Ambiências da Namíbia
Da geologia à época dos navegadores portugueses
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Referência Duarte, L. V., Callapez, P., (2023) Ambiências da Namíbia, Rev. Ciência Elem., V11(1):010
DOI http://doi.org/10.24927/rce2023.010
Palavras-chave
Resumo
Depois da Bacia de Benguela, da vizinha Angola1, voltamos à África Austral, agora de visita à Namíbia. Mais um pedaço de Terra inóspita, desértica, de paisagens despidas de vegetação. As suas gentes e faunas fundem-se nos seus habitats perfeitos, quase intocáveis e de fácil observação. Nesta incursão pela Namíbia vamos percorrer apenas uma ínfima parte do seu apelativo território, mais concretamente a sua porção noroeste e central. Ficam de fora desta prosa a Faixa de Caprivi, a caminho do Botswana e de onde sobressai o delta do Okavango — o rio que desagua no deserto do Kalahari —, e outros lugares icónicos, como as dunas vermelhas de Sossusvlei e o Fish River Canyon, este último, já na fronteira com a África do Sul. Também os diamictitos de Fransfontein Ridge, o melhor dos registos, à escala mundial, do maior evento glacial de toda a história da Terra, ocorrido há cerca de 645 milhões de anos. Motivos mais que suficientes para outras visitas, obrigatórias, para quem desfruta o fascínio pela Natureza.
No entanto, a presente expedição, que na realidade foram duas, também não fica por menos, tantos os lugares de atração e de referência mundial, todos dominados por ambiente desértico ou semidesértico: o lago seco do Etosha, que alberga uma das mais interessantes reservas de vida selvagem do planeta, a geomorfologia do Vale de Ugab, a floresta petrificada de Khorixas, a cidade mineira de Uis, terminando na longa Costa dos Esqueletos, onde o deserto de areia encontra o Atlântico Sul com três pontos de extraordinária identidade: Cape Cross, Walvis Bay, concluindo-se a visita no lugar de Sandwich Harbour (FIGURA 1). Começando pelo Norte, entramos na chamada Bacia do Owambo, cuja história geológica mais antiga remonta ao Proterozoico, uma idade muito bem preservada nas rochas por este lado do mundo2.
Estamos na reserva natural do Etosha, na região do Cunene, onde é possível o contacto, quase num frente-a-frente, com os Big Five. Sem esquecer todos os outros animais selvagens que andam por este tipo de paragens (FIGURA 2). A intenção é mesmo observar a diversidade faunística de quatro patas que por aqui vive, protegida, bastando para isso procurar os múltiplos charcos que existem em toda a reserva, que se enchem de água em torno do verão austral. A perpétua busca pelo bem mais precioso da vida.
Atente-se que, devido ao facto do clima não ser totalmente árido, uma parte significativa desta área converte-se num lago sazonal durante o curto período das chuvas.
Este vasto espaço tem um substrato de rochas sedimentares pouco permeáveis, onde se incluem evaporitos, carbonatos, lutitos e arenitos, numa sucessão de idade bastante recente, datada do Neogénico (Miocénico — Holocénico). Este registo, por vezes com uma mineralogia bastante singular, conta com meia centena de metros de sedimentos, e alguns níveis a exibirem evidências fossilíferas muito próximas dos parentes atuais, entre os 6 e os 4 milhões de anos. Todo este conjunto de sedimentos ter-se-á formado em ambiente lacustre, quando as condições climáticas eram ligeiramente diferentes das atuais (FIGURA 3)3, 4. Um paIeoIago com muita história, muito para além da biodiversidade que hoje se observa.
Em direção a sul, e antes da visita a Khorixas, a passagem pelo Vale de Ugab, o rio que dá nome à região, é obrigatória. Continuamos em terrenos cenozoicos, embora mais antigos do que os do Etosha. Na paisagem despontam uma série de geoformas notáveis, resultantes da intensa erosão entre as várias unidades sedimentares de natureza arenosa e conglomerática que aqui se encontram registadas. Estamos a referir-nos às conhecidas “mesas de Ugab”, onde se inclui, também, a afamada e icónica finger rock, a Vingerklip, em africâner (FIGURA 4)5. Todo um lugar que, pela geomorfologia e pelos processos envolvidos, nos faz lembrar outras paragens, a começar pelo faroeste americano.
Entretanto, estamos perto de um dos lugares de maior relevância geológica desta região. Quase no meio do nada, em termos de civilização humana, entramos no Monumento Nacional da Floresta Petrificada de Khorixas (FIGURA 5A)). Na realidade, fica a algumas dezenas de quilómetros desta localidade, por caminho penoso e pedregoso. Mas, a visita vale “muito a pena”, pela oportunidade de se observar uma fossilização excecional de restos vegetais de grande porte, que terá ocorrido há cerca de 280 milhões de anos. Associado a um ambiente fluvial de inundação extrema, os troncos de tamanho gigante terão sido rapidamente arrastados e soterrados por depósitos siliciclásticos, os quais terão ajudado à sua excecional preservação5, 6. Com o decorrer do tempo, e em Geologia isso significa milhões de anos, o carbono da matéria orgânica deu lugar à sílica, um composto químico que domina a crosta terrestre, que ajudou a preservar até hoje estes belos exemplares da flora do final da Era Primária (Pérmico), e que os processos erosivos puseram a descoberto. Um fenómeno em tudo semelhante ao observado na Petrified Forest do sudoeste dos Estados Unidos da América, neste caso de idade triásica, um dos exemplos do género mais conhecidos no mundo global. Mas Khorixas não fica por aqui, já que tem um grande bónus para os naturalistas, ímpar em todo o mundo. A possibilidade de associar na mesma imagem um tronco fóssil de uma conífera, dos finais do Paleozoico, com a endémica Welwitschia mirabilis, exclusiva desta região desértica. Perfeita simbiose para os botânicos e geólogos, num puro capricho da Natureza (FIGURA 5B)).
Mais para sul, a caminho do litoral Atlântico, entramos na região de Erongo, onde nos vamos manter até ao final desta viagem. A paragem em Uis também é indispensável. Um pequeno aglomerado populacional, antigo centro mineiro, que durante décadas viveu à custa da exploração de pegmatitos com cassiterite. O mesmo é dizer, particularmente ricos em estanho, com concentrações bem acima dos valores normais da crosta terrestre. Nesta região estão cartografados mais de uma centena de corpos magmáticos, intruídos em xistos quartzo-biotíticos da Formação Amis River, com dimensões que chegam a atingir mais de um quilómetro de extensão7. Para além das crateras de origem antrópica, que resultaram da extração do referido minério a céu-aberto, a “atmosfera” mineira é tão grande, que os pequenos hotéis de Uis podem ser autênticos museus, repletos de motivos alusivos (FIGURA 6).
Até os quartos levam nomes de minerais... Na boa memória, ficou uma performance acústica que rezava qualquer coisa como “rocks and stones are in my bones”. Naquilo que parecia ser um encontro de mineiros (e geólogos) aposentados. Dará para imaginar…
E chegamos à lendária e agreste Costa dos Esqueletos, que é uma espécie de cemitério de embarcações naufragadas e de ossadas de mamíferos marinhos, amplamente conhecida da etimologia geográfica. Andamos pelos 21° de latitude sul, que aqui interseta o percurso para norte da corrente fria de Benguela. Por isso, esta é uma das zonas de upwelling mais conhecidas do globo e, consequentemente, das mais ricas em ictiofauna. Os efeitos da aridez são visíveis, através da quase ausência de vegetação e pelos campos dunares que cobrem grande parte da paisagem. De norte para sul, começamos no Cape Cross, onde afloram, de modo envergonhado, rochas intrusivas básicas (tipo gabros) do chamado Complexo de Cape Cross8. Um lugar que muito diz aos portugueses pela passagem do navegador Diogo Cão, que aqui ergueu um padrão com as armas de D. João II, em 1485. Numa viagem que contrariou o efeito das trade winds dos dois hemisférios, e que terá deixado o rasto para as futuras incursões de Bartolomeu Dias e de Vasco da Gama pelo Atlântico Austral. Era, até então, o feito mais meridional conquistado pelos portugueses. Coincidentemente, ou talvez não, aqui reside uma importante colónia de leões-marinhos, das mais conhecidas a nível mundial, e que dá nome à Reserva aqui, há muito criada. Uma espécie de arena, de autêntico festival, que combina milhares de indivíduos cheiro nauseabundo, som e movimento dado o corrupio com que surfam, de forma completamente “inebriante”, na intensa ondulação que rebenta junto ao litoral (FIGURA 7). Digno de ser apreciado, com tempo, e tudo ao lado da réplica da cruz de Diogo Cão (FIGURA 8).
Mais a sul, antes de se chegar a Walvis Bay, atravessa-se Swakopmund, a grande capital da região, uma cidade com selo alemão. Mas é Walvis Bay que tem chama, já que somos presenteados com os múltiplos ícones da cidade. A começar pelo seu porto, uma vez que a corrente fria que por aqui passa, é propensa à pescaria.
Ao entrar pelo Atlântico dentro, umas boas centenas de quilómetros, a cartografia marítima (e geológica) mostra uma morfologia bem desenhada no fundo marinho — a Walvis Ridge —, que se prolonga até à crista média oceânica central, materializada por grandes volumes de rocha vulcânica, associada à pluma mantélica que deu origem ao hotspot de Tristão da Cunha, construção geológica intimamente relacionada com a evolução do Atlântico Sul e iniciada durante o Cretácico9, 10. Junto à zona costeira, sobressai a enorme laguna de Walvis Bay que, na realidade, se subdivide em vários subambientes de transição, entregues aos cordões de areia que se multiplicam e delimitam massas de água do mar aberto, e que se encontram profusamente ocupadas por bandos de flamingos, em permanente bailado (FIGURA 9A)). Mas não ficamos por aqui. Embora mais restrita, mas igualmente distinta, a família dos pelicanos. A realidade é tão deslumbrante, que existe um tal de Pelican Point, que obriga a consumir o necessário tempo de “adoração” a estas imponentes aves aquáticas.
Deixando Walvis Bay, por terra, chegamos num ápice a Sandwich Harbour. Lugar de dunas tão gigantescas quanto escaldantes que, neste lado do planeta, fazem concorrência com as de Sossusvlei, mas com as primeiras a mergulharem diretamente no Atlântico. Mais uma imagem clássica do sudoeste africano, aqui bordejada por uma laguna. Antes disso, atravessa-se um mar de sal, as salinas de Walvis Bay que, caso a latitude andasse pelos 60°—70° sul, se confundiriam, inevitavelmente, com gelo ou neve (FIGURA 9B)).
Mas estamos a cerca de 23°21’, o mesmo é dizer, a poucos minutos do Trópico de Capricórnio (FIGURA 10). Ou seja, num dos lugares mais secos do planeta, juntando na paisagem, num curto espaço, sal e areia em perfeita sintonia. Mas, considerando o local, podemos ir mais longe do que a paisagem, fantástica, nos oferece.
E relembrar, por exemplo, que essa linha imaginária de Capricórnio está em constante alteração, resultado da inclinação do eixo da Terra. Este, sem se dar grande conta, está presentemente numa fase de diminuição. O tal do ciclo de obliquidade do sérvio Milutin Milankovitch, de cerca de 41000 anos, e que, combinado com os seus outros dois ciclos orbitais, a precessão dos equinócios e a excentricidade, regulam a energia solar que chega à superfície da Terra. E que, consequentemente, controlam todo o seu clima.
O mote está dado, por esta Namíbia de ambiências remotas, de paisagens largas e impressionantes, cores e cheiros. E o tanto que fica por deslindar.
Referências
- 1 DUARTE, L. V., De regresso à geologia de Angola: II. O Meso-Cenozoico da Bacia de Benguela, Rev. Ciência Elem., V8(2):028. (2020). DOI: 10.24927/rce2020.028.
- 2 MILLER, R., African Basins, Elsevier, Sedimentary Basins of the World, Volume 3, 237-268. 1997.
- 3 PICKFORD, M. et al., Mio-Plio-Pleistocene geology and palaeobiology of Etosha Pan, Namibia, Communications of the Geological Survey, 14, 95-139. 2009.
- 4 MILLER, R. M. et al., The geology, palaeontology and evolution of the Etosha Pan, Namibia: implications for terminal Kalahari deposition, South African Journal of Geology, 113, 3, 307-334. 2010. DOI: 10.2113/gssajg.113.3.307.
- 5 SCHNEIDER, G., The Roadside Geology of Namibia, Sammlung Geologischer Fu?hrer, 97, 294 p.. 2008.
- 6 KRÄUSEL, R., Der “Versteinerte Wald“ im Kaokoveld, Su?dwest-Afrika, Senckenbergiana lethaea, 37, 411-453. 1956.
- 7 DIEHL, M., Rare metal pegmatites of the Cape Cross-Uis pegmatite belt, Namibia: geology, mineralization, rubidiumstrontium characteristics and petrogenesis, Journal of African Earth Sciences, 17, 167-181. 1993.
- 8 DIEHL, M., Preliminary report on the Cape Cross – Uis pegmatite field, Communications of the Geological Survey of S.W. Africa/Namibia, 2, 37-42. 1986.
- 9 O‘CONNOR, J. M. & DUNCAN, R. A., Evolution of the Walvis ridge–Rio Grande rise hot spot systems: Implications for African and South American plate motions over plumes, Journal of Geophysical Research, 95, B11, 17475-17502. 1990.
- 10 USSAMI, N. et al., Origin of the Rio Grande Rise–Walvis Ridge reviewed integrating palaeogeographic reconstruction, isotope geochemistry and flexural modelling, Geological Society London, Special Publications, 369, 129-146. 2012.
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