Humpata
Do Planalto da Humpata (Angola) aos micróbios do fundo do mar
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- MARE — Departamento de Ciências da Terra, Faculdade de Ciências e Tecnologia, Universidade de Coimbra
Referência Duarte, L.V., (2017) Humpata, Rev. Ciência Elem., V5(1):012
DOI http://doi.org/10.24927/rce2017.012
Palavras-chave Humpata; Ângola; Serra; Leba; Silificação;
Resumo
Quando vi o filme Os Deuses Devem Estar Loucos (https://www.youtube.com/watch?v=NUmb3Mn6WVg), na sua primeira versão da década de 80 do século passado, era-me distante a ideia de que o final da quimera da garrafa de coca-cola, que tanto baralhou o Bosquímano Xi e a sua tribo, se iria cruzar com vários lugares da África Austral que já tive oportunidade de visitar. Apesar de grande parte da película retratar a vida na zona desértica do Kalahari, é preciso esperar pelo the end para que se descubram as semelhanças entre o lugar onde Xi decide desenvincilhar-se da dita garrafa, concretamente no nordeste da África do Sul (região de Mpumalanga; www.mtpa.co.za/index.php?home), e um dos locais mais extasiantes da “vizinha” Angola: o Planalto da Humpata. Se Xi não conseguiu enviar para o “céu” aquela garrafa, símbolo global do tão atual e propalado Antropocénico, de onde ela veio afinal, foi só aproveitar o efeito da gravidade e fazê-la desaparecer no extenso abismo; num imenso espaço escarpado muito semelhante ao que pode ser observado na Serra da Leba, uma das “jóias” naturais do sudoeste de Angola1. Um ícone do Planalto da Humpata pela grandiosidade paisagística de todo o seu enquadramento geomorfológico, onde se materializa uma sucessão sedimentar datada do Proterozoico (a parte superior do Pré-Câmbrico).
A Serra da Leba encontra-se no flanco ocidental do Planalto da Humpata na fronteira entre as províncias da Huíla e do Namibe. Os contrastes geomorfológicos desta região combinam com a “Estrada da Leba” (Figura 1), uma notável obra de engenharia que liga a cidade do Lubango à zona costeira do Namibe, região que se faz representar com a sua exclusiva Welwitschia mirabilis, e os não menos famosos caranguejos que dão nome à antiga Moçâmedes e deliciam os paladares mais exigentes! Este, é um percurso com um desnível de mais de 2000 metros de altitude, serpenteado na sua parte mais somital, e que, até chegar à margem do Atlântico, atravessa várias impressões climáticas preconizadas no sistema Köppen-Geiger. Em termos geológicos, a subida desta estrada permite validar o Princípio da Sobreposição a toda uma sucessão estratigráfica proterozoica com cerca de 600 metros de espessura do chamado Grupo da Chela e da Formação da Leba2, conjunto que, por inconformidade, se sobrepõe a granitos com cerca de 2000 milhões de anos. São anos muito longínquos da história do nosso planeta registados nas rochas, ainda mais com um empilhamento sedimentar praticamente intocável do ponto de vista orogénico. Aliás, este é um ótimo exemplo do conceito de cratão, neste caso, do “velho” cratão do Congo.
Entre toda a sucessão sedimentar, dominantemente siliciclástica e com algumas intercalações vulcanoclásticas ácidas (rochas ígneas onde predomina a sílica, o sódio e o potássio)3, sobressai a Formação da Leba de natureza carbonatada e que tem um dos seus melhores registos exatamente na Serra com o mesmo nome. Esta unidade é composta essencialmente por estratos dolomíticos, dada a abundância de um mineral de carbonato de cálcio e magnésio, a que se sobrepõe forte silicificação (Figura 2). A dolomite, que é um “quebra-cabeças” para o sedimentólogo, dada a sua raridade nos ambientes sedimentares atuais, contrastando com a sua grande abundância no registo geológico antigo. Como é o caso, por exemplo, da Formação de Coimbra, da base do Jurássico português, de onde provém a rocha (dolomia ou dolomito) que edifica a Sé Velha e grande parte da Igreja de Santa Cruz, vultos arquitetónicos da cidade de Coimbra. Na Serra da Leba, apesar da pequena expressão métrica, o conjunto rochoso carbonatado do Proterozoico mostra diversos processos de carsificação subterrâneos (grutas, com claros sinais de ocupação humana primitiva) e superficiais, fenómenos típicos destas litologias. Embora esteja a algumas centenas de metros da escarpa que melhor caracteriza os contornos do Planalto da Humpata, é notório o registo desta unidade na paisagem, facilmente identificada pela vegetação espinhosa que a individualiza, cujas raízes se prolongam por profundas fraturas.
Mas, entre todo este gigantesco enquadramento mesoscópico, é à escala macro e microscópica que se evidencia, numa perspetiva mais global, a geologia sedimentar da Formação da Leba. Tudo, “por culpa” da ocorrência de magníficas estruturas estromatolíticas (Figuras 3 e 4), testemunhos de atividade microbiana que terão dominado os ambientes marinhos proterozoicos, muito antes de se assistir à grande “explosão” da vida na Terra, a que marca o início do Fanerozoico. Com estromatólitos para diversos gostos, considerando as diferentes morfologias e aspetos diagenéticos fossilizados, estes corpos sedimentares são acompanhados de marcas de ondulação e por outros registos de um ambiente marinho muito superficial (oncólitos e oólitos), fazendo lembrar - com as devidas diferenças -, através do incontornável Princípio do Uniformitarismo, a célebre Baía dos Tubarões, na Austrália Ocidental: o “paraíso” dos estromatólitos atuais. Não fosse este, um dos Princípios da Geologia que melhor permite ao geólogo entender o passado a partir da observação e interpretação dos sistemas sedimentares atuais.
Sem fósseis-índice, desde logo porque estaremos ainda pelo Pré-Câmbrico, e sem qualquer outro registo sedimentar visível acima da Formação da Leba, de modo a estabelecer limites temporais, o grande dilema é saber a verdadeira idade destas rochas. Uma incerteza que subsistirá, devido aos longos processos erosivos que terão afetado esta região ao longo de centenas de milhões de anos, e que terão “apagado” tudo o que eventualmente se tenha depositado sobre esta unidade. Um processo favorecido pelo soerguimento da crosta terrestre, desde alguns metros abaixo do nível do mar até à altitude atual dos mais de 2000 metros do Planalto da Humpata. É, afinal, o Planeta a funcionar ao longo de muitos milhões de anos, mas no sentido inverso ao da gravidade, a força que fez desaparecer de vez a garrafa de coca-cola do Bosquímano Xi!
Referências
- 1 Duarte et al. (2014). Comunicações Geológicas, 101, Especial III, 1255-1259.
- 2 Correia (1976). Boletim da Sociedade Geológica de Portugal, 20, 65-130.
- 3 Pereira et al. (2011). Comunicações Geológicas, 98, 29-40
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