Retratos geológicos da Turquia
Uma união perfeita com o património construído
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- U. Coimbra, DCT e MARE
Referência Duarte, L. V., (2024) Retratos geológicos da Turquia, Rev. Ciência Elem., V12(4):043
DOI http://doi.org/10.24927/rce2024.043
Palavras-chave
A presente viagem começa na imensa Istambul, a outrora, famosa, Bizâncio e Constantinopla. Uma cidade, veja-se bem, que separa dois continentes! Certos da grandeza do lugar e da envolvência que perpassa o mistério e o enigmático, a perspetiva é deixar a Europa, atravessar o Bósforo e conhecer um pouco da extensa península da Anatólia. Uma vez mais, a perspetiva é a leitura geológica das paisagens e de lugares de vulto, mas neste caso com impactos no património construído. Uma geologia, como veremos, de elevado interesse e importância geoturística, mas igualmente complexa, já que, estando na placa euroasiática, a intersecção com as placas litosféricas africana e arábica não está longe, com as suas consequentes ramificações tectónicas e estruturais1. Entre os lugares e as opções geológicas propostas, e porque todos exibem enormes predicados, para além de Istambul, emergem Ancara, Lago Tuz, Capadócia, Pamukkale e Éfeso (FIGURA 1). Cada local à sua maneira. E que lugares!
Tendo como referência visual os opulentos minaretes da Mesquita Azul e da Basílica de Santa Sofia, a colina europeia mais meridional da cidade de Istambul delimita a fronteira entre o Mar de Mármara, contíguo ao Egeu, e o curto Estreito de Bósforo (FIGURA 2). Este, além de ligar o histórico e geologicamente ativo Mediterrâneo ao Mar Negro, desenha a fronteira entre os continentes europeu e asiático.
Magnífico enquadramento com tantas designações geográficas e, por consequência, histórias geológicas. Neste contexto podemos aproveitar para conhecer um pouco da geologia deste espaço de união de ambientes marinhos que não tem paralelo. Desde logo, explorar o pequeno Mar de Mármara, cuja designação provém da ilha com o mesmo nome, onde ocorrem rochas de origem metamórfica, os “mármores de Mármara”. Rochas ornamentais com nome firmado, que originalmente se terão formado como calcários e dolomitos durante o final do Paleozoico2 e que, com o tempo — o mesmo é dizer, sob efeitos da pressão e temperatura —, se transformaram nos equivalentes metamórficos, de grande interesse comercial e que dão corpo a imensos registos arqueológicos das mais longínquas civilizações que habitaram o Mediterrâneo oriental. Por outro lado, poderemos também aproximar-nos do vizinho Mar Negro, e examinar um dos ambientes marinhos de salinidade inferior ao normal, onde atualmente se acumula mais matéria orgânica, devido à ausência de oxigénio de grande parte da sua coluna de água. A situação é tão alarmante que, além da anoxia, a ocorrência do composto gasoso e venenoso, apelidado de ácido sulfídrico, em grande parte da massa de água, impede a proliferação de vida marinha. Um mar que tem uma história evolutiva muito recente, abrangendo o Plistocénico e o Holocénico, plasmada em alguns relatos bíblicos — como é o caso do grande Dilúvio e da sua Arca de Noé. Mas que não é mais do que o resultado das constantes variações climáticas que ocorreram na história mais recente do nosso planeta3. Este assunto daria para uma longa e interminável reflexão, tanta a discussão científica em torno deste tema. Mas a ideia é mesmo atravessar o Bósforo, cruzando a fronteira entre a Europa e a Ásia, através de uma das várias obras de engenharia existentes, e chegar à capital da Turquia. Uma viagem que nos leva por uma geologia extraordinariamente variada e complexa, a cobrir uma parte significativa da coluna cronostratigráfica do Fanerozoico mas, para quem não conhece, de difícil discernimento. Com unidades muito compartimentadas no espaço, já que os efeitos da tectónica se multiplicam mais do que o normal4.
Já em Ancara, uma cidade cuja ambiência fica a “anos-luz” da antiga e secular capital do império otomano, não nos centramos em qualquer recanto paisagístico de especial relevância geológica. Até porque se existe, não o vislumbrámos. Mas essa ausência também é previsível, sabendo que a complexidade geológica se mantém por toda a região. No caso, misturando rochas basálticas de sequências ofiolíticas, de idade cretácica, com sedimentos marinhos típicos de vários ambientes sedimentares5. Os efeitos compressivos que fecharam o mar de Tétis e que deram origem ao novo Mediterrâneo estão aí. Perante tamanha confusão geológica, só possível de ser contada por especialistas, resta-nos olhar para o Anitkabir, o mausoléu erguido em honra do fundador do país, Mustafa Atatürk. O principal ex-libris da cidade, que não poderia deixar de ser um vulto arquitetónico de grandiosidade extrema. Ou não estivéssemos em terra de antigos sultões. Neste caso, sinalizado pelo amarelo, berrante, das rochas que constituem o “esqueleto” do monumento (FIGURA 3A)), o travertino (FIGURA 3B))6, 7 — e pelas pedras ornamentais de exceção que compõem o seu interior. O travertino faz parte das rochas sedimentares carbonatadas, de origem continental (água doce), exatamente do mesmo tipo das que deram origem à maioria da arquitetura histórica e também contemporânea que prolifera na cidade eterna: a Roma dos romanos, que tem na sua região um subsolo rochoso desta natureza. As mesmas rochas que, embora de expressão espacial muito mais restrita, e sem o mínimo interesse comercial, podemos encontrar junto às ruínas de Conimbriga, em Portugal. Umas rochas com uma textura “menos nobre”, devido à sua enorme porosidade7, e a que se dá o nome de tufo calcário. No caso, os conhecidos Tufos de Condeixa. Coisa com expressão geológica muito restrita. Ao invés, tal como na região de Roma, a Turquia é um país onde o travertino — assim como outras litologias carbonatadas8 —, constitui um importantíssimo recurso geológico, com grande número de pedreiras, ativas, dispersas por grande parte da Anatólia, e que estiveram na base da construção de Anitkabir. E de muitos outros monumentos espalhados pelo país.
Entretanto, é tempo de alcançarmos a Capadócia, um lugar incomparável à escala global. De onde se crê ser originário São Jorge, segundo a lenda, o cavaleiro que terá enfrentado o dragão, padroeiro de “meio mundo” da nossa Terra. Mas antes disso, e porque é digno de registo, atravessa- se o extenso lago Tuz, que quer dizer “salgado”, claro sintoma do clima que aqui reina, favorecido pela morfologia aplanada da região (FIGURA 4).
O segundo maior lago da Turquia, a fazer lembrar outras paragens por onde já passámos, como o Chott El D’Jerid na Tunísia9 e, num caso mais extremo, o próprio Mar Morto10. Aqui, pelo centro da Anatólia, o clima e a conjugação litológica, heterogénea, das unidades circundantes, desde os tais ofiolitos da crosta oceânica do antigo mar de Tétis, rochas metamórficas e sedimentares diversas, até litologias de rochas vulcânicas ácidas que iremos examinar na paragem seguinte, ajudam à multiplicidade de elementos químicos, ou melhor, de iões, que se concentram no lago, originando uma multiplicidade de novos minerais em diferentes posições do lago: halite, gesso, aragonite, calcite, dolomite e magnesite. Ou seja, de haloides, sulfatos e carbonatos11.
Deixamos então o mar salgado, mas a paisagem semiárida acompanha-nos até chegarmos a Göreme. No centro do Parque Nacional com o mesmo nome. Estamos na Capadócia. Um lugar com características únicas, reconhecida mundialmente, devido às gigantes chaminés de fada, de diferentes estilos e formas12 (FIGURA 5), e que escondem nos seus subterrâneos um importante património cultural e toda uma vida humana, ancestral e atual.
Estas morfologias naturais, que resultaram de fenómenos de meteorização e erosão, bem caprichosos e exemplares, são constituídas por rochas vulcânicas ácidas (dacíticas a riolíticas), daí a sua cor dominantemente clara, onde predominam, entre outras tipologias mais lávicas, rochas de origem piroclástica, como é o caso de ignimbritos13 (FIGURA 6), e que alternam, de modo recorrente, com sedimentos siliciclásticos e carbonatados de origem continental, fluviolacustres.
A origem das rochas ígneas extrusivas terá resultado da intensa atividade vulcânica explosiva subaérea que assolou esta região nos finais do Miocénico e se prolongou pelo Pliocénico, “logo a seguir” ao fecho do Mar de Tétis. Um tempo mais ou menos contemporâneo da génese do sucedâneo Mediterrâneo, como resultado do confronto entre as placas litosféricas Afro-arábicas e a placa Euroasiática. Os agentes erosivos, como a água da chuva e o vento, fizeram todo o trabalho restante, numa paisagem desmesurada que pode ser apreciada através de balão de ar quente, um exercício oneroso, mas indispensável e de análise geomorfológica única, para quem visita estas paragens (FIGURA 7).
Percorrendo um pouco mais a Anatólia, agora na sua parte sudoeste, chegamos a mais um local geoturístico da maior relevância: as conceituadas termas de Pamukkale, na região de Denizli, conhecidas pelo menos desde os gregos e dos romanos, que aqui construíram e desenvolveram a sua cidade: Hierápolis, cujas ruínas se encontram contíguas às originais piscinas naturais, onde se formam, em tempo real e desde o Plistocénico, há cerca de 600 mil anos, travertinos e tufos calcários14 (FIGURA 8A)). Uma coleção de rochas carbonatadas, do mesmo tipo das que dão corpo ao majestoso Anitkabir. A elevada temperatura das águas que emergem à superfície, ricas em bicarbonato e cálcio, potenciam a precipitação de calcário, fatores determinantes na deposição de carbonato de cálcio, essencialmente de calcite. Em Pamukkale, com os seus apregoados “castelos de algodão”, ou seja, com o carbonato a jorrar, segundo o princípio da gravidade (FIGURA 8B)), estamos perante um ótimo exemplo do Princípio do Uniformitarismo, capaz de fundamentar a génese das rochas que afloram em Roma e na nossa Conimbriga.
Todo este enquadramento litológico observado em Denizli é favorecido pela tectónica e pela intensa atividade sísmica, efeito constatado historicamente na própria antiga cidade de Hierápolis, com hipocentros reconhecidos a poucos quilómetros da superfície da crosta15, 16.
Bom, está à vista a preferência que os romanos tinham por espaços com travertinos. Sendo de Roma, dados a banhos e a águas termais, talvez os primeiros grandes conhecedores destas rochas e da sua génese hidrotermal. De tanto património geológico e construído sentido e visitado, quem não quiser ficar por aqui, pode aventurar-se, por exemplo, até às ruínas greco-romanas de Éfeso (FIGURA 9). Outro lugar sem igual, agora na província de Esmirna.
Seguindo os exemplos da Capadócia e de Pamukkale, a antiga cidade de Éfeso tem a chancela da UNESCO, sendo reconhecida como Património da Humanidade. Ao que dizem os relatos, terá sido a segunda cidade mais importante do Império Romano. Facto de que não será estranha a sua localização preferencial junto ao Mar Egeu, e com um enquadramento geológico e geomorfológico tão favorável17.
A grandiosidade da cidade é tanta e o impacto arquitetónico é de tal forma avassalador, que este lugar mereceu uma segunda visita por quem escreve este relato. Entre uma melhor perceção do espólio arqueológico, agora com uma missão suplementar, a tentativa de fazer um exame de petrografia a partir das centenas de construções e de estátuas, de amplo significado histórico e estético, ali existentes.
Referências
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