Ouvindo peixes debaixo de água
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Referência Vieira, M., Pedro, S., Quintella, B. R., Fonseca, P. J., Amorim, M. C. P., (2024) Ouvindo peixes debaixo de água, Rev. Ciência Elem., V12(3):027
DOI http://doi.org/10.24927/rce2024.027
Palavras-chave Som, Comunicação, Marinho, Ecologia, Etologia, Bioacústica, Peixe
Resumo
Debaixo de água pode-se ouvir uma cacofonia de sons produzidos por diversas espécies. Apesar de os cetáceos e baleias serem os animais sonoros aquáticos mais conhecidos, em muitos locais os sons produzidos pelos peixes são um componente predominante da paisagem acústica subaquática. Várias espécies de peixes que ocorrem em Portugal são conhecidas por produzirem sons, com destaque para espécies nativas tais como o xarroco (Halobatrachus didactylus) e a corvina- -legítima (Argyrosomus regius), e espécies invasoras como a corvinata-real (Cynoscion regalis). O som pode ser uma importante ferramenta para os investigadores avaliarem e monitorizarem espécies, incluindo peixes, e ecossistemas aquáticos. O caso da corvinata-real — uma espécie que invadiu alguns estuários portugueses — é exposto aqui como um exemplo da aplicabilidade da monitorização do som subaquático utilizando hidrofones.
Debaixo de água o som pode ser uma fonte de informação muito importante. A água permite propagar sinais acústicos cerca de cinco vezes mais rapidamente do que o ar e, se excluirmos águas rasas, até longas distâncias (por exemplo, até ca. 200 km para a baleia-azul)1, 2. De facto, muitas espécies aquáticas utilizam o som para percecionar o ambiente que os rodeia, decidir na escolha do habitat, detetar predadores e presas, alertar sobre a presença de predadores ou atrair parceiros para reprodução3, 4. Como consequência, o som pode não só ser muito importante para os organismos aquáticos, como para o investigador que os estuda, pois oferece uma ferramenta para avaliar e monitorizar espécies e ecossistemas aquáticos.
Paisagens acústicas e Monitorização acústica passiva.
A paisagem acústica é o conjunto de todos os sons que se podem ouvir num local. Normalmente podemos ouvir sons de origem biótica (sons produzidos por animais), abiótica (como por exemplo sons resultantes da ação do vento ou da chuva), sendo também de destacar os sons de origem antropogénica (como os resultantes do tráfego marítimo)5. Mesmo sem ter a consciência disso, as pessoas percecionam diariamente as paisagens acústicas ao seu redor, podendo extrair informação relevante, como por exemplo distinguir locais com elevada biodiversidade de locais degradados6. Já no clássico livro infantil A Fada Oriana de Sophia de Mello Breyner Andresen, o silêncio surge como maneira de indicar a degradação da floresta, mostrando que até os “amigos pássaros fugiram”7. Neste contexto, a monitorização acústica passiva surge como um método que envolve a utilização de sensores acústicos (por exemplo, usando microfones ou hidrofones; FIGURA 1) para gravar a paisagem acústica, a partir da qual se pode então inferir informação com relevância ecológica.
Mas os peixes produzem sons?
Em muitos locais os sons produzidos pelos peixes são um dos componentes predominantes da paisagem acústica9, 10. Muitos peixes produzem sons para comunicar, especialmente durante a época de reprodução, em contextos agonísticos (que pode incluir lutas por território ou comida) ou de acasalamento11. Para além disso, os peixes possuem a maior diversidade de mecanismos de produção de sons entre os vertebrados12. Isto contraria a ideia que a maior parte das pessoas tem relativamente a estes organismos aquáticos. Contudo, apesar de ainda ser necessário desvendar muito sobre a comunicação acústica nos peixes, o facto de muitas espécies produzirem sons para comunicar não é uma novidade. Já em 1870 o escritor Júlio Verne, numa das suas obras mais famosas, as Vinte Mil Léguas Submarinas, relatava que “Alguns autores, mais poetas que naturalistas, afirmam que estes peixes cantam melodiosamente e que as vozes reunidas de todos formam um concerto que não pode ser igualado por um coro de vozes humanas.”13. Jacques Cousteau, um famoso e pioneiro oceanógrafo francês, não podia estar mais enganado quando intitulou o seu primeiro grande documentário sobre o mundo subaquático marinho de O Mundo do Silencio.
Em Portugal também existem peixes que produzem sons?
Ainda não se sabe exatamente quantas das espécies que ocorrem em Portugal produzem sons ativamente para comunicar. A caracterização dos sons produzidos pelos peixes é um dos desafios atuais14. Contudo, espécies como o rascasso15, castanhetas16, cabozes17, ruivos9 e cavalos- marinhos18 são conhecidas por produzirem sons. Duas espécies que ocorrem em Portugal são notórias pela quantidade e intensidade dos sons que produzem: o xarroco (Halobatrachus didactylus) e a corvina-legítima (Argyrosomus regius), dominando a paisagem acústica do estuário do Tejo na altura da primavera/verão9 (FIGURA 2).
O xarroco é uma espécie com um repertório invulgarmente grande, produzindo sirenes, coaxos e tamborilados19. Nesta espécie, os machos produzem sons para atrair as fêmeas para os seus ninhos, que são espaços entre ou debaixo de rochas20.
As fêmeas depositam os ovos na parte superior do ninho, mas são os machos os responsáveis pelos cuidados parentais. Isto é, são os machos que ficam no ninho a cuidar das crias, arejando e limpando a postura, e defendendo-a de predadores. É importante salientar que machos que não produzam sons não conseguem acasalar21. Os sons, para além de serem importantes no sucesso reprodutor, têm também um papel nas interações entre os machos. Os machos territoriais não vocalizam aleatoriamente; eles monitorizam os seus vizinhos e, face a isso, ajustam o seu próprio ritmo para evitar sobreposição dos seus sons22.
A corvina-legítima possui um repertório mais limitado do que o xarroco, mas não é por isso menos impressionante. Geralmente, próximo do por-do-sol e durante a época de reprodução na primavera, centenas de indivíduos agregam-se para vocalizar durante os rituais de acasalamento, produzindo coros como os que Júlio Verne refere13, 23. Estes coros podem ser compostos por chamamentos longos (grunts em inglês), ou sons muito curtos (knocking sounds em inglês)24. Estes coros são dos eventos naturais mais “ruidosos” do mundo25. São conhecidos há muito pelos pescadores que, ao colocarem o ouvido junto ao casco da embarcação, conseguem identificar a presença desta espécie, aumentando dessa forma a probabilidade de captura26.
O caso da corvinata-real — espécie invasora no estuário do Tejo.
As espécies invasoras são uma das principais ameaças à biodiversidade a nível global27. As espécies não-indígenas invasoras constituem uma ameaça para espécies nativas, habitats e ecossistemas, podendo a sua presença conduzir à diminuição da biodiversidade e ao depauperar dos serviços dos ecossistemas28.
A corvinata-real (Cynoscion regalis) é um dos peixes marinhos invasores mais recentes na península Ibérica29. Pertencendo à mesma família que a corvina (família Sciaenidae), esta espécie é originária da costa nordeste da América do Norte, onde habita águas costeiras pouco profundas e estuários. Em Portugal, esta espécie invasora foi detetada pela primeira vez no estuário do Sado em 201230. Atualmente é também abundante no estuário do Tejo, onde poderá ter um impacto direto na corvina-legítima por competir pelo mesmo habitat e por recursos alimentares31. Adicionalmente, ambas as espécies ocupam o mesmo nicho acústico, i.e., possuem vocalizações semelhantes (FIGURA 2) e produzem coros durante o mesmo período do dia (próximo da hora do por-do-sol; FIGURA 3)32.
Estando a desova da corvina e da corvinata associada à produção de sons, estes podem indicar não só a presença destes animais, mas potencialmente também a sua capacidade de produzir descendentes24, 33. A utilização da monitorização acústica passiva pode, assim, ser um instrumento vantajoso e não invasivo para o estudo a longo prazo de ambas as espécies, com contribuições diretas para a sua gestão e conservação. A infraestrutura CoastNet34, 35, implementada pelo MARE (Centro de Ciências do Mar e do Ambiente), tem permitido acompanhar, através dos registos acústicos, a evolução da tendência populacional da corvina-legítima e da corvinata-real no estuário do Tejo, e é considerada fundamental para este tipo de investigação e monitorização.
Tratando-se de uma infraestrutura científica inovadora no nosso país, o CoastNet permite a aquisição e disponibilização de dados biológicos, entre outras variáveis, em tempo quase real. Entre esses dados, encontram-se os que são obtidos através de uma rede de hidrofones (sensores acústicos) colocados ao longo do estuário do Tejo. A informação que esta infraestrutura permite obter, e em particular os dados obtidos a partir do registo contínuo e automático do som subaquático, apoia uma série de iniciativas e legislação que exigem a monitorização dos ambientes costeiros, dando desta forma resposta a obrigações nacionais para a implementação de Diretivas Europeias, como é o caso da Diretiva Quadro da Estratégia Marinha36 (DQEM), que tem como objetivo principal a proteção e preservação do meio marinho, garantindo a sua utilização sustentável. Estudos como o que se descreve neste texto, que incidem na monitorização de espécies com elevada importância económica, como é o caso da corvina-legítima, permitem avaliar o estado destes recursos e a eficácia das medidas de gestão adotadas. Esta monitorização é ainda essencial para a tomada de decisões informadas e para a definição de políticas públicas que visem a conservação e restauro dos ecossistemas marinhos.
Agradecimentos
Este artigo foi elaborado no âmbito da MARE Mini-Grant intitulada PAMEggs - Assessing temporal and spatial spawning overlap between invasive weakfish (Cynoscion regalis) and native meagre (Argyrosomus regius) with Passive Acoustic Monitoring, financiado por Fundos Nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia no âmbito do projeto estratégico UIDP/04292/2020.
Referências
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- 3 MULLET, T. C. et al., The acoustic habitat hypothesis: An ecoacoustics perspective on species habitat selection, Biosemiotics, 10, 319-336. 2017.
- 4 LADICH, F., & WINKLER, H., Acoustic communication in terrestrial and aquatic vertebrates, Journal of Experimental Biology, 220, 13, 2306-2317. 2017.
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