Histórias geológicas de Peniche
e o seu inigualável Jurássico Inferior
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- MARE — Departamento de Ciências da Terra, Faculdade de Ciências e Tecnologia, Universidade de Coimbra
Referência Duarte, L.V., (2020) Histórias geológicas de Peniche, Rev. Ciência Elem., V8(1):011
DOI http://doi.org/10.24927/rce2020.011
Palavras-chave Geologia sedimentar, História da Terra, Jurássico, Peniche
Resumo
Sendo um país de tamanho liliputiano no panorama do mapa mundial, Portugal exibe, inegavelmente, uma grande geodiversidade, tanto na natureza litológica como na idade geológica, que se reflete nas múltiplas diferenças paisagísticas. Numa relação estreita, que nos parece óbvia, com outros aspetos culturais e os próprios costumes das populações. Até no sotaque das gentes e na gastronomia! É um facto que os lugares geológicos de excelência, entre os vários critérios de avaliação, são muitos1. A começar pelos arquipélagos vulcânicos, neogénicos, dos Açores e da Madeira, pelas altas montanhas graníticas, paleozoicas e de feição quaternária, da Estrela e do Gerês, ou pelo recorte das arribas sedimentares, meso-cenozoicas, da nossa zona costeira continental. Apenas alguns exemplos. E que lugares! Por tendência profissional, ou seja, pelas responsabilidades na investigação que temos realizado ao longo de quase três dezenas de anos, a nossa proposta é fazer uma incursão pelo Jurássico Inferior português, patente num lugar representativo em termos científicos à escala internacional, e de elevadíssimo valor cénico e patrimonial da nossa zona costeira e do que é considerado como Bacia Lusitânica2, 3: a península de Peniche (FIGURA 1). E que atrai multidões por outras boas e objetivas razões.
Peniche acumula vários tipos de interesse. Fazendo uma análise histórica em termos temporais, desde o mais recente ao mais antigo, a cidade de Peniche é hoje conhecida não só pela sua caldeirada de peixe - e pratos afins. É mundialmente reconhecida como a capital nacional da ONDA. Tudo por culpa dos tubos perfeitos que o mar desenvolve junto à praia, arenosa, de Supertubos. A Fortaleza de Peniche, construída com base na rocha calcária existente na zona, constitui uma referência, de má memória, do período ditatorial que preencheu grande parte da nossa história do século XX.
Sempre com a sua tradição marítima, até porque na Idade Média Peniche terá sido uma ilha, isolada do resto do continente, ficou associada, injustamente, à expressão “amigos de Peniche”. Os falsos (ou maus) amigos, no caso, os ingleses que terão desembarcado ao largo de Peniche, durante o período de vigência castelhana de 1580-1640. Do período pré-histórico, mais precisamente desde o Paleolítico médio, temos a ocupação humana na não menos conhecida gruta da Furninha, implantada em terrenos calcários do Jurássico, e que tem muito para contar sobre o Plistocénico e os seus habitantes. Com pequenos registos (geológicos) do resto do Cenozoico e de grande parte do Mesozoico, onde ressalta o singular Tufo-brecha da Papôa (FIGURA 2A)), corpo muito provavelmente associado à forte atividade vulcânica que assolou o a atual região da Estremadura no final do Cretácico, é o Jurássico que se encontra particularmente bem representado na região. Estando representada a maioria dos seus pequenos compartimentos temporais, conhecidos como andares. Desde a sucessão margo-calcária do Baleal (que mostra uma porção do Jurássico Médio), disposta em camadas, como se tratasse de um conjunto de livros inclinados numa estante (FIGURA 2 B)), à extremidade sul do pequeno concelho, na Consolação (Jurássico Superior), onde afloram, de forma espetacular, calcários coralíferos, a demonstrar que as águas de então teriam sido muito mais quentes do que as atuais (FIGURAS 2 C) e D)).
Mas, excluindo o arquipélago das Berlengas, granítico e metamórfico do Paleozoico, já que se trata de uma espécie de “xenólito” (corpo estranho) em termos morfoestruturais e estratigráficos, é à volta da cidade de Peniche, ao longo do perímetro da sua península, que se observa o mais antigo e melhor dos registos sedimentares: as unidades carbonatadas do Jurássico Inferior, como veremos, de grande importância à escala internacional3.
Foram muitos anos a caminhar para Peniche, a medir espessuras de camadas, a fazer descrições – algumas delas sobre descrições previamente realizadas –, a recolher (vários) milhares de amostras com vista a estudos petrográficos, geoquímicos e paleontológicos, com dezenas de investigadores das mais diversas instituições portuguesas e internacionais. Que aprendizagem! A sucessão sedimentar da península, gerada pelo menos entre os 195 e os 174 milhões de anos (Ma), contabiliza mais de 450 metros de sedimentos, com diversas litologias afins do calcário e de diferentes grupos de fósseis de invertebrados marinhos. A ocorrência de amonoides, em parte significativa da coluna sedimentar, permite datar nas arribas de Peniche três dos andares do Jurássico Inferior – Sinemuriano, Pliensbaquiano e Toarciano –. Nesta sucessão definem-se cinco unidades litostratigráficas formais8, entre elas e por curiosidade adicional, as formações de Coimbra – a mesma que ocupa o substrato de grande parte da cidade de Coimbra, de onde deriva o nome (FIGURA 3A) – , Vale das Fontes – uma unidade margosa, muito negra, devido à sua grande riqueza em matéria orgânica9 e, por isso, com potencial de geração de hidrocarbonetos3 (FIGURA 3B) –, e a Formação do Cabo Carvoeiro – unidade gerada quando a Berlenga já seria uma ilha, e que devido à sua natureza sedimentológica, é exclusiva de Peniche (FIGURA 4).
Toda esta sucessão é apontada como a principal referência do Jurássico Inferior da Bacia Lusitânica. No entanto, o estado do conhecimento geológico configura muito mais do que isso. Entre os numerosos aspetos de interesse científico, o limite Pliensbaquiano – Toarciano, aflorante na Ponta do Trovão, ocupa o lugar cimeiro, pelo facto de constituir uma espécie de padrão à escala global: o chamado Global Boundary Stratotype Section and Point (GSSP) do Toarciano10 (FIGURA 5). Um limite sustentado essencialmente pelo registo fóssil, a partir dos amonoides, e que do ponto de vista geocronológico é marcado à volta dos 183 Ma. Ao tempo da sedimentação marinha aqui ocorrida, ainda (muito) antes da génese do Oceano Atlântico, Peniche era um ponto de encontro de faunas deste grupo de moluscos nectónicos, desde os mares setentrionais, boreais, ao famoso Mar de Tétis, de tal modo que o registo de Peniche permite e facilita o exercício de correlação com secções estratigráficas de diferentes posições do globo. A relevância não é pequena!
Mas o impacto do Jurássico de Peniche, em especial do seu Toarciano (~ 183-174 Ma), é desde há cerca de 10 anos de investigação permanente, mais do que o já demonstrado. Em breves dois a três minutos, calcorreando a pé o afloramento costeiro, desde a Ponta do Trovão, entramos na pequeníssima praia do Abalo (FIGURA 6 A). Uma coincidência de nomes, com denominador comum a perpassar, inexplicavelmente, o “telúrico”. Subimos na sequência de estratos da Formação do Cabo Carvoeiro, não mais do que 1 milhão de anos relativamente ao GSSP do Toarciano, e entramos na sucessão que regista o evento anóxico oceânico do Toarciano inferior (FIGURA 6 B)11. Um dos intervalos de tempo do Mesozoico de maior mudança registada à escala planetária, de intensa perturbação do ciclo do carbono, e que envolveu um conjunto de interações entre os oceanos, a litosfera, a atmosfera e a biosfera. Entre esses eventos, que se sobrepõem, destacam-se uma importante extinção em massa, a forte atividade vulcânica ocorrida na província meridional de Karoo-Ferrar, anoxia e (possível) acidificação de alguns ambientes marinhos espalhados pelo planeta, e amplificação do efeito de estufa com o consequente aquecimento da água do mar12. O Toarciano de Peniche ficou mundialmente conhecido através de estudos isotópicos de carbono aqui realizados, e que demonstraram que a dita perturbação do ciclo do carbono se terá estendido dos oceanos à atmosfera13. Desde aí, a investigação aqui realizada, de elevado nível, tem sido uma constante e, muito provavelmente, aos dias deste escrito, sem paralelo na geologia sedimentar portuguesa3, 14, 15.
Parece claro que o impacto cénico das falésias calcárias da península de Peniche não desmerece no conjunto de tantos outros locais icónicos de Portugal. Ainda mais, reunindo as diversas histórias geológicas que aqui se podem contar, e que inclui um Jurássico de exceção. Em tempo de grande e às vezes pouco fundamentado alarido sobre o que são as alterações climáticas, a geologia de Peniche permite-nos conhecer bastante mais sobre o funcionamento do planeta e a interação entre os seus diversos subsistemas.
Para além disso, podemos ainda acrescentar ao “cardápio”, as acumulações exclusivas de Pentacrinus penichensis (FIGURA 7 A), os sublimes lapiás do Cabo Carvoeiro (FIGURA 7 B), sobranceiros ao Atlântico, e contemplar a Nau dos Corvos (FIGURA 8). Todas imagens de marca desta zona costeira. Mas podemos ir ainda mais longe nas nossas cogitações. Por exemplo, imaginar como será a morfologia (e a geologia) do fundo marinho entre o Cabo Carvoeiro e a Berlenga. Um percurso de 10 quilómetros que há cerca de 20 mil anos poderia ser realizado, imagine-se, por via terrestre, quando o nível do mar estava cerca de 120 metros mais baixo. A geologia é isto mesmo. Tão real como o festim que certamente será do maior agrado, depois de um dia passado nas falésias de Peniche. Tal como a gastronomia, a geologia de Peniche estará sempre na “boca do mundo”!
Referências
- 1 BRILHA, J., et al. Definition of the Portuguese frameworks with international relevance as an input for the European geological heritage characterisation, Episodes 28 (3), 177-186. 2005.
- 2 RILO, A.R., et al. As falésias calcárias da Península de Peniche (Costa Ocidental Portuguesa): Inventariação e caracterização do património geológico, (In: Florido, P., Rábano, I. (eds.). Una visión multidisciplinar del patrimonio geo
- 3 DUARTE, L.V., et al. The Jurassic of the Peniche Peninsula (Portugal): scientific, educational and science popularization relevance, Revista de la Sociedad Geologica de España 30, 55–70. 2017.
- 4 CALADO, M. Peniche na História e na Lenda, 4ª edição, SILVAS, Coop. Trab. Gráficos, 451p.. 1991.
- 5 BICHO, N. & CARDOSO, J.L Paleolithic and lithic assemblages from Furninha Cave, Peniche (Portugal). Zephyrus LXVI, 17-38. 2010.
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- 7 FRANÇA, J.C. Carta geológica de Portugal na escala 1/50000. Notícia Explicativa da Folha 26-C Peniche, Serviços Geológicos de Portugal, 33 p.. 1960.
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- 12 REOLID, M., et al. Advances in the understanding of the Toarcian Oceanic Anoxic Event (IGCP-655 annual report)., Episodes 41 (2), 121-128. 2018.
- 13 HESSELBO, S.P., et al Carbon-isotope record of the Early Jurassic (Toarcian) Oceanic Anoxic Event from fossil wood and marine carbonate (Lusitanian Basin, Portugal), Earth and Planetary Science Letters, 253, 455–470. doi.org/ 10.1016/j.epsl.2006.11.0
- 14 DUARTE, L. V., et al. The Toarcian Oceanic Anoxic Event at Peniche. An exercise in integrated stratigraphy – Stop 1.3, In: Duarte, L. V., Silva, R. L. (Eds.), 2nd International Workshop on the Toarcian Oceanic Anoxic Event: Field Trip Guidebook, Coimbra, September 7th-8th, 2018-IGCP-655: The Toarcian Oceanic Anoxic Event in the Western Iberian Margin and its context within the Lower Jurassic evolution of the Lusitanian Basin, 33–54, University of Coimbra. 2018.
- 15 FANTASIA, A. et al. Global versus local processes during the Pliensbachian-Toarcian transition at the Peniche GSSP, Portugal: A multi-proxy record, Earth-Science Reviews, 198, 102932. 2019.
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