começou no ano de 2000, sempre números redondos, e o propósito foi a participação no 31st International Geological Congress, realizado no Rio de Janeiro. A cidade que ao longo destes anos continua linda, com a sua morfologia que não terá paralelo, entre a conjugação de morros constituídos por rochas cristalinas, muito antigas, extensos cordões de areia, lagoas, lagunas e restingas.
Qualquer um dos lugares com nome sonante, a começar no Pão de Açúcar, de nível mundial. Até à praia artificial do Piscinão de Ramos, junto à poluída Baía de Guanabara, muito vivida na novela O Clone da TV Globo. Cuja trama também passou por Marrocos, pela cidade de Fez — por onde já passámos-, e imortalizada com a expressão feliz “onde cada mergulho é um flash”! Mas, pelo Estado Fluminense, as paisagens são outras, bem diferentes das litologias dos Atlas marroquinos e das suas idades geológicas1. É que no Brasil, os ambientes semiáridos, mais próximos do noroeste africano, ficam lá para o nordeste do país, no conhecido Sertão. Já relativamente à região do Rio de Janeiro, grande parte da sua zona costeira é ocupada pela extensa e quase interminável Mata Atlântica, que acaba por esconder a geologia. Contrastes que a geografia não perdoa, tão significativos como o choque cultural, que é real, encenado de forma brilhante na referida novela brasileira. Preparamo-nos então para “mergulhar” num conjunto de locais entre o litoral norte e sul do Estado do Rio de Janeiro. Desde Paraty, a histórica cidade colonial, património da Humanidade, que parece ter parado no tempo, até Cabo Frio, onde a água do Atlântico, no sentido contrário à corrente quente do Brasil, é muito mais fria do que se poderia conjeturar (FIGURA 1). Assunto a rever mais adiante.
Damos início ao la creme de la creme das nossas observações, em plena cidade do Rio de Janeiro. O Pão de Açúcar. Neste caso, mais de contemplação, à distância e dos mais diversos ângulos (FIGURA 2). Uma saliência bem marcada na orografia, composta por gnaisses — rocha que denuncia o maior dos metamorfismos —, cujos valores nominais de datação radiométrica apontam para um Proterozoico terminal, quase na fronteira basal do Fanerozoico2.
Intitulado como gnaisse facoidal, textura que se deve ao tamanho centimétrico dos cristais de feldspato que se encontram orientados, sob forma elíptica, resultado do processo de deformação que acompanhou o metamorfismo. Uma rocha que domina em toda a região do Rio de Janeiro, igualmente aflorante noutros lugares icónicos como é o caso do morro do Corcovado (FIGURA 3) ou na própria arquitetura da cidade, desde os principais monumentos às construções mais vulgares (FIGURA 4)3.
Um sintoma claro e inequívoco do lugar por onde andamos, que também tem granitos, a rocha que terá dado origem à metamórfica citada — os ortognaisses. Voltando ao Pão de Açúcar, é a morfologia que sobressai na paisagem, talvez dos exemplos mais difundidos mundialmente de inselberg, a relembrar o Wadi Rum da Jordânia. Mas as semelhanças entre os dois registos, são apenas no conceito geomorfológico. Toda a história geológica é bem diferente, apesar da idade das rochas de ambos os locais não ser assim tão desfasada no tempo4.
O complexo gnaissico e granítico (onde se diferenciam muitas tipologias) prolifera por grande parte da zona costeira sul do Estado do Rio de Janeiro, contrastando com algumas outras rochas metamórficas, talvez não tão fotogénicas.
Aqui e ali é possível darmo-nos conta de aspetos geológicos e litológicos significativos, entre a ocorrência de filões de rocha básica e de xenólitos de tamanho digno do Guiness World Record (FIGURAS 5A) e 5B)). As unidades metamórficas e magmáticas (plutónicas e vulcânicas) contrastam quer no tempo (Proterozoico até idades cenozoicas), quer na litologia, com unidades sedimentares do Neogénico terminal e do Quaternário, materializadas essencialmente por corpos pouco consolidados, e que são particularmente discerníveis junto à linha de costa. Mas o maior destaque vai mesmo para os contornos geomorfológicos da região, que confronta as unidades igneas e metamórficas com a cerrada Mata Atlântica e o oceano Atlântico. Entre os lugares de eleição, sobressai a Ilha Grande (FIGURA 6A)), a maior das ilhas, bem perto da igualmente conhecida Angra dos Reis5, e a já mencionada Paraty (FIGURA 6B)), mesmo junto à divisa com o Estado de São Paulo e ao Parque Nacional da Serra da Bocaina, que merece e agradece visita. Em termos das construções sedimentares recentes, é de realce a mega restinga da Marambaia, muito prazerosa, tal como é insinuada em Juracy de Caetano Veloso, que alberga a baía de Sepetiba, e que cresce em direção à Ilha Grande6.
Invertemos o percurso, realizado em períodos bem distintos, e deslocamo-nos para a extremidade oriental do Estado do Rio de Janeiro, um pouco para lá da região dos Lagos. De norte para sul, outros lugares famosos como Armação dos Búzios, Cabo Frio e Arraial do Cabo (FIGURAS 7 e 8), cuja etimologia fala por si. À semelhança de Angra dos Reis, os contornos da linha de costa continuam a ser particularmente notórios em termos geomorfológicos, desde pequenas penínsulas, cabos e baías7. As rochas ígneas e metamórficas, ligadas várias vezes ao continente através de cordões arenosos, continuam a reinar na paisagem. Não sendo particularmente atrativos em termos visuais, os arranjos litológicos têm um grande significado geotectónico, tal como é lembrado, com frequência e muito acima do esperado, através de painéis geológicos informativos posicionados em locais mais turísticos. Uma boa lição a retirar pelos organismos competentes que governam territórios com exemplos de geologia de excelência, e que pouco ou nada fazem para os valorizar. Em Armação de Búzios, onde poderemos tirar uma selfie com a Brigitte Bardot, feita em bronze, que ajudou a promover a cidade, estamos perante os “Himalaias brasileiros”, a refletir o velho e duradouro continente Gondwana (FIGURA 7B))8. O mesmo que aglutinou todas as massas continentais hoje observadas no hemisfério sul, mais a Índia, muito antes desta se deslocar para norte e formar os verdadeiros e atuais Himalaias.
Em Cabo Frio, o Forte de São Mateus parece ter uma história muito mais ampla do que a sua simples construção. Assenta sobre rochas metamórficas antiquíssimas, anfibolíticas, datadas com mais de 2000 milhões de anos (FIGURA 8A))9. Um outro aspeto igualmente digno de relevo, apesar da cor muito atrativa da água do mar, quase caribenha, é a sua temperatura, bem gelada, que margina a zona costeira desta região, e que lhe dá nome (FIGURA 8B))10. Um facto consequente do fenómeno de ressurgência, que tem lugar junto a Arraial do Cabo, ou seja, de uma corrente marinha profunda que tem origem junto à costa argentina e que ascende à superfície nesta zona costeira do Brasil. Uma ótima perceção, sentida na pele, do que é uma corrente de upwelling, aqui bem diferente das zonas do globo mais clássicas, como as que limitam as zonas oceânicas orientais, como a já visitada Namíbia, exatamente do outro lado do Atlântico Sul11.
Antes de regressarmos ao Rio, e por imposição geológica, somos obrigados a dar “um rolé” — não esquecer que estamos no Brasil — pela Lagoa Vermelha. Um pequeno “charco” de água, contíguo, mas separado do Atlântico, contido entre as grandes lagoas de Araruama e de Saquarema. No detalhe, são evidentes as semelhanças com o lago Thetis da Austrália Ocidental12, que foi visitado muito depois da lagoa fluminense. Mais um exemplo de ambiente hipersalino, facilmente inferido pela exploração de sal, e onde é possível encontrar, igualmente, construções microbianas. As esteiras microbianas, como é referido na literatura geológica brasileira13, 14.
Mas o interesse da Lagoa Vermelha não fica por aqui, já que neste contexto sobressai, associada à atividade microbiana, a génese de um mineral difícil de detetar nos ambientes sedimentares atuais: a dolomite15. O carbonato de cálcio e de magnésio. Perante tamanha raridade, ainda mais para quem tem a experiência profissional de lidar com a complexidade das rochas dolomíticas e com a ocorrência de estromatólitos no registo antigo, não nos jubilámos com uma simples visita. Estivemos por aqui duas vezes.
Deslocamo-nos para ocidente e chegamos à Baía de Guanabara. Literalmente falando. Nomeadamente à charmosa Ilha de Paquetá.
Entre os encantos deste pequeno pedaço de terra, realça-se a casa do ilustre José Bonifácio de Andrada e Silva, um nome associado aos primórdios da história do Brasil e da sua independência, tendo sido igualmente uma figura emblemática da história da mineralogia, a quem foi dado o nome da Andradite — um mineral do grupo das granadas —, e da Universidade de Coimbra (FIGURA 10A))16. Depois de uma iniciativa falhada no ano da (nossa) descoberta do Rio de Janeiro, a visita aconteceu mesmo, mas sete anos mais tarde. Em 2012, resultado da participação no 1.º Congresso de Geologia dos Países de Língua Portuguesa, realizado na cidade (igualmente) granítica e natal de Bonifácio, em Santos, foi possível perceber, finalmente, até onde vai a veneração a este português, feito cidadão brasileiro (FIGURA 10B)).
Desde 2000 que as visitas ao Rio de Janeiro têm sido recorrentes. A grande maioria por motivos de ordem profissional, ao abrigo de vários projetos científicos com universidades e empresas petrolíferas. Entre os percursos diários, a contemplação do Pão de Açúcar, do Corcovado ou do Morro dos Dois Irmãos, anteriormente capazes de nos deixarem boquiabertos, rapidamente deixaram de ser lugares incomuns. Todavia, tais paisagens jamais nos provocam fadiga visual. Afinal, o Rio de Janeiro é a Cidade Maravilhosa.
Agradecimentos.
Agradece-se aos colegas Victor Klein, João Graciano Mendonça Filho, Rodolfo Dino, René Rodrigues e Luiz Oliveira que nos receberam em várias ocasiões no Rio de Janeiro. A Ismar Carvalho pela leitura e crítica deste texto.
Referências
- 1 DUARTE, L. V. & SADKI, D., Geologia de Marrocos. Retratos do Sul do Rife ao Médio Atlas, Rev. Ciência Elem., V9(2):035. 2021.
- 2 VALERIANO, C. M. et al., Precambrian Gneisses in Rio: From the Sugar Loaf to the Arpoador Outcrops. During-Congress Field Trip, 3s1t International Geological Congress, Rio de Janeiro, Brazil, August 6 - 17, 2000, Field Trip Dft 01, 18p.. 2000.
- 3 MANSUR, K. L. et al., O Gnaisse Facoidal: a mais Carioca das Rochas, Anuário do Instituto de Geociências UFRJ, 31(2), 9-22. 2008.
- 4 DUARTE, L. V., Tesouros Geológicos da Jordânia, Rev. Ciência Elem., V6(4):078. 2018.
- 5 SILVA, L. G. E. et al., Mapa geológico à escala 1/100000, Folha de Angra dos Reis SF23-Z-C-II CPRM. 2007.
- 6 BORGES, H. V. & NITTROUER, C. A., Sediment accumulation in Sepetiba Bay (Brazil) during the Holocene: A reflex of the human influence, Journal of Sedimentary Environments, 1(1), 96-112. 2016.
- 7 FERNANDEZ, G. B., Classificação morfológica das dunas costeiras entre o Cabo Frio e o Cabo Búzios, litoral do Estado do Rio de Janeiro, Revista Brasileira de Geomorfologia, 18 (3) 595-622. 2017.
- 8 HEILBRON, M. et al., Geologia do Cabo de Búzios (Estado do Rio de Janeiro), Anais da Academia Brasileira de Ciências, 54, 553-562. 1982.
- 9 SCHMITT, R. S. et al., The tectonic significance of the Cabo Frio Tectonic Domain in the SE Brazilian margin: a Paleoproterozoic through Cretaceous saga of a reworked continental margin, Brazilian Journal of Geology, 46, suppl. 1, 37-66. 2016.
- 10 CASTELAO, R. M. & BARTH, J. A., Upwelling around Cabo Frio, Brazil: The importance of wind stress curl, Geophysical Research Letters, 33, L03602. DOI: 10.1029/2005GL025182.
- 11 DUARTE, L. V. & CALLAPEZ, P., Ambiências da Namíbia, Rev. Ciência Elem., V11(1):010. 2023.
- 12 DUARTE, L. V., Deambulando pela Austrália Ocidental I. Curiosidades do Quaternário da região de Perth, Rev. Ciência Elem., V7(3):053. 2019.
- 13 SILVA E SILVA, L. H. et al., Composição paleobiológica e tipos morfológicos das construções estromatolíticas da lagoa vermelha, RJ, Brasil, Revista Brasileira de Paleontologia, 7 (2), 193-198. 2004.
- 14 VASCONCELOS, C. et al., Lithifying microbial mats in lagoa vermelha, Brazil: modern precambrian relics?, Sedimentary Geology, 185, 175-183. 2006.
- 15 VASCONCELOS, C. & MCKENZIE, J. A., Microbial mediation of modern dolomite precipitation and diagenesis under anoxic conditions, (Lagoa Vermelha, Rio de Janeiro, Brazil). Journal Sedimentary Research, 67, 378-390. 1997.
- 16 VARELA, A. G. et al., As atividades do filósofo natural José Bonifácio de Andrada e Silva em sua fase portuguesa (1780-1819), História, Ciências, Saúde Manguinhos, vol. 11(3), 685-711. 2004.
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